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Da Redação
Publicado em 18 de março de 2010 às 09h59.
Os brasileiros tiveram direito, na semana passada, a mais um seminário do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito do que está certo e do que está errado neste país - coisa curta, como de costume, o que é uma das grandes vantagens das aulas presidenciais, e grossa, o que é outra. O tema, desta vez, foi a discussão sobre os crimes de tortura praticados durante o regime militar e de que são acusados oficiais das Forças Armadas. Em tese, é assunto complicado, porque mexe com militares, e quando isso acontece sempre aparecem na imprensa e no mundo político preocupações. Será que vai dar problema? Será que os militares vão ficar bravos? Na prática, pode não haver complicação nenhuma, dado o número cada vez menor de gente interessada na discussão ou, até mesmo, informada de que essa discussão existe. Como o movimento "Cansei" e outras chuvas de verão, o tema pode simplesmente cair em exercício findo e sumir do mapa. Mas o presidente não poderia ignorar que membros de seu governo e de seu partido criaram uma situação de conflito verbal com as Forças Armadas, igualmente subordinadas a ele, ao sustentar que crimes de tortura não foram anulados pela anistia e, portanto, seus autores têm de ser punidos. Decidiu dar seu veredicto, e veio com mais uma daquelas tiradas que vão fazer parte, um dia, de seu livro de máximas e ensinamentos.
"Toda vez que falamos dos estudantes e operários que morreram, falamos xingando alguém que os matou", disse Lula. "Na verdade, esse martírio nunca vai acabar se a gente não aprender a transformar nossos mortos em heróis, e não em vítimas." A saída para o empurra-empurra entre seus liderados civis e seus comandados militares, assim, seria parar o xingamento dos que mataram ou bateram e passar à louvação dos que morreram ou apanharam. Há dois problemas sérios aí, um com a primeira parte da proposta e outro com a segunda. O primeiro problema é que não há xingamento. Quem diz que os crimes de tortura não se enquadram na lei da anistia não está xingando ninguém; pode ter as melhores ou as piores intenções, mas, em qualquer dos casos, está apenas dizendo isso mesmo, ou seja, que os crimes de tortura não se enquadram na lei de anistia. O segundo problema é que não há heróis. Quem foi torturado ou assassinado pelos serviços de repressão do regime militar não estava lutando pela democracia; estava querendo substituir uma ditadura por outra. Os que se envolveram na luta armada não sofreram por serem democratas, e sim porque tentaram derrubar o governo pela força e foram derrotados.
Podem ser vítimas, exatamente ao contrário do que Lula sustenta, mas não são heróis - e, se o presidente acha mesmo que "esse martírio" só acabará quando o povo brasileiro transformar os mortos da repressão em novos Tiradentes, vai passar o resto da vida esperando por isso. Para os que brigaram (ou dizem que brigaram) com o regime militar e permanecem vivos, o governo pode dar, e dá, dinheiro - em forma de pensões, indenizações ou empregos. Não pode fazer, nem com eles nem com os mortos, que virem algo que nunca foram.
À primeira vista, o pronunciamento do presidente parece ser apenas a soma de dois disparates. Mas a experiência mostra que quase sempre há uma segunda vista no que Lula diz, quando a situação fica complicada - e, aí, raramente ele vai a passeio. Ao contrário, vai para resolver, e resolver a seu favor, com o mínimo de custo e o máximo de resultado. Parece ter conseguido, mais uma vez. Entre a esquerda, de um lado, e os militares, de outro, deu um jeito de escolher os dois, ou nenhum - dando medalha de herói aos participantes da luta armada e, ao mesmo tempo, deixando claro que não vai brigar com os militares; se não quer "xingamento", muito menos vai querer briga de verdade. Não contem com ele, em nenhuma hipótese, para colaborar com a fabricação de crises onde não tem nada a ganhar.
Se alguém imaginava que Lula ficaria embaraçado com a questão, pode esperar por uma nova oportunidade; ele é um mestre na arte de dar o caso "por encerrado", mesmo quando há militares envolvidos na história. Para deixar o homem emparedado, é preciso bem mais que isso.
