Economia

Um livro sobre ouro que é um lixo

O livro The New Case for Gold (“O Novo Argumento em Favor do Ouro”, numa tradução livre), de James Rickards, dá a entender que é uma coisa para depois revelar-se outra bem diferente. Ao fazer isso, reproduz em suas páginas aquela que é a grande ambigüidade do movimento americano que milita em favor do padrão-ouro […]

VIL METAL: livro de James Rickards milita em favor do retorno do padrão-ouro /  (Mario Tama/ Getty Images/Getty Images)

VIL METAL: livro de James Rickards milita em favor do retorno do padrão-ouro / (Mario Tama/ Getty Images/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 3 de junho de 2016 às 20h12.

Última atualização em 19 de junho de 2017 às 16h17.

O livro The New Case for Gold (“O Novo Argumento em Favor do Ouro”, numa tradução livre), de James Rickards, dá a entender que é uma coisa para depois revelar-se outra bem diferente. Ao fazer isso, reproduz em suas páginas aquela que é a grande ambigüidade do movimento americano que milita em favor do padrão-ouro e que toma o vil metal (em oposição ao papel-moeda) como um símbolo de resistência a um sistema monetário supostamente corrupto, perigoso e centrado nos desmandos do poder federal. A ambigüidade consiste em oscilar entre a proposta de retornar o sistema monetário global ao padrão-ouro, de um lado, e a prescrição de que o ouro é um bom investimento no momento atual.

Inicialmente, o livro defende a reinstituição do padrão-ouro no sistema monetário internacional. Até os anos 30 do século 20, o mundo inteiro funcionava – ainda que com intervalos ocasionais – sob esse sistema. Os governos nacionais emitiam moeda, mas tinham a obrigação de manter reservas de ouro em alguma proporção com a quantidade de moeda emitida. Nos anos 30, em resposta à crise mundial, abandonaram o lastro em metal, que seria mais uma vez retomado depois da Segunda Guerra Mundial com o acordo de Bretton-Woods. Finalmente, em 1971, o governo americano rompeu qualquer vínculo entre o dólar e o ouro, e o mundo passou a operar em um sistema fiduciário, no qual nenhum lastro garante o poder de compra da moeda.

Segundo Rickards, a perda de lastro do ouro torna o sistema monetário mais instável e dá a ele uma tendência inflacionária, que beneficia devedores à custa de credores, além de punir a poupança e estimular o consumo. Estaríamos melhor, segundo ele, com um sistema levemente deflacionário (é a deflação acentuada que é danosa) e mais simples, sem a hipertrofia do mercado financeiro que marca os dias atuais.

Ocorre que, se essa proposta de volta do padrão-ouro fosse seu verdadeiro objetivo, ele não poderia deixar passar sem nenhuma discussão alguns pontos cruciais que são mencionados em algumas linhas, levantam mais questionamentos do que esclarecem e jamais são mencionadas de novo. Rickards menciona, por exemplo, que a maioria dos contratos de derivativos deveria ser proibida, sem dizer quais tipos, que tipo de efeito ele esperaria no mercado e se esse tipo de proibição não seria facilmente contornável por um sistema pródigo em inventar novos contratos e produtos financeiros.

Na mesma toada, propõe que todo banco que ultrapassasse um certo tamanho deveria ser dividido em bancos menores, sem se dar ao trabalho de investigar que tipo de incentivo isso introduziria no sistema. Propõe ainda, por fim, substituir os modelos matemáticos usados por bancos centrais por modelos que incorporem a noção de complexidade, sem dizer concretamente em quê isso melhoraria a capacidade preditiva deles.

Enfim, não é aqui que está sua real intenção. Ao contrário do que parece ser inicialmente, The New Case for Gold não é uma proposta de reforma do sistema monetário americano ou global. Pois no meio da leitura descobrimos que, ao contrário do que pensávamos, o ouro ainda é dinheiro. E mais: que o Banco Central americano vive na beira da insolvência e que a única coisa que o mantém vivo é o valor implícito de suas reservas de ouro. O mundo, portando, ainda está no padrão-ouro, mesmo que não o saiba.

O ouro, argumenta o autor, é a parte central do nosso sistema monetário de que ninguém fala. Tem diversas características que o tornam o elemento químico perfeito para ser uma moeda. É belo. Tem tradição. E é o único ativo seguro. É, portanto, o melhor jeito de proteger seu patrimônio neste mundo à beira de um novo e apocalíptico colapso econômico, que deve vir em cerca de cinco anos. Por isso – e aqui vem a real mensagem do livro – todo investidor deveria ter pelo menos 10% do seu portfólio em ouro. De preferência, guardado fora do sistema bancário (no qual o Estado pode confiscar) e próximo de sua residência, para ser fácil acessá-lo quando a rede elétrica ruir. Sim, estamos bem longe da análise econômica padrão…

Ter 10% do portfólio em ouro é um incremento substancial para a imensa maioria dos investidores. Um incremento que, inclusive, serviria para elevar o preço do ouro e tornar corretas as previsões de Rickards. Todo defensor do ouro como investimento deve enfrentar o fato de que seu desempenho tem sido ruim nas últimas décadas. Rickards é pouco convincente, e sua mensagem básica é que o aumento do preço do ouro virá em breve, basta comprar e esperar.

O livro pode ser entendido como uma peça da tradição populista americana. Ao contrário da variante latina, o populismo ianque é individualista e desconfiado de toda forma de poder ou sistema que não seja imediatamente compreensível pelo bom senso individual. Há algo de saudável nessa atitude; uma tendência a preservar o respeito próprio e a autonomia frente um mundo que às vezes parece querer esmagar nosso senso de valor. Ao apelar a valores tão caros aos americanos, contudo, acaba também resvalando em seus vícios mais comuns: o anti-intelectualismo é um deles. A argumentação jamais vai além do senso comum, pecando pela falta de qualquer sofisticação.

O outro vício aparente é a facilidade de acreditar em conspirações ou na proximidade de grandes cataclismos. O pior é notar que essa expectativa apocalíptica é tratada como um dado óbvio, algo perfeitamente esperado e razoável. Sinal de que escreve para leitores de uma cultura particular dos Estados Unidos: os partidários do Tea Party, facção da direita que não mede esforços em construir sua própria versão autorreferencial da realidade, imune a interpretações menos extravagantes. Um pouco como a esquerda retrógrada aqui do Brasil.

Dito isso, o livro tem informações relevantes (por exemplo, a quantidade total de ouro no mundo: 170 000 toneladas), olha para alguns processos interessantes (a China e a Rússia têm aumentado suas posições em ouro, o sistema econômico global certamente está instável) e toca em um sentimento generalizado do nosso tempo: o de que o sistema financeiro está perigosamente desequilibrado e que concentra uma fatia desproporcional dos nossos recursos.

O sistema financeiro tem cada vez mais poder e está colocando a vida real de milhões de pessoas na roleta de um jogo etéreo que, como 2008 mostrou, nem mesmo os participantes entendem muito bem. É uma pena que, em vez de oferecer alguma análise mais original, Rickards prefere repetir lugares-comuns da direita brucutu americana e advogar uma estratégia de investimento duvidosa para leitores decerto pouco informados. Em cinco anos saberemos se ele estava certo; isso se alguém ainda se lembrar deste livro.

(Joel Pinheiro da Fonseca)

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