Sergio Gobetti: Brasil precisa rever benefícios fiscais em vez de somente reduzir ICMS de combustíveis fósseis, diz economista (YouTube/Reprodução)
Carolina Riveira
Publicado em 24 de maio de 2022 às 14h46.
Última atualização em 24 de maio de 2022 às 15h15.
Estabelecer um teto para o ICMS virou a bola da vez no recorrente cabo de guerra sobre a inflação no Brasil. A proposta de uma alíquota máxima de 17% para itens "essenciais", como combustíveis e energia, é encabeçada pela base do governo na Câmara e pelo presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL), que argumenta que a arrecadação dos estados tem sido recorde e há espaço para cortes.
Para o economista Sergio Gobetti, especialista em finanças dos estados, a discussão foge dos problemas estruturais e é pautada pelo "ano eleitoral". Segundo seus cálculos, a proposta para o ICMS, que é um tributo estadual, deve fazer com que estados e municípios percam R$ 70 bilhões, ao mesmo tempo em que traria "efeito muito limitado" nos preços ao consumidor.
"Começou a se criar uma versão de que os estados e municípios agora estão nadando em dinheiro. E não é verdade, há situações diferentes", diz. "É um uso demagógico, populista desse instrumento, ao invés de se fazer uma discussão séria e consistente."
Gobetti é uma das principais vozes sobre política fiscal nos estados e tributação no Brasil. Doutor pela Universidade de Brasília (Unb), fez carreira como servidor no Ipea, tendo também atuado como assessor e secretário no Ministério da Fazenda e, recentemente, na Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul.
À EXAME, ele defendeu a criação de um fundo de estabilização de preços como alternativa ao debate do ICMS e a urgência de avançar na reforma tributária na PEC 110 (hoje parada no Congresso). Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
Reduzir o ICMS será a "bala de prata" para diminuir o preço dos combustíveis?
Obviamente, o ICMS é um elemento que compõe o preço. Mas uma mudança apenas no ICMS é uma medida que eu diria ser pouco efetiva para o tamanho do problema que se tem.
Seria um efeito muito limitado em termos de controle da inflação, e a um custo fiscal muito elevado para estados e municípios: é algo da ordem de R$ 70 bilhões, que compromete a capacidade de manter uma adequada prestação de serviços ao cidadão. Não é um mero ajuste. É entre 10 e 20% de redução da receita total do ICMS.
Ou seja, está muito claro que estamos em véspera de eleição. É um uso demagógico, populista desse instrumento, ao invés de se fazer uma discussão séria e consistente.
Defensores de uma redução no ICMS argumentam que estados tiveram recorde de arrecadação, exatamente devido à alta dos combustíveis. Como o senhor enxerga esta discussão?
Claramente estamos diante de um exercício de economia política, que é decidir quem paga essa conta. Está se tentando aliviar a coisa pelo lado do consumidor, mas a melhor solução não é transferir a conta para estados e municípios. Começou a se criar uma versão de que estados e municípios estão nadando em dinheiro. E não é verdade.
A situação fiscal melhorou, mas não tem dinheiro sobrando. Muitos estados estão com nível de investimento público muito baixo. E algo que é preciso lembrar: estados e municípios, ao contrário da União, não podem se endividar quando falta dinheiro.
Quais impactos práticos poderiam ocorrer na prestação de serviços caso a mudança no ICMS seja aprovada?
Essa perda pode gerar inviabilidade financeira em alguns casos, pode voltar a ter atraso na folha de pagamento. E as consequências mais diretas para a população são reduções dos gastos em saúde e educação, porque são diretamente vinculados com arrecadação do ICMS. 40% do que os estados arrecadam com ICMS automaticamente vai para saúde e educação, e parte do recurso vai também para os municípios.
Há alguns anos estávamos falando de socorro da União aos estados. Agora, é quase o contrário. Mas caso a arrecadação caia de novo, a situação pode voltar a complicar no futuro?
Certamente pode levar a uma perpetuação de estados não conseguindo pagar sua dívida com a União. Neste momento, muitos estados estão inclusive pactuando com a União os seus regimes de recuperação fiscal. Mas aí vêm esses sinais contraditórios por parte do governo federal, que ao mesmo tempo em que há uma discussão técnica de negociar metas fiscais com os estados, tem nesse mesmo governo defesa de aprovação de medidas que retiram recursos.
É uma contradição absoluta, e às vezes tendo aval na própria área econômica para coisas totalmente inconsistentes.
O Senado aprovou em março o PL 1.472, que criava uma conta de estabilização de preços, usando como fonte de recurso inicial bônus, royalties e dividendos da Petrobras pagos à União. O projeto está agora parado na Câmara. O senhor é a favor dessa medida como foi passada no Senado?
Tem de ter isso. Mas há uma discussão já antiga, também, de que poderia ter outros tributos para financiar.
