Cenas brasileiras
Três episódios recentes ajudam a compreender o curioso cenário político do país
Da Redação
Publicado em 18 de março de 2010 às 10h18.
Um passeio ao acaso pelo Brasil, nestes últimos dias, poderia revelar cenas curiosas e, quem sabe, instrutivas para um entendimento mais claro do que vai por aí. Algumas delas:
Qualquer cidadão brasileiro que tenha prestado um mínimo de atenção no noticiário das últimas semanas percebeu que está havendo um conflito com avaria grossa na Secretaria da Receita Federal. Foi demitida a secretária Lina Vieira. Foram demitidos dois dos seus assessores diretos. Demitiram-se de seus cargos de chefia, na sequência, 60 peixes graúdos da Receita -- ou em solidariedade à chefe decapitada, ou porque desconfiaram que seriam demitidos de qualquer jeito pela nova gerência. Em relação a esses eventos, é possível achar que aconteceu algo bom, que aconteceu algo ruim ou, até mesmo, que aconteceu algo que não é nem bom nem ruim. Mas não dá, realmente, para achar que não aconteceu nada. Quer dizer: dá, se você é o ministro da Fazenda e, pelo que está escrito no organograma do governo, o responsável pela condução da Receita. Perguntado sobre as demissões, na semana passada, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, respondeu: "Que demissões?" É um alívio para todos, sem dúvida, ficar sabendo que foi apenas um rebate falso, que não se demitiu ninguém e, sobretudo, que não há briga nenhuma. Briga de coletor raramente resulta em coisa boa para os coletados.
Até que enfim, depois de tanto penar, o presidente do Senado Federal, José Sarney, teve um bom momento na travessia de seu vale de lágrimas. O responsável por essa janela de alívio foi o senador Eduardo Suplicy, do PT de São Paulo, que de repente partiu com ira santa para cima de Sarney -- num desses momentos, bem ao seu estilo, quando ele espera que o combate acabe para aparecer no campo de batalha e executar os feridos. Aí não dá para evitar: por pior que ande a imagem de Sarney, as simpatias, no caso, ficam com ele. O número apresentado pelo senador Suplicy, desta vez, foi agitar um cartão vermelho do alto da tribuna para "expulsar" Sarney da presidência do Senado -- um cartão bem grande, para que todos vissem, e agitado várias vezes, para que todos os fotógrafos tivessem tempo de fazer o retrato. Cuidou, também, de mostrar um rosto desfigurado pela indignação -- em matéria de cara feia, deixou longe o senador Fernando Collor, em seu recente entrevero com o colega Pedro Simon na mesma tribuna. Suplicy poderia até causar alguma impressão, salvo por um detalhe: só veio a mostrar seu cartão vermelho seis dias inteiros após Sarney ter se livrado, com a ajuda decisiva do PT, das ameaças mais prementes a seu cargo. Foi como se um juiz de futebol expulsasse um jogador de campo depois que o jogo acabou.
O senador Suplicy já levou à tribuna um caminhãozinho de brinquedo para expor suas teorias econômicas, foi procurar em Nova York uma mulher que estava enterrada em Brasília e, mais recentemente, deu a impressão de cantar alguma coisa no plenário -- uma canção de Bob Dylan, pelo que disse. Os jornalistas acham divertido, mas há um método nisso tudo: no dia seguinte às suas exibições, a foto do senador, infalivelmente, aparece nas primeiras páginas da imprensa. É ele, aí, quem ri dos jornalistas.
É um artigo de fé na política brasileira, até onde a memória alcança, considerar que obras públicas feitas na administração de adversários não existem. Vá lá, talvez até existam -- mas nesse caso são caras demais, mal executadas, roubadas, inúteis e perigosas para a segurança da população. De repente, surpresa: o presidente da República, em pessoa, acha que o rodoanel de São Paulo não apenas existe como é uma excelente obra, tão excelente que ele próprio quer ser sócio da sua execução. Reclama, inclusive, por não receber o crédito de que se julga merecedor nos anúncios da obra -- não com o destaque adequado. Em quase sete anos corridos, o governo Lula não conseguiu começar, concluir e entregar uma única obra pública parecida. Algo a ver?