Ociosidade no mercado de trabalho, competitividade e infraestrutura puxam atividade, diz Paulo Miguel (Divulgação/Divulgação)
Fabiane Stefano
Publicado em 2 de março de 2021 às 14h05.
Última atualização em 2 de março de 2021 às 19h27.
O resultado final do Produto Interno Bruto que será divulgado pelo IBGE nesta quarta-feira (3), deve confirmar uma queda de pelo menos 4% na produtividade brasileira. Sem o auxílio emergencial, esse tombo seria ainda maior - pelo menos o dobro, segundo este estudo da USP. Ao mesmo tempo, as perspectivas de avanço da agenda liberal do governo Bolsonaro, capitaneada pelo agora ex-super-ministro Paulo Guedes, são minadas a cada dia pelas velhas práticas populistas do universo político de Brasília.
Para o economista Paulo Pereira Miguel, sócio e diretor de Investimentos do Julius Baer Family Office, desde a aprovação do Teto de Gastos, em 2018, as discussões que deveriam estar sobre a mesa, como a reforma tributária e diversos cortes de gastos, não aconteceram - pelo menos não na velocidade necessária para garantir a eficiência do teto. Miguel, entretanto, discorda dos seus colegas que defendem uma revisão do atual regime fiscal no curto prazo
"Não me parece que há uma necessidade iminente de corrigir o teto agora. O certo mesmo é fazermos algumas escolhas duras e deixar para revisar o teto em 2026, conforme programado", explicou o economista em entrevista à EXAME. "E, na verdade, se tivermos bons gatilhos, bater no teto pode até ser positivo, porque dispara os gatilhos. Precisamos disso para ter um ajuste."
Miguel defende a tramitação da PEC 45 como a grande prioridade do país neste momento, deixando uma discussão mais profunda sobre regime fiscal brasileiro para, pelo menos, 2022 - e vê nas desonerações uma importante fonte de recursos para o orçamento federal. Esse plano, entretanto, esbarra na cultura de priorização das pautas setoriais em detrimento das coletivas. E, principalmente, na falta de liderança no país.
Leia abaixo a entrevista completa:
EXAME: Ao que tudo indica, o auxílio emergencial será estendido fora do teto de gastos. Como o mercado avalia esse "furo"?
Paulo Pereira Miguel: No ano passado, o grande temor era que se criasse um programa permanente gastando R$20 ou R$30 bilhões a mais por ano. A discussão agora é outra. Se tiver que ser extra teto, será algo temporário e contido. Algo em torno de R$200 reais, por três meses, o que dá menos de 0,3% do PIB - enquanto antes se falava de 1% ou mais. Portanto, eu não acho há um rompimento retórico do teto, mas uma excepcionalidade da segunda onda que, se for contido e envolver um compromisso de reforço do teto a médio prazo, será palatável para os agentes envolvidos.
Alguns economistas defendem o aumento do gasto social durante a pandemia, inclusive a partir de uma revisão do teto de gastos. Qual a sua opinião sobre isso?
Eu discordo frontalmente da revisão do teto. Vejo muitos chutes, dizendo que o teto impede que se faça isso ou aquilo mas, na verdade, ele impede que a nossa dívida exploda. O teto pode não ser a melhor regra, inclusive acho que ele deve ser aperfeiçoado ao longo do tempo, mas é preciso estabelecer critérios fiscais que sejam críveis e indiquem uma trajetória de solvência a médio prazo. Vamos abandonar o teto para colocar o que no lugar dele? O fato é que nos temos um endividamento crescente, um dos maiores entre os emergentes, e regras fiscais que a médio prazo não sugerem solvência. O teto é a única referência de longo prazo que temos nesse sentido.
O teto foi insuficiente para acertar as contas públicas?
Uma coletânea de elementos que levaram o teto a ser insuficiente. Para que ele funcionasse bem, teríamos que ter tido mais rapidez no controle das despesas obrigatórias, o que faltou. Também poderíamos ter buscado mais do lado das receitas. Houve timidez nas desonerações. Podia ter se trabalhado numa reforma tributária que reduzisse a tributação indireta, no imposto de renda, nos dividendos... Isso poderia ter sido buscado e não foi. A economia também acabou crescendo menos. Minha opinião é que temos que reforçar a disciplina fiscal, mas eu não vejo essa discussão posta.
Mas ela deveria estar na mesa, certo?
É temerário embarcar numa revisão ampla de regras agora, sem uma clareza sobre o que a equipe econômica quer, sobre como está a base no congresso... Dada a fragilidade da nossa situação, o melhor é fazer o necessário para jogar a incerteza fiscal para 22, para que possamos discutir isso com mais calma e precisão. A minha impressão, que é bem realista, é que devemos avançar no sentido de reforçar o teto. Uma reforma fiscal ali, uma reforma administrativa razoável, e um ajuste fiscal mais sério e amplo, que envolva alterar a trajetória de superávit primário em 3-4 p.p. do PIB, além corte de despesas. E também algo do lado das receitas.
Dado o ambiente político que está se configurando, teremos a melhor das discussões ao deixá-la para 2022? Por que não agora?
