Economia

Uma amizade que mudou a economia

The Undoing Project: A Friendship that Changed Our Minds Autor: Michael Lewis Editora: W. W. Norton & Company 368 páginas ————————– David Cohen “Porque era ele; porque era eu.” Assim o filósofo renascentista Michel de Montaigne explica, nos seus Ensaios, a razão de sua amizade com Étienne de La Boétie, autor do Discurso da Servidão Voluntária […]

KAHNEMAN E TVERSKY, EM 1971: Lewis faz uma brilhante ode a uma das amizades mais espetaculares da ciência, talvez da história humana / Reprodução/Pinterest

KAHNEMAN E TVERSKY, EM 1971: Lewis faz uma brilhante ode a uma das amizades mais espetaculares da ciência, talvez da história humana / Reprodução/Pinterest

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Da Redação

Publicado em 13 de janeiro de 2017 às 18h47.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h26.

The Undoing Project: A Friendship that Changed Our Minds
Autor: Michael Lewis
Editora: W. W. Norton & Company
368 páginas

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David Cohen

“Porque era ele; porque era eu.” Assim o filósofo renascentista Michel de Montaigne explica, nos seus Ensaios, a razão de sua amizade com Étienne de La Boétie, autor do Discurso da Servidão Voluntária (e morto prematuramente aos 33 anos).

A frase, do século 16, se tornou uma das mais poéticas e conhecidas definições de amizade até hoje. Ela parece significar que a amizade é um campo de força criado pela aproximação de duas individualidades. Mas o trecho completo aponta para uma complexidade maior: “Na amizade da qual eu falo, as almas se mesclam e se confundem uma com a outra, numa mistura tão universal que elas apagam e não encontram mais a costura que as uniu”.

É a este tipo de amizade, a fusão de dois seres, que se refere Michael Lewis no livro The Undoing Project: A Friendship that Changed the World (O projeto desfazer: uma amizade que mudou o mundo). Um dos sentidos do desfazer, no título, é a tentativa de recuperar as individualidades em um trabalho criado em dupla. No caso, a dupla de psicólogos israelenses Daniel Kahneman e Amos Tversky, cujas teses são uma das principais fontes para o surgimento do campo da economia comportamental – que valeram o Prêmio Nobel de economia a Kahneman, em 2002 (Tversky já havia morrido, e o Nobel não é concedido postumamente).

Muitas vezes o esforço de separar as contribuições individuais em um trabalho de equipe é razoavelmente simples. João Bosco fazia as melodias, Aldir Blanc escrevia as letras. Após o fim dos Beatles, pipocaram explicações sobre que partes de quais canções foram compostas por John Lennon e que outras partes foram feitas por Paul McCartney – uma tarefa facilitada porque várias músicas tinham a assinatura da dupla mas haviam sido compostas por apenas um deles (como na parceria de Roberto Carlos e Erasmo Carlos). Em negócios, assume-se que Steve Jobs tinha a visão, Steve Wozniak tinha a capacidade de programar; que Jorge Paulo Lemann tivesse a visão, Marcel Telles, o planejamento e Beto Sicupira, a ação.

Alguns exemplos, porém, são de contribuições indissociáveis: como saber que parte da sua gargalhada vai para o Gordo, que parte para o Magro? Bill Hewlett e David Packard tinham estilos e interesses semelhantes, e dessa química nasceu a HP. Numa jam session de jazz, cada músico toca seu instrumento, mas em resposta à criação dos companheiros.

Nesse tipo de cooperação, o time obtém algo que não se explica pela soma. Cada indivíduo é ingrediente e ao mesmo tempo catalisador dos processos do outro. “Quando um de nós dizia algo descabido, o outro ia buscar a virtude naquele pensamento. Nós éramos capazes de terminar a frase um do outro, e frequentemente o fazíamos”, diz Kahneman. “Mas também vivíamos surpreendendo um ao outro.”

Surpreenderam um ao outro e surpreenderam o mundo, na década de 1970, com teorias que chacoalharam a economia tradicional. Veio deles o grande impulso para que a psicologia fincasse o pé na economia.

Não que os economistas tenham aceitado de bom grado a “invasão”dos psicólogos e o desafio à tese de que as pessoas agem racionalmente, em busca de seus interesses – a base do pensamento econômico ortodoxo. Mas Kahneman e Tversky cativaram uma nova geração de economistas, que aos poucos quebraram a ortodoxia por dentro.

A arte de desfazer

O livro de Michael Lewis pode ser interpretado de quatro maneiras diferentes. A primeira é como uma sintética história da economia comportamental. Um segundo sentido do desfazer, do título do livro, é a reversão de alguns equívocos da teoria econômica, especialmente nas premissas sobre a racionalidade na tomada de decisões.

