Economia

Uma breve história da censura

Podem palavras alterar o curso da História ou mudar as estruturas de poder vigentes na sociedade? Tendemos a acreditar que sim – por isso mesmo escrevemos tanto sobre política. E dado essa relevância, é natural que os grupos encrustrados no poder queiram ter controle sobre o que se escreve e o que se lê no […]

PROTESTO NA ALEMANHA ORIENTAL:  o maior aparato de censura já montado nos lembra de que o poder e as palavras jamais viverão em total harmonia / Fox Photos/ Getty Images

PROTESTO NA ALEMANHA ORIENTAL: o maior aparato de censura já montado nos lembra de que o poder e as palavras jamais viverão em total harmonia / Fox Photos/ Getty Images

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Da Redação

Publicado em 10 de junho de 2016 às 17h39.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h34.

Podem palavras alterar o curso da História ou mudar as estruturas de poder vigentes na sociedade? Tendemos a acreditar que sim – por isso mesmo escrevemos tanto sobre política. E dado essa relevância, é natural que os grupos encrustrados no poder queiram ter controle sobre o que se escreve e o que se lê no território que dominam. Assim nasce a censura, tema do mais novo – e excelente – livro de Robert Darnton – Censores em Ação. Na capacidade de diretor da Biblioteca da Universidade Harvard e autor de outras obras como Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária, Darnton é uma espécie de autoridade mundial quando o assunto é livros. Especialmente livros incendiários.

Falar de censura é remeter imediatamente à História recente do Brasil. Todos nós ou vivemos ou aprendemos na escola sobre receitas de bolo que substituíam matérias de jornal indesejáveis, cortes e supressões de poemas e músicas, proibição de publicação de livros e, nos piores casos, perseguição, exílio, tortura e morte de escritores e jornalistas.

Pela leitura de Darnton, a censura varia bastante de lugar para lugar, de maneira que é difícil falar de “censura” em geral, pois cada caso pode ser consideravelmente diferente do outro. Ele não analisa o caso brasileiro, focando-se em três exemplos de maior envergadura. Um no século 18, outro no 19 e outro no 20. Ficamos sabendo que, por mais repressora que tenha sido, a censura brasileira foi jogo de criança perto dos sistemas de controle e repressão da palavra impressa em outros lugares.

Os “mestres” franceses e ingleses

A começar porque, ao contrário daqui, os países em que a censura mais se desenvolveu foram muito além do trabalho puramente negativo de cortar fora frases e termos ofensivos. A censura fazia o autor se enquadrar nos moldes esperados dele. Era o caso da França do século 18, pré-revolucionária, que abre o livro e já nos lança de cara em um mundo absolutamente distante do nosso – mas ainda assim fascinante.

A monarquia absolutista dos Bourbon exercia seu poder por meio de privilégios e cartas de permissão. Publicar um livro na França era como ter qualquer outro negócio. Era preciso ter a devida autorização e passar pelos canais oficiais de avaliação e publicação. Um gama de editores e de censores apontados pela Coroa fazia um verdadeiro trabalho de editoração de cada livro que pretendia ser publicado. Questões de estilo, crítica aos argumentos, preocupação em não ferir a sensibilidade de algum nobre da corte, tudo isso entrava em jogo na função do censor, que negociava alterações junto ao autor. Havia até mesmo uma classificação. Era o censor quem tinha o poder de conceder o privilégio oficial de poder publicar aquelas palavras – uma grande honra, no fundo –, dar uma permissão tácita, que ia para obras sem grande valor, e a negação para obras ruins.

O normal era que, depois de um extenuante trabalho de revisão, correção e aprimoramento, o censor (frequentemente não remunerado) permitisse que o livro fosse publicado. Isso porque a literatura realmente incendiária – tudo aquilo que criticasse a Coroa, a Igreja ou a moral – sequer tentava passar pelos canais oficiais. O mercado negro era pujante, empreendedor e democrático. O risco de ser pego e passar anos em alguma prisão de condições deploráveis (foi o caso de uma camareira que escreveu uma fábula representando os vícios de diversos nobres) era real, mas uma boa dose de vistas grossas, favores e mesmo incompetência por parte dos poderes oficiais permitiam algum grau de liberdade em uma nação na qual, supostamente, nada poderia ser publicado sem o privilégio expresso do rei.