Não me parece que há uma necessidade iminente de corrigir o teto agora. O certo mesmo é fazermos algumas escolhas duras e deixar para revisar o teto em 2026, conforme programado. Teremos um 2021 um pouco apertado, mas em 22 teremos uma correção forte, porque a inflação acumulada nos 12 meses até junho/21, que balizará os gastos de 22, deve fechar na casa dos 6%. É um crescimento significativo nas despesas. E, na verdade, se tivermos bons gatilhos, bater no teto, caso aconteça, é até positivo, porque dispara os gatilhos. Precisamos disso para ter um ajuste.
Bater no teto é visto, em geral, como um pesadelo. Pode explicar melhor o seu ponto?
A questão é regulamentar bem. Dado o tamanho das nossas despesas obrigatórias, desindexá-las por um ou dois anos já abre um bom espaço no orçamento. Hoje, revisar o teto é absolutamente ligeiro. Se batermos no teto e, ao invés de disparar os gatilhos, nós revisarmos ele, o teto não serve para nada. Bater no teto parece uma situação que revela uma inconsistência que exige a revisão dele. Eu digo o contrário. Bater no teto com com bons gatilhos é até bom.
Com o orçamento tão apertado, ainda há espaço para mais cortes?
Nós ainda não cortamos nada até agora além de investimentos, porque é o que dá pra fazer sem escolhas políticas no congresso. Não houve cortes em mais nada. Cortamos pouco, e só onde não podíamos cortar, que é o investimento, porque é a peça de menor resistência. Mas há muito espaço para corte de despesas, e nós nem olhamos para isso ainda. O primeiro lugar que deveríamos ter coragem de mexer é na redução das isenções. Até 10 anos atrás, tínhamos 2% do PIB em desonerações; hoje são 4% do PIB. Não digo nem voltar para 2, mas vamos voltar para 3? É uma economia de 1% do PIB. Se precisamos sair de um déficit de -2 e ir para um superávit de 2, conseguimos 1/4 disso reduzindo desonerações. Já é um pedaço.
E o restante?
Outros 25-30%, deveria ser por corte de despesa. E o restante, daria para contar com o crescimento do PIB se tivéssemos uma agenda de produtividade. É aqui que entra a reforma tributária, a PEC 45, que simplifica a tributação e aproximaria o Brasil dos padrões internacionais, destravando ganhos de produtividade importantes. Além disso, tem o lado da arrecadação: reformar os impostos diretos, o IR, tributar os dividendos... Uma reconfiguração desse lado poderia buscar mais 0,5%, 1% do PIB. Mas precisa ter a despesa do outro lado.
O que estamos conversando aqui é, mais ou menos, o mesmo que se falava em 2018. E até agora pouca coisa andou. O mercado já se acostumou a esse ritmo moroso de Brasília?
Eu não diria o mercado, mas nós, cidadãos. É uma frustração cotidiana e diária com essa resistência que há para que se consiga alguma melhora institucional. Pautas setoriais andam super rápido, enquanto as pautas coletivas enfrentam grandes dificuldades. Acho que o nosso sistema tem uma dificuldade maior que o usual para resolver o problema da ação coletiva, que é minimizar o problema de grupos interesse para avançar em pautas mais amplas. Essa frustração é nossa.
Não crescemos de verdade há pelo menos quarenta anos. Precisamos nos conscientizar que, ou nós lidamos com os problemas coletivos, rompendo a inércia dos interesses estabelecidos que nos travam em várias dessas áreas (o que pode até parecer ingênuo), ou nós não vamos escapar dessa mediocridade que vivemos. São interesses cotidianos individualmente pequenos, mas que nos travam como coletivo.
Que interesses são esses? Consegue dar exemplos?
Reduzir desonerações, por exemplo, deveria ter muitos votos a favor. Mas quem chega lá e faz barulho é a minoria que se beneficia disso. No Brasil, as pautas são capturadas por grupos de interesse mais do que o usual. Reformar o estado é de interesse da população inteira, mas o lobby do funcionalismo não deixa. Tem gente que tem benefícios hoje e que não deveria ter nenhum. Precisamos de regras horizontais. A pergunta é simples: o ganho é coletivo? Vamos fazer! Se o ganho é individual, setorial, não deveríamos fazer.
Se já sabemos o que deve ser feito, o que falta?
Falta liderança. Falta gente que tenha uma visão de país, uma visão de que se não fizermos escolhas fundamentais, não vamos sair do lugar. São poucas decisões sistêmicas, mas que têm um grande impacto. Mas, para isso, é preciso de liderança, diagnóstico. E o diagnóstico está posto. Todos sabemos que precisamos de uma reforma tributária nessa direção. E aí começamos a coletar um pouco de crescimento e as coisas mudam. Falta convicção e liderança, mais do que tudo. O estado precisa funcionar. As empresas precisam produzir. Precisamos pagar imposto de uma maneira simples.
Podemos ter esperanças de seguir por esse caminho em 2022?
2018 foi um evento atípico, uma rejeição, um clima de ruptura que talvez não se repita em 2022. E aí sobra espaço para uma candidatura de centro, uma ou mais, que se tornem viáveis. O desafio é construí-las.