O progresso humano que ninguém percebe
Sanitarista sueco sustenta que divisão entre “países em desenvolvimento” e “países desenvolvidos” ignora os avanços socioeconômicos que derrubaram pobreza
Da Redação
Publicado em 7 de julho de 2018 às 10h01.
Última atualização em 7 de julho de 2018 às 10h03.
Factfulness: Ten Reasons We’re Wrong About the World — and Why Things Are Better Than You Think
Autor: Hans Rosling, com Ola e Anna Hosling
Editora: Sceptre
Páginas: 342
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Durante anos, o médico, professor universitário e consultor sueco Hans Rosling ministrou palestras em vários países sobre os avanços socioeconômicos globais, usando gráficos animados para mostrar a rápida transformação ocorrida no mundo, principalmente em regiões pobres da África e da Ásia. Durante suas apresentações, Rosling sempre pedia à plateia – economistas do Banco Mundial, gestores públicos da ONU, empresários e políticos no Fórum Econômico de Davos ou estudantes universitários – para responder a uma bateria de 12 testes (*veja o teste ao final do texto) sobre a evolução dos indicadores de mortalidade infantil, expectativa de vida, índice de escolarização feminina e renda familiar, entre outras questões. O resultado, independentemente do público, era sempre constrangedor, com baixíssimo índice de acertos.
A mensagem passada por Rosling era simples e direta: a maioria das pessoas, incluindo especialistas, não tem a mínima ideia do acelerado progresso humano ocorrido nas últimas décadas. Pior: a nossa visão do mundo – desatualizada e preconceituosa – faz com que organizações internacionais e executivos privados proponham investimentos e soluções baseadas em premissas erradas, sem levar em conta o rápido desenvolvimento de várias regiões tidas como miseráveis, mas hoje inseridas no mercado mundial.
Diagnosticado com um câncer no pâncreas em fevereiro de 2016, Rosling abandonou as viagens e palestras para se dedicar a uma última missão: escrever um livro que resumisse o trabalho de toda sua vida. Para isso, contou com a ajuda do filho e da nora, os estatísticos Ola e Anna Rosling, que haviam desenvolvido o software Trendalyze, adquirido em 2007 pelo Google, que gera os gráficos animados de indicadores socioeconômicos de suas palestras.
Rosling morreu em fevereiro do ano passado, aos 68 anos. Mas seu legado formidável está descrito em seu livro póstumo editado por Ola e Anna, Factfulness: Ten Reasons We’re Wrong About the World — and Why Things Are Better Than You Think (“Fatos plenos: dez razões por estarmos errados sobre o mundo – e por que as coisas são melhores do que pensamos”, numa tradução livre). Como o título sugere – o termo “factfulness” foi criado por Rosling –, é impossível avançar na leitura da obra sem ficar perplexo com a incapacidade humana de enxergar o óbvio.
De início, é importante deixar claro que o objetivo do autor não é sair denunciando a ignorância alheia. O que ele propõe é uma nova forma de entender o mundo, baseada em dados oficiais atualizados sob uma perspectiva histórica e usando como critério a renda familiar, e não a tradicional classificação de países em “desenvolvidos” e “em desenvolvimento”, criada pela ONU em 1965. Rosling cumpre a tarefa com uma narrativa clara e divertida, mesclando inúmeros gráficos com sua experiência em regiões miseráveis do planeta e memórias da infância numa Suécia longe do grau de desenvolvimento de hoje para reforçar sua mensagem.
Uma das maiores referências mundiais em saúde pública, Rosling morou durante anos no interior de Moçambique, onde atendia no único hospital disponível numa região com 300.000 habitantes. Descobriu a causa de um surto de paralisia em regiões da África (causada pelo consumo de mandioca em época de seca) e ajudou a combater a epidemia de Ebola na Libéria.
Depois, passou a conciliar a carreira de professor universitário no renomado Karolinka Institutet, de Estocolmo, com a de consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS), da Unicef e do Banco Mundial. Rosling também ajudou a criar a filial sueca dos Médicos Sem Fronteiras e, com Ola e Anna, a Fundação Gapminder – que usa informações de bancos de dados da ONU e dos países para promover projetos voltados para o desenvolvimento social, econômico e ambiental. Carismático e inquieto, Rosling ficou famoso por suas palestras de formato TED, que viralizaram na internet, com mais de 35 milhões de visualizações.
Mudança revolucionária
A ideia de escrever o livro surgiu há 20 anos, mas Rosling foi deixando-a de lado devido às viagens e outros compromissos inadiáveis. Em meados de 2015 começou a tocar o projeto, com a participação de Ola e Anna. O plano era escrever uma obra ambiciosa e extensa, sem prazo para ser concluída. No entanto, o diagnóstico da doença no meio do caminho alterou o projeto. Rosling passou os últimos meses de vida dedicados à obra, apesar da debilitação física causada pelo tratamento médico. Por isso, o livro limita-se a esmiuçar a principal proposta defendida por Rosling: a necessidade de pôr fim à atual divisão socioeconômica dos países seguida pela ONU e outros organismos internacionais.
