Economia

O choque da realidade

O governo Lula tem reagido bem às dificuldades do dia-a-dia em várias frentes. Mas ainda precisa mudar o discurso na política externa e nas ações setoriais

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h54.

Entre outubro de 2003 e este outubro, o Brasil viveu muitas emoções e aprendeu várias lições. Foi tudo tão rápido que parece passado -- mas não é. O processo iniciado com a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do PT -- que se tornou a maior bancada da Câmara dos Deputados -- ainda passará por várias fases, produzindo novos efeitos para o país, para o presidente, para seu governo e para o PT. Mas já dá para analisar o que mudou nesses 12 meses.

Os setores mais conservadores, que imaginaram um país de "cabeça para baixo" com a vitória da esquerda, viram, com surpresa, que isso não aconteceu: as instituições -- as regras da democracia brasileira -- garantiram a mudança no poder sem descontinuidades. Os grupos mais à esquerda, que sonhavam com um país virado de "cabeça para cima", descobriram que isso não era possível -- e tampouco do interesse do governo eleito. No processo, o país se despolarizou e todo mundo andou mais para o centro.

A lição central do "pós-outubro" é que o espaço para o voluntarismo se reduziu muito, principalmente na gestão macroeconômica. Não dá para inventar nem para adotar práticas populistas. E não se trata apenas, como querem alguns, dos limites impostos pela fragilidade externa do país. Para sustentar um ciclo longo de crescimento sem inflação é preciso garantir fundamentos macroeconômicos sólidos. Credibilidade é mais importante do que vontade política. Sempre dá para forçar os limites do possível, mas não a ponto de invadir o território do inviável e do irracional. Foi bom para o Brasil aprender a lição: há limites e há consenso sobre o que se deve fazer na gestão macroeconômica.

Limites apareceram, também, na política. O governo descobriu que o presidencialismo de coalizão dá mais força do que imaginava aos aliados. Uma coalizão heterogênea, na qual a segunda força é um partido sem princípios nem visão, requer mais concessões que vontade política. Toda vez que os governistas tentaram tocar as reformas na marra sofreram reveses. Só conseguiram avançar negociando -- e, mesmo assim, avanço de verdade só houve na reforma da Previdência, que empacou no Senado mais por imperícia do que por necessidade. Já no caso da tributária, tudo o que o governo provavelmente vai fazer será prorrogar o status quo, com alguma maquiagem.

Esses limites não são tão claros quando se trata de políticas setoriais, sejam elas de infra-estrutura ou de investimento industrial. Como o raio de manobra nessas áreas é maior, é possível a um mesmo governo manter posições inconsistentes entre si. É exatamente o que tem sido visto. Por exemplo, as políticas setoriais adotadas conversam mal com o desenho macroeconômico e com as ações na área agrícola e de promoção de exportações. Não dá para aspirar ao crescimento sustentado e pretender colocar em prática as políticas de telecomunicações, energia, transportes, financiamento industrial e o marco regulatório recentemente proposto pelo governo. Por um motivo simples: elas não buscam preservar e ampliar o investimento privado nem levam em consideração as evidentes restrições do financiamento público. Todas compartilham o mesmo viés intervencionista que projeta a sombra do Estado sobre a economia de mercado. É como se quisessem trazer de volta os tempos do Leviatã parrudo e dotado de muitos recursos -- embora atuasse muito mais em favor dos grupos ricos do que da maioria despossuída. Só que hoje o Leviatã está anêmico -- e, embora continue favorecendo poucos em detrimento de muitos, já não tem os recursos de outrora. Resta-lhe apenas a força que lhe permite ação discricionária, mas com um alto custo no médio e longo prazo.

Outra área em que sobram equívocos é a da política externa. Recentemente, o presidente fez um discurso no Congresso sobre a posição de seu governo em relação à Alca, sinalizando que sua administração seguirá dividida entre as visões mais contemporâneas e os cânones do passado. É um discurso que comporta várias leituras, mas todas com um tom de antiamericanismo e do velho nacionalismo. São más inspirações para a política externa de países com vocação de potência regional. O presidente deixou claro que não deseja a Alca como está proposta, dizem os defensores da atitude presidencial. Essa rejeição, negada quase que pro forma, não é benéfica ao país. Contraria os objetivos de crescimento sustentado e fortalecimento dos fóruns multilaterais e atende aos interesses dos setores mais protecionistas dos Estados Unidos.

Mais positivo foi o aprendizado do governo no front social. A nova política, centrada no Bolsa-Família, representa um avanço em direção a uma ação mais efetiva, responsável no plano fiscal e evoluída do ponto de vista metodológico e administrativo. Ela enterra o Fome Zero e os modelos assistencialistas que dominavam corações e mentes do velho PT. Essa nova proposta pode corrigir os vícios paternalistas do início e avança em relação aos programas da era FHC, ao unificar o gasto social, reduzindo o desperdício, a burocracia e o "custo de máquina".

É preciso corrigir também a percepção de que nosso quadro social é fonte de graves instabilidades e que ameaça a governabilidade. Isso não é verdade. Nossa situação social não é tão grave assim e tem melhorado, não piorado. Há muita mobilidade social, o que reduz o grau de tensão. Nada disso nega a gravidade dos problemas sociais, especialmente nos bolsões de pobreza que se localizam no Nordeste rural e na periferia de algumas regiões metropolitanas. Nem desobriga moralmente governo e sociedade de combaterem a pobreza e a desigualdade. O programa de transferência de renda, por exemplo, justifica-se não pelo risco de instabilidade, mas por constituir um progresso real no campo das políticas sociais. Tampouco é por meio de políticas desse tipo que o presidente mantém sua popularidade.

Na verdade, os riscos à governabilidade decorrem de fatores complexos que afetam a credibilidade, a legitimidade e a estabilidade dos governos. Já a popularidade do presidente responde a movimentos de curto prazo, associados à renda real disponível e ao grau de desalento econômico da maioria da população. A queda recente de popularidade do presidente Lula, por exemplo, tem a ver com a perda acentuada de renda nos últimos 12 meses e com a sensação de que nem a mudança de governo foi capaz de reverter esse quadro. Nós temos problemas de Terceiro Mundo, combinados ao estresse típico de países emergentes, em rápida transição, e já enfrentamos problemas de Primeiro Mundo. Esse estoque heterogêneo de problemas provoca demandas contraditórias e sempre acima da capacidade de atendimento do Estado. Gera um quadro de desequilíbrio dinâmico de longo prazo.

Esse desajustamento estrutural entre necessidades e capacidades é o verdadeiro teste de resistência para a governabilidade. E ele só se resolve no longo prazo, por superações sucessivas e focalizadas de suas causas. Enquanto isso, o presidente não pode errar a mão na governança, no curto prazo, nem se arriscar a perder a confiança e a popularidade. O governo precisa sempre gerar mais confiança, porque sua capacidade de desempenho é inferior à que se espera e se necessita dele. Esse será o grande desafio do presidente Luiz Inácio no ano que vem. Como ele foi o candidato da esperança, o risco que não pode correr é o de frustrar a população. Se o país não cresce, a renda não melhora e ele perde popularidade. Se o país cresce, mas a inflação volta, a renda cai e ele perde popularidade. Portanto, não existem dois caminhos: ele precisa remover os obstáculos ao crescimento, os fatores que inibem investimentos e garantir a estabilidade. Parece simples, mas é complicadíssimo.

Sérgio Abranches é cientista político e professor visitante da Coppead-UFRJ

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