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Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h35.
Como se não bastasse a disputa pelo dinheiro dos impostos travada entre os governos federal e estaduais, entre estados ricos e pobres, entre estados e prefeituras, surge agora o risco de uma briga de sensibilidades entre o Senado e a Câmara dos Deputados para definir quem dá a palavra final na reforma tributária. Se as coisas tomarem mesmo esse curso, torna-se ainda mais distante aquele que deveria ser o objetivo básico da reforma: reduzir, ou ao menos racionalizar, a carga tributária, de modo a estimular consumo, poupança e investimento -- vale dizer, o crescimento.
A decisão tomada pelo Senado de mudar o texto votado na Câmara é uma santa providência. O que parecia um êxito dos deputados -- a aprovação tão rápida da reforma -- mostrou-se um equívoco monumental. No tumulto de reuniões que avançavam pelas madrugadas de Brasília, entre telefonemas aflitos às capitais estaduais, os votos necessários foram capturados à custa de concessões e acertos com governadores e grupos variados de interesse. Resultou num projeto que tinha o que cada um queria e que, portanto, era ruim para todos.
Sem contar os pontos que apareceram não se sabe de onde, como a regra que desfechou a guerra fiscal de setembro. Trata-se do dispositivo segundo o qual os incentivos fiscais concedidos pelos estados até 30 do mês passado permaneceriam válidos por 11 anos. Detalhe: o texto foi aprovado no início de setembro. Foi como dizer a um grupo de extermínio: não pode matar, mas só daqui a três semanas.
Estabeleceu-se uma licença para a farra fiscal, aproveitada alegremente por governadores estaduais e suas assembléias legislativas. Em menos de 20 dias, os deputados estaduais do Rio Grande do Sul aprovaram 59 projetos de isenção e/ou redução de ICMS; no Rio, foram 23 projetos; em Alagoas, 30; em Minas, outros tantos. E por aí foi, quando um dos objetivos solenes da reforma era justamente acabar com a guerra fiscal.
Só por aí estava claro que o texto da Câmara precisaria ser alterado. Pouco a pouco foram aparecendo outros daqueles acertos da madrugada. Quando tudo clareou, havia um projeto confuso, fonte de novos conflitos, tecnicamente ruim (pois engessava ainda mais os orçamentos públicos) e, mais grave, que abria espaço para uma nova rodada de aumento de impostos.
Não surpreende que, em poucos dias, no início de outubro, os líderes dos seis principais partidos do Senado, incluindo os de oposição, tenham chegado à conclusão de que era preciso começar de novo. Também não surpreende que os ministros da Fazenda, Antônio Palocci, e da Casa Civil, José Dirceu, tenham apoiado a decisão dos senadores. A União perdia receitas expressivas.
O problema -- quer dizer, um dos problemas -- é que não há palavra final em projeto de emenda constitucional. Tudo o que o Senado alterar no texto deve voltar à deliberação dos deputados. Se estes modificarem de novo, como o presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha (PT-SP), tem insinuado ou ameaçado, o projeto faz o caminho de volta para o Senado. E assim por diante.
Dessa forma, o que já era difícil tornou-se ainda mais complicado. Além dos problemas originais, há agora para administrar as competências de senadores e deputados federais e é preciso encontrar um meio de desfazer os efeitos da guerra fiscal de setembro.
Tudo considerado, a única saída razoável é o fatiamento da reforma, por mais que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva insista na necessidade de uma reforma global, com o apoio dos governadores. Na verdade, Lula parecia ter chegado perto disso na última reunião da Granja do Torto, da qual os governadores saíram manifestando disposição de entendimento para afinar a reforma no Senado.
Bastou, porém, começar a falar de dinheiro e, de novo, a coisa complicou. Por exemplo: os governadores davam por certo que receberiam 25% do total arrecadado pela Cide, o imposto sobre combustíveis, recurso carimbado para gastar em conservação de estradas. Mas a Fazenda e os senadores governistas colocaram na mesa outra proposta: formar um fundo federal para aplicar nas estradas seguindo uma gestão tripartite (União, estados e municípios). É uma solução parecida e talvez até mais eficiente. Mas vai tentar convencer o governador de que é melhor participar de um fundo tripartite do que ter dinheiro em caixa para gastar na estrada que bem entender.
Se ficar assim, de conflito em conflito, já se sabe onde vai dar: ou a lugar nenhum -- isto é, o atual e mau sistema -- ou a um regime tributário ainda pior. Mas há uma boa alternativa. O Senado pode salvar alguns pontos positivos e, digamos, engolir medidas ruins mas inevitáveis nas circunstâncias. A CPMF, por exemplo, é um péssimo tributo. A propósito, o economista Dionísio Carneiro, em artigo publicado em O Estado de S. Paulo, em homenagem ao Nobel de Economia Franco Modigliani, morto em 25 de setembro, lembrou algumas passagens saborosas da visita do ilustre professor ao Brasil. Numa delas, o ex-ministro Mário Henrique Simonsen explicava como funcionava o imposto sobre operações financeiras (IOF), avô até mais modesto da CPMF, segundo Carneiro. "Ah, entendo", respondeu Modigliani, "trata-se de um imposto sobre o desenvolvimento, pois taxa ao mesmo tempo a poupança e o investimento." Não é uma definição perfeita para o imposto do cheque?
Ocorre que sem a CPMF (não menos que 25 bilhões de reais ao ano) o governo federal não fecha suas contas, dada a existência de despesas obrigatórias e incomprimíveis. E, neste momento, a credibilidade do país exige que se fechem as contas e se faça o superávit primário.
O texto aprovado pela Câmara prorrogou a CPMF até 2007. O Senado deve, portanto, aprovar esse ponto e salvar as contas da União. E aí se tem um prazo para pensar na lição de Modigliani. Do mesmo modo, o Senado deveria aprovar a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que ajuda a garantir a execução de um orçamento equilibrado.
Além disso, há coisas positivas que o Senado deveria manter: o fim da cumulatividade da Cofins, a desoneração das exportações e dos investimentos em bens de capital, o fundo de compensação aos estados pelas perdas provocadas pela Lei Kandir, a desoneração dos produtos da cesta básica e de medicamentos essenciais, a cobrança de contribuições sobre as importações. Como tudo isso já consta do texto da Câmara, a aprovação no Senado seria final, e a emenda poderia ser promulgada ainda neste ano. O restante, inclusive a reforma do ICMS, ficaria para uma discussão mais tranqüila, à luz do dia. Não importa que seja no ano que vem.
Há sinais de que o Senado pode avançar nessa direção razoável, mesmo porque o governo federal precisa da CPMF e da DRU neste ano. Mas também há senadores prometendo uma nova reforma inteirinha, inovadora e criativa. Como prometiam os deputados e como alguns ainda acham que produziram.