Segundo ele, ao ignorarmos a óbvia diferença socioeconômica dentro de cada país ou região, não só reforçamos um conceito generalista estabelecido 50 anos atrás como deixamos de valorizar os avanços obtidos, que foram grandes e num curto intervalo de tempo. Há 20 anos, por exemplo, 29% da população mundial vivia na pobreza extrema. Hoje, são apenas 9%. “Isso é verdadeiramente revolucionário, considero a mudança mais importante que ocorreu no mundo em toda minha vida”, escreveu Rosling na introdução do livro.
A solução, de acordo com o autor, é oficializar a divisão do mundo por níveis de renda familiar, e não por índice de desenvolvimento dos países. Para ser didático, Rosling propõe imaginar uma “Rua do Dólar”, onde “todas as casas estão enfileiradas pelo nível de renda familiar, os mais pobres vivendo à esquerda e os mais ricos à direita da calçada”. Assim, no nível 1 (pobreza extrema) estão as famílias com renda per capita de até 2 dólares por dia.
Hoje, esse contingente é formado por 1 bilhão de pessoas. No nível 2, estão as com renda per capita entre 2 e 8 dólares por dia, totalizando 3 bilhões de pessoas. As famílias com renda per capita entre 8 e 32 dólares por dia ocupam o nível 3, somando 2 bilhões de pessoas, enquanto as que ganham acima de 32 dólares por dia – 1 bilhão de pessoas, a elite mundial – estão no nível 4.
Por essa divisão, Rosling observa que mais de 5 bilhões de pessoas, ou 75% da população mundial, estão fora do conceito padrão de “ricos” e “miseráveis”, vivendo em algum lugar no meio da escala de renda – e, por essa razão, subestimados pelo modelo da ONU. “Não são propriamente o que conhecemos como classe média, mas decididamente não vivem na extrema pobreza. Os filhos vão para a escola, são vacinados, os pais têm em média dois filhos e a família, dependendo do nível de renda, se planeja para comprar uma geladeira, um carro ou ir para o exterior”, escreveu.
Para Rosling, os valores e o padrão de consumo de famílias com um mesmo nível de renda são semelhantes na China, na Colômbia ou na Nigéria. Reside aí o ponto central de sua argumentação: o que define os hábitos, a cultura e o desenvolvimento humano, ou seja, o avanço social, está diretamente ligado à renda da família. Rosling observa, por exemplo, que uma família no nível 1, onde o índice de escolaridade é baixo ou nulo, a média de filhos é de cinco por casal. Nos demais níveis, onde as famílias conseguem obter uma condição de vida melhor, a média já fica em torno de dois filhos por casal.
A mesma lógica se aplica a outros indicadores, de escolaridade à taxa de vacinação. “Estatísticas mostram que metade da queda de mortalidade infantil é atribuída ao aumento do número de mães que aprenderam a ler e a escrever, ou seja, não é preciso bolar soluções inovadoras para acabar com a pobreza extrema, apenas melhorar a renda da família”, assegura.
Rosling passou anos lutando para convencer as principais organizações internacionais a adotar o modelo de renda familiar para medir o desenvolvimento socioeconômico global. Na primeira palestra que fez para funcionários do Banco Mundial, em 1999, ele advertiu que o rótulo “mundo desenvolvido” e “mundo em desenvolvimento” já não era mais válido. Foram necessários 17 anos e outras 14 palestras internas para o banco finalmente adotar a divisão do mundo em quatro grupos de renda. A ONU e outras organizações globais, porém, ainda resistem.
A África – continente gigantesco de 54 países e 1 bilhão de habitantes, com diferentes níveis de renda – é o melhor exemplo dessa visão distorcida. Para Rosling, não faz mais sentido falar em “países africanos” ou “problemas africanos” – o que explica situações ridículas, como a epidemia de Ebola, na Libéria, ter afetado o turismo no Quênia, do outro lado do continente, sendo que os dois países são separados pela mesma distância entre Inglaterra e Irã.
A obra estimula uma oportuna reflexão sobre os motivos que levam a maioria das pessoas a desconhecer esse progresso socioeconômico global. Rosling alinha alguns argumentos, e para desenvolvê-los dividiu o livro em dez capítulos, cada um abordando um componente (medo, generalização, culpa, fatalismo, entre outros) que, segundo ele, explicam o fato de a maioria das pessoas enxergar o mundo de uma forma mais assustadora, mais violenta e mais desesperançosa do que realmente é. “O ser humano tem um forte instinto dramático em direção ao pensamento binário, uma urgência em dividir as coisas em dois grupos distintos, com um vazio entre eles”, escreveu.
