As lições de Hillary e de todos nós
"Perder é duro para qualquer pessoa, mas perder uma disputa que você sabia que poderia ganhar é devastador”, diz Hillary em livro escrito em primeira pessoa
Da Redação
Publicado em 21 de outubro de 2017 às 08h52.
Última atualização em 21 de outubro de 2017 às 09h37.
Antes de sair derrotada da eleição presidencial dos Estados Unidos na noite de 8 de novembro passado, Hillary Clinton já tinha inscrito definitivamente seu nome na política americana.
Com uma trajetória pessoal jamais vista em seu país, Hillary deixou para trás o papel de primeira-dama de um presidente americano (Bill Clinton, que governou de 1993 a 2001) para entrar de cabeça na política, como senadora por Nova York (2001-2009), pré-candidata (derrotada) do Partido Democrata à Casa Branca em 2008, secretária de Estado (2009-2013) e, por fim, novamente candidata à presidência dos EUA.
Foi a primeira mulher a disputar com chances o mais alto cargo da maior democracia do planeta e, embora derrotada pelo republicano Donald Trump no Colégio Eleitoral, recebeu quase 3 milhões de votos a mais do que o oponente – no total, exatos 65.844.610 votos, número maior do que o obtido por qualquer presidente na história dos EUA.
Do primeiro dia de campanha até a noite da eleição, a candidata democrata era a favorita em todas as pesquisas – e viu seu sonho desabar na apuração dos últimos votos. Por tudo isso, vale ler com atenção What Happened (“O que aconteceu”, em tradução livre), o livro escrito em primeira pessoa por Hillary, na qual ela tenta explicar, com sinceridade e riqueza de detalhes, não só a derrota em si, mas a sucessão de acontecimentos da eleição presidencial mais surpreendente que se tem notícia, que abriu um novo ciclo na forma de se fazer campanha política na era digital.
“Perder é duro para qualquer pessoa, mas perder uma disputa que você sabia que poderia ganhar é devastador”, escreveu. Para Hillary, o responsável por sua derrota tem nome, sobrenome e cargo: James Comey, o diretor do FBI que havia arquivado em julho uma investigação sobre o uso do seu e-mail pessoal quando era secretária de Estado, o que segundo a denúncia poderia ter causado risco à segurança nacional. De forma surpreendente, na última semana de campanha, Comey informou ao Congresso que havia novas evidências e reabriria a investigação.
O tema monopolizou a cobertura da imprensa na reta final, causando danos irreparáveis à sua campanha. Sua vantagem foi caindo até chegar numa margem perigosa no dia da votação. Segundo Hillary, o que decidiu a eleição, no final, foi o resultado de três Estados (Wisconsin, Michigan e Pensilvânia), nos quais um pequeno universo de 40.000 eleitores mudou de lado e deu os votos no Colégio Eleitoral que consolidaram a vitória a Trump.
“A partir daí qualquer um pode criar uma teoria para explicar o resultado – mas todas elas devem levar em consideração a evidência de que eu estava ganhando até 28 de outubro, quando Comey reintroduziu a questão dos e-mails na eleição”, afirmou. Hillary admite que foi “descuidada” com sua correspondência eletrônica quando estava à frente da diplomacia americana, mas reclama do exagero com que o tema foi tratado pela imprensa. Pelas suas contas, o espaço dedicado aos e-mails ao longo da campanha foi três vezes superior a todos os outros assuntos somados.
Além da investigação do FBI – que depois não deu em nada –, Hillary cita outros fatores para a derrota improvável, entre eles a propagação de notícias falsas (os famosos fake news) pelas redes sociais por parte da campanha de Trump e as acusações de interferência russa por meio de ataques hackers, algo inédito numa disputa presidencial americana. Hillary alega, com razão, que Comey não teve o mesmo zelo em investigar as denúncias da influência russa no processo eleitoral, que claramente favoreceu Trump.
Além das ligações mal explicadas de assessores do candidato republicano com diplomatas russos, a invasão dos servidores do Partido Democrata – do qual foram vazados e-mails dos líderes da campanha – e do sistema de votação de dois Estados eram conhecidos durante a campanha. Este ano, as investigações mostraram que a invasão hacker russa atingiu os sistemas eleitorais de 21 Estados, número que pode chegar a 39. Depois da eleição, Comey caiu e Trump virou alvo de investigação. “O que aconteceu é gravíssimo, nenhuma potência estrangeira nos atacou dessa forma na história moderna e sem nenhuma consequência”, escreveu.
A ela, restou a humilhação de perder a eleição para um empresário sem experiência política, que abusou da grosseria, misoginia e ataques racistas. “Enquanto eu tentava mostrar como iria resolver os problemas do país se fosse eleita, Trump ficava me xingando no Twitter”, escreveu. Hillary admite que o estilo agressivo do oponente republicano funcionou ao longo da campanha, e revela ter estudado a fundo o adversário para vencê-lo nos três debates que ambos participaram, conforme mostraram as pesquisas. “Existe método para loucura que ele demonstra. Para Trump, se todos mergulham na lama com ele, então ele não é mais sujo que ninguém. Ou seja, ele não tem de fazer melhor se os demais fazem pior”, escreveu.