Eu, particularmente, defendo que poderia-se usar Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre o setor petroleiro. Já tem um adicional para os bancos, por que não ter a mesma coisa para o setor petroleiro? É normal os países produtores de petróleo terem alíquotas maiores para o setor, incluindo no Imposto de Renda. Na Noruega, o imposto de renda normal das empresas é 28%, as petrolíferas pagam 28% + um adicional. E incide só sobre a renda líquida, sobre o que é ganho acima do custo. Falo de CSLL sobre lucro líquido porque aqui o IR não pode ser dissociado. Mas CSLL pode, e tem a mesma base [do IR]. Essa receita poderia estar financiando esse fundo que amorteceria o preço para o consumidor.
Um fundo de estabilização de preços, se tivesse sido aprovado antes, poderia ter ajudado o Brasil neste momento?
Essa discussão existe, por exemplo, desde o pré-sal. Veja, já se passaram 14 anos. E nesses 14 anos a gente teve tempo e oportunidade para criar instrumentos adequados para lidar com essa volatilidade, e não criou. E, agora, no afogadismo, estão desesperados tentando criar uma "não-solução" para o problema.
Vai se criar um problema muito sério para estados e municípios e ainda assim não vai resolver, com esse nível de volatilidade do preço internacional do petróleo. E não é de hoje: na última crise, há uma década [com a guerra civil na Líbia], o preço chegou a mais de US$ 100, e aí em uma década foi para um piso de US$ 40... E agora está em torno de US$ 100 de novo. Já perdemos muitas oportunidades.
No mesmo pacote em março, o Senado também aprovou a mudança da alíquota do ICMS dos combustíveis "por preço" para "por litro" (ad rem), visando reduzir a volatilidade. Avançar na transição para o ad rem e alíquota uniforme seria melhor do que puramente reduzir o ICMS?
Acho que tem duas discussões atravessadas. Tentar resolver o preço internacional, seja com alíquota ad rem, seja principalmente com a redução por decreto das alíquotas de ICMS, não acho que é a solução.
Mas relacionado a isso, tem a discussão estrutural. Qual discussão que Lira usa pra tentar reduzir a alíquota: é o argumento de o que é "essencial". Sustento que de fato o princípio da essencialidade no Brasil é mal aplicado, mas você não o resolve por decreto simplesmente reduzindo as alíquotas que estão supostamente elevadas. Existem bens supérfluos que tem uma carga tributária absolutamente baixa, reduzida por negociações políticas, por concessões, pelo efeito da guerra fiscal.
Não faz sentido, em tempos de crise, ter tributo reduzido para insumos como combustível e energia?
Esse tipo de problema, de ter uma carga tributária muito diferenciada entre os produtos e serviços e essa diferenciação de carga não atender o princípio da essencialidade, eu não resolvo do dia para a noite.
Há várias montadoras que hoje estão funcionando no Brasil com benefícios fiscais que reduzem a carga de automóveis para 4%. A pessoa paga 4% de ICMS para o automóvel e paga 25, 30% pra movimentar ele pagando ICMS sobre gasolina. Para mim, não tem o menor sentido isso.
Mas eu não resolvo apenas reduzindo a alíquota do combustível fóssil, tenho também de rever esse benefício para as montadoras de automóvel, atacar o problema de forma integral.
Essa questão estrutural tem chance de ser endereçada na reforma tributária, como na PEC 110?
Esse é um problema que está sendo enfrentado na discussão da PEC 110. Está prevista justamente a ideia de que a alíquota que incidiria sobre o futuro imposto sobre bens e serviços seria a mais uniforme possível. Ela prevê que alguns serviços e alguns bens podem ter tratamento tributário diferenciado, saúde, educação, cesta básica e gás, que seriam os bens considerados mais essenciais. Mas, fora isso, todos os demais bens e serviços teriam uma alíquota mais uniforme.
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E, além disso, haveria um imposto seletivo — e provavelmente combustível é um dos que teriam imposto seletivo. Porque é verdade que o tributo sobre combustível e energia no Brasil é elevado, mas eu diria que energia elétrica e combustível não são a mesma coisa. Ao contrário, combustível fóssil no mundo inteiro é mais tributado. Diferentemente de energia. Então, até mesmo o que os parlamentares estão considerando com sendo essencial, o conceito está equivocado. Não segue as discussões dos conceitos internacionalmente vigentes. Mas, de qualquer forma, acho que esse é um problema a ser resolvido pela reforma tributária.
Acha que a reforma nesses termos pode avançar?
Nesse tocante, já tivemos inúmeras oportunidades de avançar na aprovação disso, e não avança por lobby, dos quais o principal tem sido o setor de serviços e algumas corporações. Os parlamentares cedem a esses lobbies. É interessante que o Lira queira votar um negócio que quebra as finanças dos estados quando ele atende às pressões e lobby das empresas do setor de serviços, que querem impedir a aprovação da PEC.