Ele também observa que a maioria das pessoas acha que hábitos culturais, religiosos ou sociais são imutáveis – conceitos que, segundo o autor, a melhoria de renda e os avanços socioeconômicos ao longo dos anos tratam de demolir. “Meu avô, que nasceu numa época em que a Suécia ainda era um país pobre, teve sete filhos e jamais trocou uma fralda de criança nem lavou a louça, algo impensável hoje na sociedade sueca”, conta.
Embora surpreendente, o livro de Rosling peca por não apontar razões econômicas, políticas, sociais ou institucionais objetivas que expliquem esse progresso em tão pouco tempo, limitando-se a narrar como o mundo está mudando e como isso afetará o futuro.
Outra obra recente preenche essa lacuna: o elogiadíssimo Enlightenment Now: The Case for Reason, Science, Humanism, and Progress (“Iluminismo agora: o caso da razão, da ciência, do humanismo e do progresso”, numa tradução livre), do psicólogo e linguista americano de origem canadense Steven Pinker, que leciona em Harvard. Assim como Rosling, o livro de Pinker traz gráficos e indicadores para reforçar a mensagem de que a saúde, a prosperidade, a paz e o conhecimento estão em ascensão no mundo. Pinker, porém, faz uma profunda reflexão sobre os motivos desse avanço, ao qual atribui a um “presente do Iluminismo” – a convicção de que a razão e a ciência podem melhorar o florescimento humano.
Mais objetivo, Rosling ignora fórmulas prontas para justificar o crescimento socioeconômico global. Sobram críticas para Cuba – que tem um excelente modelo de saúde preventiva, mas um regime político ditatorial e avesso à contestação – e também para os Estados Unidos, que resistem criar um sistema de saúde universal. Segundo ele, os Estados Unidos gastam mais recursos per capita em saúde do que qualquer outro país do mundo. Mesmo assim, a expectativa de vida de um americano é inferior a de outros 39 países, “o que confirma que o mercado não é solução para tudo”.
Provocador, Rosling põe em xeque até conceitos caros ao Ocidente. Segundo ele, dos 10 países com mais rápido crescimento econômico recente, 9 têm baixo índice de democratização. Na era do politicamente correto, não deixa de ser irônica a constatação de que provavelmente existem mais de dez razões para estarmos errados sobre o mundo.
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(*)
Teste seu conhecimento sobre o avanço socioeconômico global
Rosling submetia as plateias de suas palestras ao teste abaixo. Ele brincava que todos concorriam com um chimpanzé – simbolizado pela chance de acertar cada questão no ‘chute’, de 33,3%. No resultado final, a maioria dos participantes tinha índice de acertos inferior ao do chimpanzé
1. Nos países de baixa renda, quantas meninas concluem o ensino fundamental?
A: 20% B: 40% C: 60%
2. Onde vive a maioria da população mundial?
A: Países de baixa renda B: Países de renda média C: Países de alta renda
3. Nos últimos 20 anos, a proporção da população mundial que vive em extrema pobreza…
A: quase dobrou B: permaneceu mais ou menos o mesmo C: caiu pela metade
4. Qual é a expectativa de vida do mundo hoje?
A: 50 anos B: 60 anos C: 70 anos
5. Atualmente, existem 2 bilhões de crianças no mundo, com idades entre 0 e 15 anos. Quantas crianças haverá no ano 2100, segundo as Nações Unidas?
A: 4 bilhões B: 3 bilhões C: 2 bilhões
6. A ONU prevê que até 2100 a população mundial terá aumentado em mais 4 bilhões de pessoas. Qual é o principal motivo?
A: Haverá mais crianças (menores de 15 anos) B: Haverá mais adultos (15 a 74 anos) C: Haverá mais pessoas muito idosas (com 75 anos ou mais)
7. Como o número de mortes por ano causadas por desastres naturais mudou nos últimos cem anos?
A: Mais do que dobrou B: Permaneceu quase o mesmo C: Diminuiu para menos da metade
8. Quantas crianças de 1 ano de idade do mundo hoje foram vacinadas contra alguma doença?
A: 20 por cento B: 50 por cento C: 80 por cento
9. Em todo o mundo, os homens de 30 anos de idade passaram 10 anos na escola, em média. Quantos anos as mulheres da mesma idade passaram na escola?
A: 9 anos B: 6 anos C: 3 anos
10. Em 1996, tigres, pandas gigantes e rinocerontes negros foram listados como ameaçados de extinção. Quantas destas três espécies estão mais criticamente ameaçadas hoje?
A: Duas delas B: Uma delas C: Nenhuma delas
11. Quantas pessoas no mundo têm algum acesso à eletricidade?
A: 20 por cento B: 50 por cento C: 80 por cento
12. Os especialistas em clima global acreditam que, nos próximos 100 anos, a temperatura média …
A: fique mais quente B: continue a mesma C: fique mais frio
RESPOSTAS:
1C; 2B; 3C; 4C; 5C; 6B; 7C; 8C; 9A; 10C; 11C; 12A
LINK para palestra TED aqui.