Os erros
Os trechos em que Trump é citado revelam alguns aspectos que precisam ser lembrados ao se analisar a obra. O primeiro é a decisão de Hillary de contar sua versão do que aconteceu apenas poucos meses após a eleição, com a derrota ainda martelando na sua cabeça. Essa impressão fica cristalina na primeira parte do livro, onde Hillary alterna trechos de indignação com outros de angústia, arrependimento, conformismo e tristeza.
Os relatos do telefonema de congratulação a Trump e de sua dúvida até o último momento em comparecer, como mulher do ex-presidente Bill Clinton, na cerimônia posse do presidente eleito mostram que ela claramente ainda não havia digerido o resultado. Ela revela ter driblado a depressão nas semanas seguintes lendo em sequência os quatro livros da escritora italiana Elena Ferrante. Da metade para o final, a narrativa ganha em profundidade, como se a autora já estivesse mais conformada e procurasse ampliar o debate, tentando tirar lições e mirar o futuro.
Outro aspecto é a necessidade de se lembrar a todo momento o caráter parcial da narrativa. Mesmo ao admitir os próprios erros, Hillary acrescenta um “mas” na explicação, sempre culpando alguém para que esses erros ganhem uma importância que não deveriam ter. Além, claro, do então diretor do FBI, a imprensa, a oposição republicana no Congresso, o oponente das primárias democratas Bernie Sanders, o presidente russo Vladimir Putin e as redes sociais têm sua parcela de culpa pela derrota, de acordo com a autora.
É preciso reconhecer que Hillary admite ter cometido erros pessoais. Um deles ocorreu quando, ao enaltecer sua proposta de ampliar o uso de energias renováveis iniciado pelo governo de Barack Obama, sugeriu que o avanço a médio prazo desse tipo de energia era importante para substituir o uso do carvão como combustível fóssil. Estimulados pela campanha de Trump, que tirou do contexto uma frase de Hillary, os mineiros de carvão entenderam a mensagem como uma sentença de morte à sua atividade – o que significou perda de apoio em Estados como Virginia, Wyoming e Virgínia Ocidental.
Outro arrependimento foi o de não ter se afastado de Wall Street após a crise financeira de 2008. Talvez esteja aí a pista para entender sua derrota. Ao longo da campanha, Hillary sempre foi vista como parte do establishment político e financeiro do país – diferentemente de Trump, que se apresentou como um candidato alheio à política que se propôs a retomar o sonho americano, apagado pelos efeitos da globalização, com seus empregos exportados para países emergentes. Vale lembrar que a elite política do país, da qual Hillary sempre fez parte, saudou entusiasticamente a era dos tratados de livre-comércio que, na prática, promoveram a abertura de mercados para as empresas americanas no exterior.
Esse processo de internacionalização significou a ida de indústrias americanas para a China, eliminando mais de 2 milhões de empregos americanos entre 1999 e 2011. A classe média branca, que apoiou Trump em peso, foi o segmento mais atingido por essa nova ordem econômica – dos 60% da renda familiar americana que ela detinha em 1970, a classe média viu sua parcela despencar para 43% em 2014. De quebra, os políticos tradicionais, republicanos e democratas, fracassaram em barrar os seguidos cortes de programas sociais no Congresso e a desregulamentação financeira que levou à crise imobiliária de 2008.
Esses dados indicam que Hillary pode ter perdido menos por seus erros pontuais de campanha e mais por não ter adaptado o seu discurso e propostas para o dilema socioeconômico trazido pela globalização. Além disso, é uma ironia que, pela segunda eleição presidencial como candidata, Hillary tenha sido atropelada pela novidade. A primeira ocorreu em 2008, quando perdeu para Barack Obama – um senador desconhecido que usou as redes sociais como alavanca de arrecadação e veículo de sua mensagem de novidade no cenário político americano. A segunda com Trump, que – é impossível negar – revolucionou as campanhas eleitorais introduzindo as ferramentas mais assustadoras das redes sociais, entre elas a técnica de usar o Twitter para compartilhar fake news, ataques aos adversários e mensagens racistas postados por outros usuários.
Essas ressalvas não impedem que o livro sirva como um documento rico de como se organiza uma campanha presidencial americana. Hillary revela em detalhes como montou sua equipe, a função de cada assessor, a rotina de um candidato, além da logística gigantesca para fazer comícios e participar dos town halls (reuniões abertas com eleitores). Hillary desce a detalhes, desde sua técnica para manter a concentração antes de um debate até como se alimentava no meio de uma maratona de viagens num mesmo dia. Discorre também sobre problemas miúdos que sempre a incomodaram, como o guarda-roupa e a aparência – calcula ter perdido durante um ano e meio de campanha cerca de 600 horas, o equivalente a 25 dias, apenas em cuidados com cabelo e maquiagem.
Mais do que uma lição para Hillary, a campanha presidencial americana reforçou uma certeza: o fato de uma candidata comprometida com o feminismo com chance de se tornar a primeira mulher a ocupar a Casa Branca ter perdido a eleição para um candidato reconhecidamente misógino e pouco afeito ao politicamente correto serve de reflexão sobre o mundo de hoje e a forma de se fazer política que queremos para o futuro.