Economia

Quebra de safra?

A Embrapa mantém a qualidade em pesquisa, mas a longa estagnação em suas verbas pode afetar todo o agronegócio

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h57.

O cientista catarinense Rodolfo Rumpf mostrava-se ansioso ao falar sobre manipulação de embriões a um grupo de veterinários durante um curso na Fazenda Sucupira, no Distrito Federal, em julho deste ano. Não pela responsabilidade de ministrar aulas -- ele já havia dado 22 cursos daquele tipo antes. O motivo da ansiedade estava ali perto, na mesma fazenda. Era a delicada gestação da bezerra Lenda, que nasceria dois meses depois, em 4 de setembro, tornando-se o terceiro clone bovino brasileiro. Rumpf chefia a equipe responsável por essa conquista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Dar aulas bem no meio do trabalho, para o pesquisador Rumpf, tornou-se uma necessidade, e não uma escolha. A crescente sofisticação das técnicas de reprodução animal encarece a pesquisa. Assim, a equipe de Rumpf ministra quatro cursos pagos por ano, além de procurar verba na iniciativa privada e em outras fontes, como o CNPq. Atualmente, os cientistas da Embrapa passam 60% de seu tempo buscando dinheiro. "Se contássemos apenas com o orçamento da empresa, não teríamos dinheiro suficiente nem para o primeiro clone", diz Rumpf.

Em princípio, a exigência de que o cientista seja também um gestor não caracteriza um problema. A ameaça só passa a existir quando a busca por capital passa a roubar um tempo precioso, que deveria ser dedicado à pesquisa e à inovação. Revela-se aí uma faceta do agronegócio brasileiro normalmente escondida pelos anúncios de recorde de safra: há uma crônica escassez de dinheiro na Embrapa, a maior criadora nacional de tecnologia para a agricultura e a pecuária. O orçamento destinado à estatal neste ano -- 733,3 milhões de reais -- aumentou apenas 1% em relação a 2002. Desde 1997, cresceu 50%. O setor cujas demandas ela tem de suprir, a agropecuária, ficou 30% maior no mesmo período. Parte do orçamento da Embrapa vem sendo retida no Tesouro Nacional, pela necessidade de formação de superávit nas contas públicas. No ano passado, por exemplo, a empresa deixou de receber 28 milhões de reais da verba a que tinha direito, o equivalente a um terço de todo o gasto e investimento anual em melhoramento de culturas estratégicas, como a soja e o milho. O agronegócio brasileiro -- ajudado pelas conquistas da Embrapa -- vai muito bem no presente. Mas o que acontecerá no futuro se as coisas permanecerem como estão?

O valor que chega à empresa, embora crescente ao longo do tempo, é insuficiente para cobrir as despesas e atender às demandas cada vez mais complexas do agronegócio brasileiro. "Se quisermos que a Embrapa continue o trabalho de pioneirismo e mantenha o quadro de cientistas, teremos de aceitar que os custos com pesquisa subirão", diz o economista e agrônomo Decio Zylbersztajn, coordenador do Programa de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial da Universidade de São Paulo. "O importante é lembrar que todo o investimento feito na Embrapa até hoje já se pagou diversas vezes."

A empresa, criada há três décadas, gera tecnologia nos mais diversos formatos. Projeta máquinas para reduzir o esforço da colheita manual, desenvolve programas de computador, melhora processos de gestão rural, refina a genética dos rebanhos. Além disso, leva ao mercado continuamente seu mais famoso produto -- as sementes melhoradas. Nos últimos cinco anos, foram mais de 600 delas. Essas sementes precisam ser aprimoradas continuamente para se adaptar às condições das novas fronteiras agrícolas e para resistir a novas pragas. Todo o trabalho é de longo prazo. O algodão colorido que a Paraíba plantará a partir deste ano tem valor de mercado 30% superior ao do tradicional, mas precisou de dez anos para ser desenvolvido. O esforço compensa: no caso da soja, as sementes da Embrapa respondem por metade da área plantada no país, e a produtividade em quilos colhidos por hectare cresceu 8% desde o ano passado.

Insumos assim têm participação decisiva no sucesso do agronegócio brasileiro, que rendeu ao país um saldo positivo de 25 bilhões de dólares nos últimos 12 meses e deve ser responsável por uma safra de 122 milhões de toneladas em 2003. "O sucesso do agronegócio brasileiro se apóia num tripé: gestão eficiente, ação mercadológica e tecnologia", diz Luiz Antonio Pinazza, diretor da Associação Brasileira de Agronegócio (Abag). "A Embrapa, com seu corpo de pesquisadores altamente qualificados, é fundamental para o apoio tecnológico." Por isso, oscilações no investimento em pesquisa prejudicam diretamente a qualidade da agricultura e da pecuária feitas no país -- talvez não na safra seguinte, mas, seguramente, no decorrer dos anos.

