Economia

Renato Meirelles: brasileiro está desiludido, não polarizado

"Quem aprende a tomar champanhe não quer voltar para a sidra", diz Renato Meirelles, que estuda comportamento do consumidor brasileiro há 15 anos

O pesquisador Renato Meirelles em São Paulo: "bolso não explica cabeça" (Divulgação)

O pesquisador Renato Meirelles em São Paulo: "bolso não explica cabeça" (Divulgação)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 18 de julho de 2016 às 12h39.

São Paulo - "Quem aprende a tomar champanhe não quer voltar para a sidra; quem aprende o gosto pela alcatra tem dificuldade de voltar pro pão com ovo".

É assim que Renato Meirelles resume o dilema do brasileiro ao se deparar com a recessão após um período longo de bonança.

Após 15 anos à frente do Instituto Data Popular, com foco nas classes mais baixas, Meirelles parte para o Locomotiva, onde pretende ir além da divisão por renda.

"Bolso não explica mais cabeça", diz Renato, com novos dados surpreendentes: entre os 25% mais ricos da população, metade nunca andou de avião e 60% faz compra fiado.

Meirelles diz que a principal crise do Brasil não é econômica, e sim de representatividade, e vê espaço para um candidato outsider em 2018 (mas não Bolsonaro).

Veja a entrevista:

EXAME.com - A nova classe média de que tanto se falou já não explica o Brasil?

Renato Meirelles - A classe C ainda movimenta R$ 1,5 trilhão e representa a maioria absoluta dos consumidores.

O que ficou claro nessa montanha russa de aumento (e queda) da renda e do emprego é que a mistura econômica ficou tão grande que não serve para explicar o comportamento. Bolso não explica mais cabeça.

A classe C passou a experimentar produtos antes exclusivos da classe A e B e houve uma expansão gigantesca da escolaridade média, além de democratização da internet.

No momento em que a crise apertou, essas pessoas tiveram que se reinventar de alguma forma. Porque paladar não retrocede. Do mesmo jeito que o bolso não explica mais a cabeça da classe C, não explica a cabeça da classe A.

EXAME.com - Então o que explica? Geografia ou religião, por exemplo?

Meirelles - O que a gente tem visto é que as pessoas não são de uma classe, elas estão em um determinada segmento de acordo com um olhar que você quiser dar.

Você tem pessoas que amam o Bolsonaro e adoram páginas de pets, por exemplo. Do ponto de vista mais macro, há quanto tempo a pessoa acessa a internet e com qual frequência é um viés mais importante até do que a renda.

Isso traz um fenômeno entre os mais jovens, onde a penetração de internet é praticamente igual entre classe A e classe C, e ao mesmo tempo uma diferença enorme entre os mais velhos de ambas as classes.

Sim, há grandes diferenças regionais, mas muitas vezes a maior diferença é em relação ao tamanho das cidades onde essas pessoas moram, entre regiões metropolitanas versus as que moram no interior. 

EXAME.com - A pesquisa da Locomotiva mostra que 63% dos mais ricos andam de transporte público e que metade dos mais ricos nunca andou de avião. O que explica isso?

Meirelles - O que explica é a velocidade das mudanças que aconteceram no país nos últimos anos.

Você tem 50,3% da classe A e B que é a primeira geração de pessoas com dinheiro da família; nem o pai nem a mãe eram classe A e B e eles são. São pessoas com bolso de classe A e cabeça de classe C.

Até mais do que avião, o maior sinalizador disso é o nível educacional: apenas um terço dessa camada dentro dos 25% mais ricos fez curso superior. O crescimento da renda foi muito mais rápido que do nível educacional e da expansão do repertório.

Isso acontece também pela fonte de renda, já que muitos vieram do empreendedorismo. O crescimento (e redução) da classe C se deu antes de tudo pelo emprego formal, enquanto o da classe A e B foi pelo empreendedorismo. É o dono de bar que ganha 40 ou 50 mil reais, é o dono da distribuidora de água da periferia, do mercadinho, da padaria.

EXAME.com - Imagino que essas pessoas tenderiam a um grande otimismo. Como esse traço tão associado ao brasileiro está reagindo diante da crise?

