Economia

Alemanha vive dilema entre austeridade e investimentos

Com queda nos investimentos desde o início dos anos 2000, Alemanha sofre com ferrovias, portos e estradas desgastadas

Merkel: briga entre partidos sobre investimentos na infraestrutura do país (Jens Schlueter/Getty Images)

Merkel: briga entre partidos sobre investimentos na infraestrutura do país (Jens Schlueter/Getty Images)

EH

EXAME Hoje

Publicado em 26 de setembro de 2017 às 17h54.

Última atualização em 26 de setembro de 2017 às 17h55.

A Alemanha adora mostrar seus músculos econômicos, apresentando o ritmo galopante de suas exportações e o rigor de suas contas públicas. Entretanto, a principal potência europeia, e a quarta do mundo, esconde uma séria atrofia: uma grave carência de investimentos.

Há muitos anos a porcentagem de investimentos sobre o PIB da Alemanha está abaixo da média dos países europeus. De 1999 até hoje variou entre 17% e 20% do PIB, bem menos do que a média dos outros estados membros da OCDE, o clube dos países mais industrializados do mundo.

Para diversos economistas, o baixo nível de investimentos em infraestruturas seria um dos problemas mais graves da economia alemã. Alguns deles começaram a definir seu país como um “Scheinriese”, um “gigante aparente” — na tradução do alemão — que se torna cada vez menor à medida que o observador se aproxima.

Segundo cálculos da Universidade de Giessen, se nos últimos anos o país tivesse preenchido a distância de investimentos que o separa do nível dos parceiros da OCDE, o PIB alemão teria crescido um ponto porcentual a mais por cada ano. Mas por causa dessa carência de investimentos, a economia alemã navega perenemente debaixo de seu potencial de crescimento.

A história oficial é porém outra: a Alemanha continua sendo uma economia forte que expressa seu poder por meio das exportações recordes todos os anos. Segundo o Escritório Federal de Estatística da Alemanha, em 2016 o superávit comercial alemão foi de 252,9 bilhões de euros (cerca de R$ 945,5 bilhões), um crescimento de 3,5% em relação a 2015 — ano em que o saldo positivo já havia crescido 15% em relação ao ano de 2014. 

Economistas, políticos e empresários repetem essa versão de potência teutônica há anos, especialmente quando estão no exterior. Uma narrativa que foi afetada nos últimos dias por uma voz muito respeitável, a do presidente da poderosa associação das indústrias alemãs (BDI), Dieter Kempf.

“Nós alemães deveríamos ser um pouco mais sinceros. A balança comercial não deve ser sempre equilibrada. E quando um país tem um superávit permanente e enorme, deveria começar a se perguntar como levar essa situação novamente sob controle”, declarou Kempf em uma entrevista ao jornal Sueddeutsche Zeitung.

A maioria dos empresários alemães, entretanto, continuam não mostrando o mínimo interesse, muito menos preocupação, diante da irritação dos Estados Unidos e dos outros parceiros europeus pela avalanche de bens e serviços exportados pela Alemanha. A opinião comum é que ninguém pode ser responsabilizado pela tecnologia de ponta ou pela alta qualidade de seus produtos. Na melhor das hipóteses, a culpa seria da fraca cotação do euro, considerado pouco adequado em relação a força global da primeira economia europeia. Uma opinião fortemente apoiada pelo ministro das finanças, Wolfgang Schäuble, um falcão da austeridade que já declarou repetidamente “não ter ainda ouvido um argumento convincente” contra o superávit comercial recorde alemão.

Kempf, por outro lado, em um momento de franca honestidade, admitiu que essa é uma atitude hipócrita e que existe uma maneira infalível de corrigir esse desequilíbrio com o exterior: investindo mais em casa. O fortalecimento da demanda interna, concentrando-se na pesquisa e no desenvolvimento, nas infraestruturas, nas redes de banda larga, “não só beneficiaria a infraestrutura nacional, mas também reduziria nosso superávit comercial”.

As estatísticas e relatórios são cristalinos: “a Alemanha mostra uma fraqueza extrema nos investimentos desde o início dos anos 2000”. Isso é o que aparece em um documento interno do ministério da economia e tecnologia, liderado por Brigitte Zypries, do Partido Social-Democrata (SPD). Segundo o relatório, 90% desses investimentos são privados. Em 2016, as empresas gastaram 560 bilhões de euros em maquinários, veículos, edifícios, armazéns e tecnologias, representando 17,9% do PIB alemão. O investimento público foi de apenas 2,1% do PIB. Até nesse item a Alemanha fica abaixo da média da UE, que é de 2,7%.

Contrariamente ao partido democrata-cristão de Schäuble, o Partido Social-Democrata de Zypries e de seu antecessor, Sigmar Gabriel, não nega que haja uma grave defasagem na infraestrutura da Alemanha. Quando era ministro da Economia, Gabriel chegou a criar uma Comissão de Investimentos dentro do Ministério. Um órgão específico para tentar resolver essa questão. 

Para ter uma ideia da situação, metade das escolas na Alemanha precisaria ser reestruturada e colocada em segurança. Somente em 2015, segundo o Instituto Alemão de Urbanismo (DIFU), a demanda atingiu cerca de 34 bilhões de euros (cerca de R$ 127 bilhões). Enquanto isso, a situação das escolas piorou drasticamente, entrando quase em colapso, e o estado desses prédios se tornou um tema frequente do debate público alemão. Parte da culpa caiu nas prefeituras, que têm a responsabilidade de tocar muitos investimentos públicos, como os próprios edifícios escolares. Mas muitas não querem gastar ou acumulam atrasos nos cronogramas de investimentos. O número mais recente fala de um buraco de 156 bilhões de euros (cerca de R$ 584,5 bilhões) em gastos públicos não realizados pelas prefeituras de toda a Alemanha.

Mas também as infraestruturas “clássicas”, como estradas, portos e ferrovias, são massacradas por buracos, rachaduras e desgastes devidos ao tempo e ao intenso uso. Por exemplo, cerca de 1.100 pontes ferroviárias (em um total de 25.700) deveriam ser reparadas ou até mesmo reconstruídas, de acordo com um estudo apresentado pelo Partido Verde alemão nos últimos dias. Um documento que definiu como “assustadora” a situação infraestrutural do país. Segundo esse relatório, na Renânia do Norte-Vestefália, o estado mais populoso da Alemanha, terra de muitas indústrias importantes, 40% das pontes ferroviárias apresentam “sérios danos”.  Nos estados da Renânia-Palatinado, da Saxônia, da Alta Saxônia e da Baviera, as pontes danificadas pelo desgaste e pelo tempo seriam um terço do total. Em média, as pontes ferroviárias alemãs têm 86 anos. Uma ponte na Turíngia tem o recorde de ser a mais antiga do país: 146 anos. Mais tempo do que da proclamação da República ou da promulgação da Lei Áurea no Brasil.

Em suma, a Alemanha pode até aparecer um gigante econômico de dimensão mundial, mas olhando de perto os detalhes dessa potência, os problemas aparecem em todas suas evidencias. Ainda é cedo para dizer se Angela Merkel se aliará novamente ao SPD em uma Grande Coalizão para formar a base do governo. Se isso ocorrer, os social-democratas muito provavelmente pedirão a cabeça de Schäuble, e fortes investimentos públicos como contrapartida de sua lealdade à chanceler. Caso contrário, se a austeridade da CDU continuar firme e forte como hoje, a locomotiva alemã, que se orgulha de levar o resto da Europa, poderá descobrir cedo os riscos de proceder a todo vapor mas sem fazer a necessária manutenção das engrenagens.  

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