Diante da eterna disputa por verba no setor público, é natural que surjam as seguintes questões: se o agronegócio vai tão bem, não há entidades que necessitam mais de capital público do que a Embrapa? Por que o setor privado, que está capitalizado, não arca com a pesquisa? De fato, parte do problema está na resistência da iniciativa privada brasileira (não só no agronegócio) em remunerar a ciência. "A Embrapa tem de se aparelhar para captar mais recursos do setor privado", diz Zylbersztajn, da USP. O investimento dos empresários tem crescido, como mostram entidades de pesquisa como a Fundação Mato Grosso (criada há dez anos por fazendeiros do Centro-Oeste para desenvolver sementes e inovações agrícolas), mas há espaço para que a Embrapa tenha mais colaboração e melhor remuneração no desenvolvimento de novas tecnologias.

O capital privado, porém, não resolverá o problema. A Embrapa faz muita pesquisa básica, de alto risco e longo prazo. "O sucesso colhido hoje foi plantado há dez ou 15 anos", diz Luiz Antônio Barreto de Castro, chefe da unidade de recursos genéticos e biotecnologia da empresa. Em áreas assim, no mundo todo, o governo tem papel fundamental -- mas, no Brasil, é desempenhado de forma irregular. A Embrapa, criada em 1973, teve um período de forte investimento até meados dos anos 80. Começou aí uma fase de contenção, interrompida por mais um grande salto no orçamento entre 1994 e 1997. De lá para cá, as verbas estagnaram. "Só se faz boa ciência e boa tecnologia com investimento consistente, ao longo de décadas", afirma Castro.

O problema já foi apresentado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A diretora executiva da Embrapa, Mariza Barbosa, alertou no início do ano que o investimento poderia cair até 16% em relação a 2002 caso se confirmassem os primeiros números de restrição do orçamento. Lula afirmou que todo o orçamento previsto seria liberado. Até o fim do primeiro semestre, 41% da verba reservada para este ano havia sido gasta ou investida -- mas cientistas da instituição ouvidos por EXAME reclamam que o custeio não deixa dinheiro para novos investimentos. "Para nós, este tem sido um ano parado", diz uma pesquisadora de um dos setores estratégicos da Embrapa. "A liberação do orçamento, como o presidente prometeu, não ocorreu até agora", afirma Castro.

O engenheiro agrônomo Clayton Campanhola, presidente da Embrapa, acredita que a fase de arrocho seja passageira. "O período mais difícil foi até abril deste ano", afirma. Segundo Campanhola, nesse período somaram-se duas agravantes: a adaptação do novo governo e a necessidade de cobrir 22 milhões de reais de contas a pagar da gestão anterior. A partir de maio, no entanto, o fluxo de dinheiro destinado à Embrapa teria começado a se regularizar. "Nosso orçamento de custeio em 2004 vai crescer 30%, para 213 milhões de reais", diz Campanhola. "Só o orçamento de biotecnologia subirá 65%, para 48 milhões." Ao menos, essa é a promessa de Lula.

Diante do desafio de manter a pesquisa andando, a direção da empresa ganhou liberdade. No Plano Plurianual de investimento do governo federal de 2000 a 2003, a Embrapa tinha obrigações detalhadas. Suas tarefas se desdobravam por cerca de 40 programas bem específicos, cada um com sua verba. No novo Plano Plurianual, que vai vigorar de 2004 a 2007, o número de incumbências aumentou -- mas a empresa ganhou espaço de manobra, já que as obrigações foram agrupadas em apenas quatro programas, bem genéricos. Um deles diz respeito ao agronegócio profissional, outro ao cuidado ambiental, e dois referem-se à inserção social e à transferência de tecnologia.

É justamente dessas duas últimas áreas que vem um novo fator adverso. O governo quer mais dedicação da Embrapa à transferência de tecnologia para beneficiar pequenos produtores rurais. Isso não significa menos investimento no agronegócio tradicional, de grandes resultados. Significa, no entanto, dedicação renovada, em tempo e energia, ao trabalho de difundir técnicas para o pequeno produtor. "Temos tecnologias prontas para beneficiar a agricultura familiar, mas que são pouco aproveitadas", diz Campanhola. Para conseguir empenho na nova missão, Campanhola vem promovendo uma mudança cultural na Embrapa. Em julho, teve início um grande movimento de troca de cargos na estatal. Até março de 2004, serão substituídos 28 dos 36 chefes de departamento, ou quase 80% do segundo escalão.

A estratégia de levar tecnologia de forma mais eficiente aos pequenos produtores tem sentido. Pelas contas do Ministério da Agricultura, quase metade dos 4,5 milhões de propriedades rurais no Brasil poderia dar um salto de produtividade se tivesse acesso a tecnologias já existentes -- por exemplo, métodos para controlar pragas (ausentes em 66% das propriedades) ou corrigir o solo (ausentes em 38%). "O desafio do Brasil é transformar toda agricultura em agronegócio, e agronegócio não precisa ser grande", diz Zylbersztajn, da USP. "Mesmo quando não há grandes números, a capacitação na agropecuária tem impacto local significativo."

