Economia

Doença, guerra e revolução: os exterminadores de desigualdade

Em entrevista para EXAME.com, pesquisador afirma que historicamente, a desigualdade só cedeu diante de fenômenos violentos

"O Triunfo da Morte", de Peter Bruegel, quadro de 1562 (Reprodução/Wikimedia Commons)

"O Triunfo da Morte", de Peter Bruegel, quadro de 1562 (Reprodução/Wikimedia Commons)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 1 de maio de 2017 às 07h00.

Última atualização em 3 de maio de 2017 às 14h03.

São Paulo – Como reduzir a desigualdade?

Achar uma resposta se tornou urgente diante da piora na distribuição de renda nas últimas décadas, especialmente nos países desenvolvidos.

O historiador austríaco Walter Scheidel entrou no debate por considerar que reduzir a pobreza não é o bastante e por prever aumento da desigualdade no futuro próximo.

Mas ao olhar para o passado, achou motivos para pessimismo: historicamente, a desigualdade só cedeu diante de fenômenos violentos como epidemias, revoluções, grandes guerras e colapso dos Estados.

Professor da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, Scheidel está lançando o livro "The Great Leveller" ("O Grande Nivelador", em tradução livre) para explicar o que chama dos "quatro cavaleiros do apocalipse".

Walter Scheidel, professor em Stanford

EXAME.com - Sua tese é que historicamente, a desigualdade só foi revertida profundamente através de processos violentos. Quais são eles?

Walter Scheidel - O longo prazo mostra dois mais efetivos: o colapso de Estados e doenças epidêmicas severas.

Se riqueza e privilégio estavam relacionadas ao poder de um Estado comandado pelos ricos, destruí-lo significa empobrecê-los e assim reduzir a desigualdade.

É algo que pode ser observado por milhares de anos nos Estados pré-modernos que entraram em colapso, como o Império Romano.

Nas doenças, a lógica vem de um certo equilíbrio entre terra e trabalho. Se você tem uma epidemia que mata um terço das pessoas, isso reduz a força de trabalho e aumenta o valor desses trabalhadores na forma de salários, enquanto desvaloriza terra e outros ativos fixos.

Enquanto isso dura, torna os ricos menos ricos e os pobres menos pobres. É algo que não aconteceu muitas vezes, mas há exemplos como a Peste Negra e as doenças nas Américas depois de Cristóvão Colombo. Esses mecanismos foram substituídos no século XX.

E quais são os novos fenômenos?

O primeiro é uma forma específica de guerra, industrial e de larga escala, como foram as duas guerras mundiais. E o outro são reformas transformadoras, geralmente comunistas.

As guerras exigem que os governos intervenham de forma agressiva no setor privado e façam todo tipo de medidas redistributivas, além de destruir e desvalorizar o capital.

O efeito é deixar os ricos menos ricos enquanto os pouco qualificados ganham em termos reais.

No caso das revoluções comunistas, é autoexplicativo: se você está expropriando os ricos e impondo uma economia planejada com preços e salários definidos pelo governo, a desigualdade vira uma mera função da política do Estado, que decide o quanto de desigualdade vai tolerar.

Há como reduzir a desigualdade de forma significativa por meios menos violentos?

Depende do que você chama de significativa. Se você procura reduções grandes e dramáticas de desigualdade, a resposta parece ser não. Se procura flutuações, pode achar exemplos em vários países.

A América Latina entre 2002 e alguns anos atrás era o exemplo mais interessante, porque em vários países a desigualdade caiu consideravelmente e sem os fatores que eu citei.

O Brasil crescia rapidamente até 2010 e agora experimenta uma recessão profunda e duradoura. Que efeito isso pode ter sobre a desigualdade?

Não há regra. A pesquisa que analisou mais de 100 grandes crises ao longo do século XX não viu nenhum efeito consistente, mas é mais comum que ele não seja bom sobre a desigualdade.

Uma exceção é a Grande Depressão americana, que foi muito severa. Mas por causa dela e do que foi feito para resolvê-la, como o New Deal, a desigualdade caiu um pouco nos anos 30.

