Quem leva na cabeça é o Brasil
Em vez de atacar as multinacionais, o imperialismo ou os Estados Unidos, os governantes de esquerda da América Latina escolhem Lula e os brasileiros como seu primeiro alvo
Da Redação
Publicado em 18 de março de 2010 às 11h26.
É uma situação que, de tanto se repetir, parece estar se transformando num hábito. Toda vez que lideranças de esquerda, ou tidas como tal, assumem o governo em algum país da América do Sul, o primeiro a levar na cabeça é o Brasil. Não deveria ser o contrário? Deveria. Afinal das contas, o Brasil é o primeiro país do continente a ter um operário na Presidência da República; seu partido tem um programa socialista, ou garante que tem; seu governo defende todos os movimentos sociais, apóia as causas populares e prega a favor dos pobres. Seria de esperar, então, que contasse com a admiração e a solidariedade dos companheiros latino-americanos. Mas não é o que acontece. Os companheiros passam o tempo todo falando contra o imperialismo, as multinacionais e os Estados Unidos, mas, assim que ganham a eleição presidencial em seus países, deixam isso tudo de lado e vêm brigar direto com o Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, imagina-se, deve andar cansado dessa história. Por que com a gente, outra vez? Por que com a gente, sempre?
Seria perfeitamente compreensível se o presidente fizesse essas perguntas a cada vitória da esquerda continental. Desde que entrou no Palácio do Planalto vem tendo de agüentar o coronel Hugo Chávez e seu socialismo bolivariano, na Venezuela. É uma conta que inclui, entre diversos outros itens, insultos ao Congresso Nacional, a criação constante de casos com a Petrobras, ataques públicos ao programa brasileiro de biocombustíveis e propostas como um prodigioso gasoduto para levar gás da Venezuela até o Uruguai, passando pelo Brasil -- o "Transpinel", como dizem os engenheiros da própria Petrobras, que Chávez escalou como sócia dessa idéia. Depois veio o presidente Evo Morales, da Bolívia, que expropriou ativos da Petrobras -- sempre ela --, aumentou os preços do gás vendido ao Brasil e vem, a cada conversa, com novos problemas e novas exigências. À Venezuela e à Bolívia soma-se a Argentina do casal Kirchner, que não está satisfeita com nada, nunca, em suas questões com o Brasil. Agora chegou a vez do Paraguai. Mal tinham saído os resultados da eleição presidencial, o candidato vencedor, Fernando Lugo, já foi dizendo que quer aumentar o preço da eletricidade fornecida ao Brasil pelas turbinas da Itaipu Binacional, empresa da qual o Paraguai tem 50% das ações. Lugo, naturalmente, é um homem de esquerda, como Chávez, Morales, os Kirchner e Rafael Correa, presidente do Equador -- país que, para sorte de Lula, não tem fronteira com o Brasil.
Os governos de esquerda da América do Sul pressionam porque sabem, por experiência, que o governo do Brasil costuma piscar primeiro. Até agora tem dado certo para eles; não há motivos, portanto, para mudarem de conduta. No caso da reivindicação apresentada por Fernando Lugo, o retrospecto está com cara de se confirmar. É verdade que o presidente Lula garantiu que o tratado existente entre o Brasil e o Paraguai a respeito da hidrelétrica de Itaipu não será revisto, o que dá a impressão de uma firmeza ausente nas disputas anteriores. Mas o novo presidente do Paraguai não está interessado em mudar tratados -- o que ele quer é mudar os preços da energia vendida ao Brasil, e isso pode ser feito sem alterações no acordo entre os dois países. Já parece contar, para tanto, com a compreensão e o apoio do ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores. Lugo ainda nem é presidente -- só vai tomar posse em 15 de agosto --, mas desde já recebeu do Itamaraty garantias de que o Brasil vai pagar "uma remuneração adequada" pela energia de Itaipu. "Isso é justo", disse Amorim. Estaria o Brasil, então, pagando hoje um preço injusto? Nesse caso, levando-se em conta a ansiedade do governo brasileiro em comportar-se com justiça, não fica claro por que as tarifas praticadas atualmente ainda não tinham sido aumentadas. O chanceler não ofereceu mais informações a respeito. Não foi mais esclarecedor, também, quando disse que é um "absurdo" que a energia elétrica distribuída em Assunção seja ruim, quando o Paraguai é sócio da "maior hidrelétrica do mundo". E o que o Brasil tem a ver com isso? Desde que Itaipu gerou seu primeiro quilowatt, o Brasil jamais deixou de pagar um único centavo pela energia que compra do sócio; se até hoje o Paraguai não usou esse dinheiro para melhorar sua rede de transmissão, é porque não quis, e não porque os preços são injustos.