A equipe que assumiu o comando da Embrapa quer acelerar o fechamento de convênios, para que governos municipais, universidades e institutos de pesquisa ajudem a disseminar o conhecimento estocado. Ele se distribui por áreas como feijão, mandioca, hortaliças e caprinos. "A Embrapa tem condições de apontar onde está a solução de problemas locais e coordenar os esforços de outras empresas, de cooperativas, municípios e estados", diz Ivan Wedekin, secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura.

Embora a nova missão seja pertinente, o modo de executá-la pode trazer riscos. Em empresas de pesquisa, a continuidade dos trabalhos é vital -- e, para alguns críticos, a extensa troca de cargos promovida pela nova direção da Embrapa terá conseqüências ruins. Campanhola não considera exagero trocar 80% dos chefes de departamento. "O ideal seria trocar todos", diz. Ele manterá no cargo apenas os chefes que estavam em seu primeiro mandato (os chefes de unidades da Embrapa tinham mandato de quatro anos, prorrogáveis por mais quatro. Em 2003, o mandato foi reduzido para dois anos). "Muitos pesquisadores estão angustiados com as mudanças", diz um cientista que está na Embrapa desde os anos 70.

Assim, a nova missão, mesmo sem comprometer a distribuição dos investimentos em pesquisa da Embrapa, tem potencial para prejudicar o andamento dos trabalhos, dada a intensidade da mudança. Caberá a Campanhola e sua equipe mostrar o contrário. "Acho que o Brasil muda excessivamente quando há troca de governo, e prazos de quatro ou oito anos podem ser curtos quando se trata de pesquisa", diz Antônio Bahia Filho, chefe da unidade de milho e sorgo, que deixará o cargo até dezembro.

O processo de seleção de chefes promete novas emoções -- os critérios foram modificados e há reclamação de excessiva interferência do sindicato. Trata-se de um sistema aberto e premiado em 1996 pela Escola Nacional de Administração Pública num concurso de experiências inovadoras na gestão pública federal. Consiste em exigir dos candidatos, que podem ser de fora da companhia, um plano de trabalho para a unidade, além dos requisitos curriculares. A proposta tem de ser defendida oralmente diante de uma banca que também conta com profissionais de fora da Embrapa. A atual diretoria incluiu na avaliação dos candidatos um novo item -- o potencial gerencial, que se destina a medir a capacidade do cientista de atuar como gestor.

O potencial gerencial de um candidato não é tão fácil de medir quanto as pesquisas listadas em seu currículo. Após assistir às primeiras cinco nomeações, um dos chefes que serão substituídos reclamou do processo de escolha. "Há uma influência excessiva do sindicato, que eu não me lembro de ter visto antes", diz ele. "O sindicato deveria representar os interesses dos funcionários, e não assumir a gestão da empresa."

O sindicato, no caso, é o Sinpaf, que há 14 anos representa os 8 530 funcionários da Embrapa e também os de outras instituições de pesquisa agropecuária. Os críticos de Campanhola defendem a tese de que está havendo uma politização da gestão da empresa e resolveram iniciar discussões para formar um novo sindicato, que representaria apenas os 2 450 pesquisadores da companhia.

Toda essa discussão, com fortes tons partidários e pitadas de vaidade, refere-se a meios. No que diz respeito aos fins, a Embrapa está sintonizada como sempre com o agronegócio profissional. Campanhola acredita, por exemplo, que seja necessário avaliar com mais cuidado o modelo de assentamento de sem-terra no Brasil. "Commodities como o milho não geram renda suficiente em pequenas áreas", diz ele. Em sua opinião, deveriam ser feitas avaliações de mercado local, visando à geração de renda, para decidir em que capacitar o pequeno produtor de determinada área. "O indicador do nosso desempenho será o grau de dependência do pequeno produtor", diz Campanhola. "Quanto menos ele precisar de cupons-alimentação e renda mínima, maior será nosso sucesso." Se bem conduzidas, as mudanças na Embrapa poderão até reduzir as tensões no campo. A empresa, assim, agregaria mais um à sua longa lista de serviços prestados ao país. Para isso, no entanto, o dinheiro terá de chegar até as bancadas dos laboratórios.

DESCOMPASSO
O orçamento da Embrapa aumentou 11% desde 2000. O setor que
ela atende o de agronegócios cresceu 35% no mesmo período
Orçamento da Embrapa (em milhões de reais)
2000590
2001 652,9
2002 697
2003 654,4*
*Até agosto
PIB da agropecuária (em bilhões de reais)
2000 75,2
2001 84,4
2002 96,8
2003 101,4**
**Estimativa 
Fontes: Embrapa, IBGE e Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abasteciment
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