Pulando um século, Darnton nos leva aos colonialistas britânicos na Índia, que tentavam dar realidade a uma contradição: garantir o direito da liberdade de expressão, tão querido aos britânicos, ao mesmo tempo em que preservavam o poder imperial de alguns milhares de europeus sobre milhões de indianos. Por muito tempo, a liberdade era real: quase tudo que se publicava no Raj, em suas muitas línguas e estilos, era devidamente documentado e resenhado pelas autoridades, mas sem nenhuma espécie de intervenção, mesmo para literatura que conclamasse o povo contra o domínio inglês. Com o aumento da escrita e a imprensa trazida pelos ingleses, partes da colônia viveram um verdadeiro renascimento literário neste período.

Foi no momento em que o descontentamento popular começou a tornar-se violento, já no século 20, que a postura das autoridades britânicas mudou e começou a proibir livros e punir autores. Livros que cinco anos antes foram publicados sem problema nenhum agora eram considerados literatura sediciosa e proibidos de serem reimpressos, sob pena de prisão. As demandas do poder falaram mais alto do que a liberdade de expressão, e o Raj negou na prática os valores que inicialmente queria difundir no continente indiano.

A Alemanha é imbatível

Por fim, Darnton nos mostra o caso mais bem acabado e totalitário de censura: a Alemanha Oriental. Se na França absolutista o Estado tinha papel determinante na escrita dos livros, por meio de censores que eram também juízes de estilo e de conteúdo, na Alemanha comunista o Estado dava um passo além: planejava de antemão o que seria publicado naquele ano, elegendo o caminho que a literatura alemã deveria seguir.

No período coberto pelo livro, basicamente dos anos 70 até a queda do Muro de Berlim, o período de maior terror estalinista já tinha passado. Dificilmente algum autor seria mandado ao gulag, podendo no máximo perder o emprego e cair no ostracismo. Mesmo assim, o grau de controle sobre a publicação de livros – que incluía desde a crítica e negociação minuciosa de cada linha do manuscrito por um censor profissional até a espionagem de autores usando amigos e parentes – era tremendo.

De certa forma, a censura mudou seu locus de atuação: deixou de ser apenas um aparato externo para se transformar num movimento interno de autorrepressão dos próprios escritores. A voz crítica, que indicava quais temas ou expressões poderiam criar problema – ecologia, por exemplo, era tema banido naquela nação que se orgulhava de sua indústria pesada –, funcionava dentro da cabeça de cada autor.

No final das contas, a instituição da censura emerge como uma estrutura muito mais complexa do que a mera repressão que estamos habituados a imaginar. A repressão existia, a força bruta é sempre uma das ferramentas de trabalho do Estado, mas em geral deixada como último recurso. Antes de chegar na prisão, no exílio ou na tortura, há toda uma série de instâncias de negociação e conciliação, que tentam resolver o “problema” sem gerar nenhum trauma. Afinal, não é do interesse do Estado tornar a classe letrada sua inimiga.

Mais do que tudo, Censores em Ação é um mergulho em três contextos históricos muito diferenciados, e uma janela assim para três mundos que nos parecem muito distantes. Nossa mídia, por mais que reclame com razão de diversas interferências do Estado, é livre. O mesmo vale para o mercado editorial. Mas em tempos nos quais empresas estatais param de fazer publicidade em revistas consideradas de oposição, ou que editoras deixam de publicar um romance por que ele poderia dar munição aos “golpistas”, vemos que as sementes para o ressurgimento do aparato de censura estão sempre no meio de nós. Não tem jeito: as palavras e o poder jamais conviverão de forma totalmente harmônica.

(Joel Pinheiro da Fonseca)

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