Fernando Lugo tem o direito, claro, de buscar tarifas melhores para seu país; é certo, também, que até agora tem feito isso de maneira mais séria e razoável do que Hugo e Evo. A questão, porém, não está na personalidade de cada vizinho, e sim nos fundamentos que o Brasil tem para defender seus interesses. Dentro do próprio governo, o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tomalsquim, acha que tais fundamentos são muitos e são claros. "Para a construção de Itaipu, o Paraguai só entrou com a metade que lhe cabe da água do rio Paraná", diz Tomalsquim. A usina custou 12 bilhões de dólares, dos quais o Paraguai só colocou 50 milhões de dólares; quem se endividou para construir Itaipu foi o Brasil; quem pagou essa dívida foram os brasileiros. "O Paraguai ganhou um empreendimento que hoje vale 60 bilhões de dólares", lembra o presidente da EPE. "E foi o consumidor brasileiro quem viabilizou a construção da usina, com o pagamento, nestes anos todos, de uma cota obrigatória de consumo. Não é justo, agora, que ele faça um sacrifício a mais."
Se a questão é de justiça, portanto, o ponto de vista do Itamaraty não é o único. Na divergência, o melhor que o presidente Lula tem a fazer é pensar em quem, de fato, ele representa. Há poucas dúvidas quanto a isso. Lula não foi eleito para cuidar dos interesses de paraguaios ou bolivianos, mas sim dos 190 milhões de brasileiros.
Onde fica a bolsa?
O diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Haroldo Lima, vive num mundo à parte. Acredita, pelo que ele próprio diz, que a ANP é uma repartição pública como qualquer outra do governo federal -- quando, segundo o que dizem seus estatutos, é uma autarquia na qual os diretores têm a obrigação de defender os interesses do público em geral, tarefa que devem executar zelando pelo cumprimento das leis que regulam o setor, e não servindo aos interesses do governo. Dá a impressão, também, de acreditar que a Petrobras. é outro departamento burocrático da administração, e não uma empresa com acionistas, obrigações junto a eles e o dever de obedecer às regras que regulam o mercado de capitais. Parece convencido, por fim, de que não existe nenhuma ligação entre declarações de um diretor-geral da ANP e mudanças na cotação das ações da Petrobras na bolsa de valores -- ou, se existir, que isso não é da sua conta.
Dias atrás, como se sabe, Lima disse que uma área marítima atualmente sob pesquisa da Petrobras poderia ser o terceiro maior campo de petróleo do mundo, com reservas acima de 30 bilhões de barris. Não tinha, para sustentar a revelação que fez, nenhuma informação específica da Petrobras ou qualquer tipo de fundamentação oficial; segundo contou depois, apenas repetiu algo que tinha lido numa revista estrangeira. É óbvio que as ações da Petrobras deram um salto imediato, no Brasil e lá fora, mas o diretor-geral da ANP acha que não aconteceu nada de mais. "Sou uma autoridade", disse ele. "Não sou subordinado à Comissão de Valores Mobiliários. Sou membro do governo." O sujeito oculto, nesse palavreado todo, é simples: "Quem manda aqui sou eu e, por isso, falo o que bem entender". É por ser uma autoridade, justamente, que Lima tem a obrigação de ser o primeiro a respeitar as normas. Queira ele ou não, a Petrobras é uma empresa pública com ações negociadas em bolsa e, como tal, sujeita às regras da CVM; da ANP, que a qualquer momento pode provocar alterações radicais no valor dessas mesmíssimas ações, espera-se que cuide muito bem do que diz e do que faz. Não adianta nada Lima puxar sua carteirinha de autoridade e dizer que é "membro do governo". Ele é pago para proteger o interesse público, não para agradar a quem julga serem seus chefes ou para falar grosso. Agindo assim, consegue ser apenas um constrangimento -- para a ANP, a Petrobras e o próprio governo.
O diretor-geral da ANP, ao fim de suas explicações, disse que nem sabe onde fica "essa bolsa de valores". Ele pode não saber, mas muita gente sabe -- e como sabe.