Meirelles - O otimismo de melhora da vida pessoal é maior do que o otimismo de melhora da economia.

Quando você pergunta para as pessoas o porquê, elas dizem que para o país melhorar, depende dos políticos – e "político você sabe como é". Mas para minha vida melhorar, depende do meu esforço.

A gente vê um crescimento grande do empreendedorismo como valor: “cresci pelo meu trabalho e vou continuar melhorando porque arregaço as mangas ao invés de ficar chorando”. E isso é mais forte nessa camada que ascendeu.

EXAME.com - Então esse é um legado que fica do período de prosperidade?

Meirelles - Sim. Outro legado é o da auto-estima. As pessoas que ascenderam para a elite no passado eram exceções, aquele estereótipo do ‘novo rico clássico’, que fazia de tudo para não falar da onde veio.

Hoje as pessoas se orgulham da sua história e querem ser aceitas com isso. Não querem apagar o passado: têm ele como um valor, o valor de trabalho, por terem conseguido melhorar de vida.

EXAME.com - E como o momento atual se diferencia de outras crises? A queda da renda per capita é a segunda maior do século, mas ao mesmo tempo os benefícios sociais amenizam a crise social.

Meirelles - Sim, mas não é só isso. Você tem pessoas com Bolsa Família, seguro-desemprego e uma rede de proteção do Estado, e que independente da crise mantém um padrão de vida. Isso vale mais para as classes D e E e menos para a classe C.

Por outro lado, essa é a primeira crise em uma geração onde as pessoas começam a ter sensação de perda. Isso não aconteceu na crise de 2008 nem no início dos anos 2000; é um fenômeno recente.

Uma coisa é adiar o sonho da primeira viagem de avião; outra é andar de avião pela primeira vez e ter que voltar pro ônibus.

Quem aprende a tomar champanhe não quer voltar para a sidra; quem aprende o gosto pela alcatra tem dificuldade de voltar pro pão com ovo.

Outra diferença é que as pessoas chegam mais preparadas para lidar com a crise com o acesso à internet, por exemplo, que serve não só para economizar nas compras e pesquisar preço mas também para gerar renda.

É só ver a quantidade de pessoas que ficaram desempregadas e passaram a virar motoristas do Uber ou que passaram a alugar quartos pelo AirBnb, o que está acontecendo muito no Rio de Janeiro com as Olimpíadas.

Na última década, foram 52 milhões a mais que passaram a ter acesso à internet e conseguem transformar seu smartphone usado em fonte de renda. Em 2015 a venda de smartphones usados cresceu 35%. Que categoria no mercado cresceu isso em um ano de crise?

São pessoas com escolaridade média muito maior, o que obriga o mundo corporativo a se reinventar. De um lado, tiveram um aumento da régua de qualidade que passam a exigir de produtos e serviços.

Do outro lado, têm um repertório maior, mais ciência dos seus direitos e mais condições de lutar por eles; as redes sociais viraram um verdadeiro SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor) a céu aberto. O que mudou dessa crise para as outras é o consumidor, hoje muito mais preparado.

EXAME.com - Além de smartphones usados, que outros setores também ganham com a crise? E quais perde mais?

Meirelles - Você tem queda em TV por assinatura, ida ao cinema, viagens e alimentação fora do lar porque muitas vezes as pessoas passam a vender o ticket refeição e levar marmita.

Outros setores que sofrem, mas menos, são aqueles considerados ‘meio’ para conseguir alguma coisa e ter uma vida melhor. Um exemplo é internet e smartphones, já que internet é vista como um serviço de primeira necessidade por todas as classes.

Com os problemas do Fies e a queda do ProUni, vemos queda no setor de educação como um todo, apesar desse continuar sendo um valor muito caro e importante, em especial para as pessoas que melhoraram de vida.

Outro setor que cai indiretamente é o de planos de saúde, já que 1,5 milhão de postos de trabalho foram fechados no ano passado e uma boa parte dos planos são empresariais.

EXAME.com - E como as empresas podem se comunicar com esse novo consumidor?

