Teoria de livre mercado da era Davos começa a ser questionada
Governos se preparam para um papel mais ativo na condução das economias para enfrentar os grandes desafios da próxima década
Ligia Tuon
Publicado em 20 de janeiro de 2020 às 12h39.
Última atualização em 20 de janeiro de 2020 às 12h40.
Em um memorável debate em Davos no ano passado, o bilionário de tecnologia Michael Dell explicava como impostos mais altos sobre os ricos nunca deram muito certo em lugar nenhum, quando foi contestado. Na verdade, disse Erik Brynjolfsson, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, os impostos funcionaram muito bem na memória viva do próprio país de Dell, os Estados Unidos .
Para uma multidão de executivos que prosperou com 40 anos ou mais de políticas que incentivaram empresas e mercados livres, a observação foi um lembrete de que as versões mais antigas do capitalismo ocidental nem sempre seguiram esse modelo - e um aviso de que a próxima encarnação também pode não seguir.
Em vez de uma abordagem com pouco controle, os governos se preparam para um papel mais ativo na condução das economias para enfrentar os grandes desafios da próxima década, como o aquecimento global, a desigualdade e a corrida das grandes potências por vantagem tecnológica. Talvez, sem surpresa, políticos da Europa, Ásia e até dos EUA estão adotando a ideia.
“Já deixamos o pico do ‘laissez-faire’ para trás de várias maneiras”, disse Adair Turner, ex-presidente da agência reguladora do setor bancário do Reino Unido, assíduo participante do Fórum Econômico Mundial em Davos.
Segundo Turner, esse modelo foi deixado para trás no “sistema financeiro há 10 anos, quando quase explodimos a economia mundial”, disse. “Demorou mais tempo em outras áreas. Mas as pessoas estão percebendo a necessidade de uma direção estratégica em áreas como mudança climática.”
Em muitas outras questões também.
Comércio administrado
Nos EUA, republicanos e democratas querem cada vez mais administrar o comércio internacional, em vez de deixá-lo a cargo dos mercados. O presidente dos EUA, Donald Trump, quebrou esse molde, e seus pretensos oponentes não estão inclinados a seguir uma linha menos intervencionista. Quando os candidatos democratas à eleição presidencial deste ano foram questionados em um debate se eliminariam as tarifas sobre a China no primeiro dia, nenhum deles disse “sim”.
De fato, o acordo comercial inicial assinado na semana passada sugere que “quanto mais bem-sucedido o acordo, maior a tendência de economias administradas pelo Estado, tanto na China quanto nos EUA”, segundo um relatório do BofA Global Research.
Enquanto isso, os democratas estão ansiosos para intervir no setor de assistência médica. Se o programa Obamacare tinha como foco a estruturação de mercados privados, a próxima reforma pode envolver gastos públicos diretos - pagos com os impostos mais altos contestados por Dell, fundador da gigante de computadores de mesmo nome.
Houve uma mudança semelhante no ensino superior. Até um dos principais assessores de Trump na área de financiamento estudantil descreveu a maneira dos EUA de financiar diplomas universitários com dívida privada como “doida”.
Trump, que fará um discurso de abertura em Davos na terça-feira, realizou cortes de impostos para empresas e indivíduos, mantendo a ortodoxia republicana desde o governo Ronald Reagan, que era presidente em 1987 quando o encontro anual que acontecia em Davos desde 1971 mudou de nome para Fórum Econômico Mundial. Os altos preços das ações e lucros são comemorados como evidência da prosperidade dos EUA.
"Bem comum"
Mas, em algumas questões, os republicanos não parecem tão favoráveis às empresas como costumavam.
O aumento da concorrência com a China, que Trump tem focado principalmente no comércio, levou alguns republicanos a repensarem o assunto. Uma linha de raciocínio é que, se seu principal rival tem uma política industrial dirigida pelo governo, os EUA também precisam de uma.
O senador Marco Rubio, do Partido Republicano, defendeu esse argumento em uma série de relatórios e discursos. Embora o mercado “sempre atinja o resultado econômico mais eficiente”, às vezes esse resultado pode estar “em desacordo com o bem comum e o interesse nacional”, disse no mês passado.
Na Europa, Alemanha e França - que cunharam o termo ‘dirigismo’ e ‘empreendedor’ - estão pressionando por fusões para criar líderes continentais capazes de competir globalmente em áreas como baterias de carros.
Até o Fundo Monetário Internacional, tradicionalmente um defensor de pouca interferência do governo, trabalha em uma nova estrutura que permitirá mais espaço para autoridades administrarem fluxos de capital e intervirem nos mercados de câmbio.
Economistas do FMI e de outros países também veem um papel maior para os governos administrarem economias com política fiscal. Durante a maior parte da era Davos, os bancos centrais assumiram a liderança, alterando o preço do crédito. Mas as taxas de juros estão estagnadas em baixos níveis há mais de uma década, enquanto empresas e famílias se sentem afetados de qualquer maneira.
(Com a colaboração de Simon Kennedy e Alexandre Tanzi)