Até agora, nada
Fora uma meia dúzia de engenheiros da Petrobras, ninguém no Brasil tinha ouvido falar até bem pouco tempo atrás em "pré-sal". De repente, de uns tempos para cá, fala-se quase todo dia sobre esse "pré-sal", como de um velho amigo que sempre esteve por aí - e é claro que cada vez mais gente, no governo, no mundo político e nas empresas, já se sente capaz de ter as opiniões mais definitivas sobre o assunto. A expressão, que passou a ser um genérico para designar as últimas descobertas de petróleo em águas ultraprofundas do litoral brasileiro, numa faixa de 800 quilômetros que vai do Espírito Santo a Santa Catarina, está agora no centro de um debate que promete ir longe: como será explorado esse tesouro submarino e, sobretudo, quem vai ficar com as centenas de bilhões de dólares que serão retiradas do oceano ao longo dos próximos anos. A Petrobras? Uma outra estatal novinha em folha? As duas? Uma delas, ou ambas, e mais as empresas privadas que já trabalham na área? O presidente Lula já disse que esse novo petróleo não pode ficar "na mão de meia dúzia de empresas", porque o pré-sal é propriedade do povo brasileiro. Isso não ajuda muito a esclarecer as coisas, levando-se em conta que o pós-sal também sempre foi, pelo menos no papel, desde o grito declarando que "o petróleo é nosso" - e até agora o povo brasileiro ainda não viu um tostão desse patrimônio, não em dinheiro que tenha ido parar de fato em seu bolso. O petróleo sempre foi do governo - que nunca se lembrou de repassar para o público em geral os rendimentos obtidos com ele -, de quem comprou ações da Petrobras ou de empresas que dividem com ela o trabalho de exploração. Os demais aguardam. Quem sabe o presidente e seu governo venham explicar melhor, mais adiante, o que pretendem fazer na prática para que os donos legítimos do petróleo sintam alguma diferença visível, em seu favor, com o aproveitamento do pré-sal. Até o momento, não se ouviu nada de animador.
Bem mais comum, ao contrário, tem sido ouvir bobagens em estado puro. Um dos argumentos apresentados em favor da criação de uma nova estatal exclusivamente destinada a explorar as novas reservas (Petrosal? Salbrás?) é que não se pode deixar esse petróleo todo na mão da Petrobras. - ela ficaria forte demais e poderia, até, derrubar o governo. Há um súbito fervor para que nenhuma empresa estrangeira participe da exploração do pré-sal, como se fosse possível fazer isso numa das atividades industriais mais internacionalizadas da era atual. Fala-se em "resolver" o problema da educação brasileira tirando dinheiro das novas jazidas, mais ou menos como se pretendeu resolver o problema da saúde com a CPMF. Se o governo federal vai arrecadar para cima de 700 bilhões de reais neste ano e não consegue melhorar a educação em nada, por que conseguiria algum sucesso repentino jogando mais verba em cima do problema? O dinheiro do pré-sal vale a mesma coisa que qualquer outro; não faz mágica. O governo, por sinal, não pára de receber dinheiro do petróleo - em 2007, recolheu da Petrobras quase 26 bilhões de dólares em impostos sobre vendas, mais cerca de 12,5 bilhões que foram para o Tesouro em forma de lucro. Somando-se a isso os 6 bilhões em impostos e lucros gerados pela BR Distribuidora, tem-se uma bolada de quase 45 bilhões de dólares. Se esse dinheiro todo, ou parte dele, vai ou não para a educação, é responsabilidade única e exclusiva do próprio governo. Ninguém mais, ao mesmo tempo, é responsável pela gestão do sistema educacional brasileiro - e se a gestão é incompetente, como efetivamente é, não há pré-sal que resolva.
A questão das novas reservas é importante demais para ficar limitada aos baixos teores de inteligência que têm marcado até agora o debate a seu respeito. Elas podem ter, e muito provavelmente terão, um impacto dramático sobre o futuro da economia brasileira; daí a responsabilidade crucial dos que têm de tomar, já a partir de agora, as decisões essenciais sobre sua exploração. Dependendo do grau de acerto do que decidirem, os bilhões de barris a serem tirados do fundo do mar poderão ser transformados num dos mais efetivos fatores de avanço que o Brasil já teve, em qualquer época, para a prosperidade de sua economia e o bem-estar da população. Podem ser, também, apenas mais uma grande oportunidade perdida ou mal aproveitada. O que as decisões do momento precisam levar em conta é, em primeiro lugar, a necessidade de manter esse mar de petróleo sob controle efetivamente brasileiro - e efetivamente público. É fundamental, em seguida, que pelo menos desta vez se deixem de lado os preconceitos ideológicos e se dê prioridade real à busca da forma mais eficaz de aproveitar a riqueza das jazidas - o que significa, para não complicar as coisas, obter o máximo de resultados em relação aos investimentos que terão de ser feitos. Interessa, por fim, definir como os 190 milhões de brasileiros vão se beneficiar concretamente do petróleo que é seu. Não há grande vantagem, no fundo, em resolver bem os dois primeiros aspectos e continuar mantendo a população distante do usufruto direto da fortuna que será extraída do oceano.
Há diversos modelos possíveis para avançar nisso. Nenhum deles é o que se utiliza no momento, em que todo o dinheiro vai para os cofres do governo e de lá, em tese, é distribuído ao público. Infelizmente, é justo dessa situação que os governos brasileiros, de hoje e de sempre, mais gostam.