Depois da crise de 2008 nos países ocidentais, os mais ricos ficaram menos ricos do que antes por alguns anos, mas se recuperaram rápido, enquanto as outras pessoas ficaram presas com suas hipotecas. Os efeitos tendem a ser de pouca duração.

É importante notar que o que importa não é apenas a guerra ou a revolução em si, mas o que acontece depois dela e como ela muda o Estado e as relações sociais.

Correto. O efeito da guerra é duradouro. Booms econômicos muitas vezes aumentam a desigualdade, mas esse não foi o caso por causa do que havia acontecido durante a guerra.

As políticas moldaram a distribuição dos ganhos, através, por exemplo, das altas taxas de impostos, e garantiram o florescimento da classe média. É importante olhar o médio prazo.

Houve uma alta forte da desigualdade nos últimos 20 a 30 anos. Como ela se compara com o padrão histórico e até onde pode chegar?

Nos EUA, a desigualdade de renda atualmente é tão alta como nos anos 20, que foi o ponto mais alto da história. A desigualdade de riqueza não é tão alta como já foi, mas há uma tendência nessa direção, então pode chegar lá.

Na Europa, não subiu para os níveis daquela época. Na América Latina, a desigualdade é um pouco menor do que era nos anos 90, mas comparável a 20 ou 30 anos atrás.

As tendências variam, mas a renda per capita é muito mais alta do que costumava ser. Os ricos estão mais ricos, mas os pobres estão menos pobres, e essa é a parte mais importante da história.

A pobreza caiu de forma generalizada, e nas últimas décadas em particular, em países ricos e pobres – e isso é desejável. Olhar só para a desigualdade é perder parte do cenário.

Você acha que os processos que identificou teriam hoje os mesmos efeitos que tiveram no passado? Uma das teses para a alta da desigualdade é de que o trabalho humano estaria sendo substituído por robôs e inteligência artificial.

Longos períodos de paz e estabilidade tendem a favorecer uma estabilização da desigualdade. E como estamos vivendo em um período menos violento do que no século XX, parece ser o caso.

A mudança tecnológica coloca mais pressão sobre empregos da faixa média do mercado de trabalho. Cada vez há mais empregos que exigem qualificação e muitos outros mal pagos, com cada vez menos pessoas no meio. Isso terá efeito sobre a desigualdade.

Se houvesse uma pandemia hoje, as pessoas teoricamente poderiam ser trocadas por robôs, o que não era possível. Então talvez esses choques violentos não tenham o mesmo efeito.

Uma guerra mundial hoje seria menos transformadora porque a população não seria mobilizada na mesma escala. Não há revoluções comunistas no horizonte e os Estados são mais estáveis, o que torna o colapso menos provável (com algumas exceções). Uma pandemia também seria diferente do passado.

Outro novo fenômeno é o envelhecimento populacional. Ele terá um efeito sobre como os governos gastam seu dinheiro e tornará mais difícil uma redistribuição em grande escala, porque eles terão que gastar mais dinheiro com saúde e cuidados com os idosos.

Além de pensões. Em países como o Brasil, onde as pensões são regressivas porque apenas uma parte da população as recebe, isso tende a aumentar a desigualdade.

E a imigração também terá efeito redistributivo. Se você tiver muitos trabalhadores mal qualificados e integrados, isso pode aumentar a desigualdade porque coloca pressão sobre o Estado de bem-estar e a disposição das pessoas de financiar programas sociais.

Uma série de grandes tendências tende a aumentar a desigualdade nas próximas décadas.

Por que você diria que a desigualdade importa e que reduzir a pobreza não é suficiente?

Aliviar a pobreza é o mais importante porque há um nível básico de bem-estar que todo mundo deveria poder alcançar, e houve sucesso nesse sentido.

Mas a desigualdade importa, especialmente se chegar a níveis muito altos. Ela é ruim para o crescimento ao reprimir o consumo de alguns grupos, e tem uma tendência a se perpetuar em famílias: crianças com acesso a melhor educação e saúde causam efeitos sobre várias gerações, o que é injusto.

Além disso, a desigualdade pode ter o potencial de desestabilizar sociedades e sistemas políticos. Esse é um tema que não foi suficientemente bem estudado, mas a intuição é que isso pode causar protestos e polarização, e os Estados Unidos são um exemplo.

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