Meirelles - A primeira mudança que se intensifica é a necessidade de achar os melhores meios para falar com um consumidor cada vez mais segmentado, e de forma horizontal, com uma coerência não tão lógica como no passado.

Os mais jovens tem um apelo de televisão muito menor, vão mais para as redes, e mesmo nelas há fenômenos intertessantes - como o que eu falei do Bolsonaro, ou gente que é a favor da causa feminista e ao mesmo tempo procura blogs de maquiagem, por exemplo. Não existe mais uma coerência nem do ponto de vista econômico nem ideológico entre os grupos formados.

A grande questão é que o consumidor quer ser cada vez mais protagonista das próprias escolhas. No século XX as marcas falavam que "você só vai ser alguém se consumir a minha marca". Esse era o conceito de aspiracional que ditava as campanhas das grandes marcas.

No início de século XXI, vem o marketing de causa: "Eu defendo a sustentabilidade, ou o empoderamento feminino, se você também defende, vem comigo". Agora a gente entra na fase do marketing de identidade, em que as pessoas se veem como as protagonistas e procuram marcas que as apoiem nos seus sonhos e aspirações.

Por que o Brasil é um dos campeões mundiais de selfie? Porque ele quer se ver como protagonista. Não basta fazer uma viagem, ou ir a uma passeata, eu tenho que me mostrar lá.

Ou as marcas entendem que a única forma de hoje se relacionar é aceitar esse protagonismo e se colocam como parceiras do consumidor, fazendo uma curadoria de conteúdo para que ele chegue às suas conclusões, ou essas marcas vão estar fora do jogo.

EXAME.com - E na política? Fala-se muito em polarização, mas parece que a grande massa não se identifica com nenhum dos pólos.

Meirelles - A grande maioria não está polarizada. Você tem aí 11-12% contra o impeachment e a mesma parcela a favor.

Essa parcela engajada politicamente tem em geral escolaridade e renda maiores do que a da população em geral e estão longe de representar o eleitorado médio, que está completamente desiludido com a política.

Eles se sentem não representados. A crise econômica é séria, mas a maior crise é de representatividade e perspectiva.

Hoje 9 de cada 10 brasileiros afirmam que a gente vive uma crise de perspectiva; a questão é de não ver luz no fim do túnel e não enxergar em nenhum dos entes políticos que estão postos a solução dos seus problemas.

O mesmo vale para as empresas. 7 de cada 10 brasileiros não conseguem dizer o nome de nenhuma empresa que esteja ao seu lado no momento de crise.

EXAME.com - Você acha que isso abre espaço para um candidato outsider?

Meirelles - Não tenho dúvida de que o espaço é propício para um outsider, mas ele pode ser qualquer coisa.

Pode vir do empresariado, pode ser um populista como foi o Collor ou pode ser um político de menor expressão que consiga se colocar no lugar das pessoas e vocalizar o sentimento de que é necessário algo bem diferente de tudo que está aí.

EXAME.com - Um perfil mais radical e autoritário como Bolsonaro, por exemplo?

Meirelles - Bem difícil porque um Bolsonaro tem teto de crescimento. Seu discurso é relacionado a costumes e não de melhora de vida das pessoas. E elas estão mais preocupadas com futuro do que com um balanço do que aconteceu no passado.

EXAME.com - Então por enquanto o cenário para 2018 é muito turvo?

Meirelles - O que a gente deve ver na eleição de Prefeitura é uma demanda grande por reinvenção e por políticos que se coloquem de forma diferente em relação ao futuro. E tendo a achar que o próximo Presidente da República em 2018 nunca foi candidato a presidente.

Acompanhe tudo sobre:Classe AClasse CClasse médiaConsumidoresConsumoCrise econômicaEleiçõesEleições 2016estrategias-de-marketingJair BolsonaroPolítica no BrasilPolíticosPolíticos brasileirosRecessão

Mais de Economia

Brasil será menos impactado por políticas do Trump, diz Campos Neto

OPINIÃO: Fim da linha

Explosões em Brasília elevam incertezas sobre pacote fiscal e sobre avanço de projetos no Congresso

Após mercado prever altas da Selic, Galípolo afirma que decisão será tomada 'reunião a reunião'