Lewis, um jornalista de finanças, lançou em 2003 o livro Moneyball, a história real de Billy Beane, um ex-jogador de beisebol que virou dirigente e, ao aplicar métricas diferentes na contratação de jogadores, levou o modesto time Oakland A’s às primeiras posições do campeonato nacional (o livro virou filme em 2011, com Brad Pitt no papel principal).

Quando o professor de direito Cass Sunstein e o economista Richard Thaler resenharam seu livro, apontaram que, embora o autor não soubesse, o assunto sobre o qual escrevera era a economia comportamental, da qual ambos são fãs, e que por trás do sucesso de Billy Beane estavam as teses de Kahneman e Tversky. Lewis ficou curioso, e alguns anos depois decidiu escrever sobre os dois.

Como a história é centrada nos dois protagonistas, perde-se algo do contexto. Antes dos dois psicólogos israelenses, um economista e psicólogo americano já havia desferido o primeiro golpe no modelo de racionalidade das decisões. Herbert Simon ganhou o Nobel de 1978 por sua tese da racionalidade limitada – segundo a qual a realidade é complexa demais para que possamos tomar decisões ótimas.

Simon não está no livro, mas assentou as bases para os questionamentos que desembocariam na economia comportamental – de certa forma, um retorno à economia clássica, antes de a disciplina ser dominada pela noção de utilitarismo e pelo conceito de homo economicus, esse ser (supostamente todos nós) que toma decisões racionais o tempo todo.

Outro golpe à tese da racionalidade econômica veio da teoria dos jogos, especialmente com a demonstração de que a soma de decisões racionais no campo individual pode levar à irracionalidade coletiva.

O trabalho de Kahneman e Tversky, no entanto, tornou-se a espinha dorsal da economia comportamental, e Lewis apresenta uma síntese competente de seu significado. O grande insight da dupla foi desafiar a noção de que as pessoas pensam como estatísticos. Em seu lugar, os dois israelenses criaram os primeiros modelos de como as pessoas efetivamente pensam. Chamaram isso de heurísticas, ou regras práticas.

Estão ali o viés da representatividade (julgamos que alguém joga basquete melhor se ele se parece com o estereótipo que temos de um bom jogador de basquete), o da disponibilidade (temos mais medo de andar de avião do que de andar de carro, embora o risco seja muito menor, porque é mais fácil lembrar de desastres de avião), o viés do enquadramento (a mesma situação, apresentada de duas formas diferentes, suscita respostas antagônicas; o exemplo clássico é que a maioria das pessoas aceitaria um tratamento com 90% de chances de ficar curado, mas recusaria um tratamento com 10% de chances de morrer).

Essas teses se tornaram extremamente influentes no mundo moderno, e não só em economia. Em saúde pública, por exemplo, a pirâmide alimentar foi substituída pela figura do prato ideal, porque as pessoas tendiam a considerar os alimentos na parte de cima da pirâmide como mais importantes. Em políticas públicas, os trabalhadores americanos não têm mais que optar para participar de um plano de aposentadoria – eles têm a liberdade de sair do plano, se quiserem, mas em princípio estão arrolados; isso elevou a participação nos planos em 30 pontos percentuais.

Claro, se o seu interesse é entender economia comportamental, há inúmeros outros livros mais didáticos, mais densos ou mais recheados de exemplos, como Nudge, de Thaler e Sunstein, ou Rápido e Devagar, do próprio Kahneman, em que traduz para linguagem leiga o seu trabalho com Tversky.

O que o livro de Lewis traz, porém, é uma perspectiva que não se encontra em nenhum dos trabalhos acadêmicos. Um exemplo: na introdução de Rápido e Devagar, Kahneman conta seu primeiro contato com Tversky, um colega mais jovem na Universidade Hebraica, foi quando o convidou para falar em um seminário que organizou. Tversky falou sobre um programa na Universidade de Michigan que procurava responder se as pessoas usavam intuitivamente a ciência estatística – da mesma forma que intuitivamente usam gramática. A resposta era um sim, com ressalvas.

“Nós tivemos um animado debate no seminário e finalmente concluímos que uma melhor resposta seria não, com ressalvas”, escreveu Kahneman. Lewis apresenta a história de forma um pouco mais viva: Kahneman colocou Amos contra a parede. “Sua palestra foi brilhante, mas não acredito em uma única palavra”, disse. A partir daí, seguiu-se uma discussão ao estilo israelense. “A ideia de cada um tem direito à sua opinião é uma coisa da Califórnia. Em Jerusalém, fazíamos diferente”, afirmou Kahneman. Mais tarde, em casa, ele se gabou para a mulher que havia vencido uma discussão com um colega mais jovem e arrogante.

Outro exemplo: nas “histórias oficiais”, dificilmente alguém contará que a razão para o primeiro parceiro de trabalho de Tversky, Amnon Rapoport, o ter abandonado foi que “ele era tão dominador, intelectualmente, e eu percebi que não queria ficar na sombra de Amos a minha vida toda”.

Professores e militares

E aí entra a segunda possibilidade de interpretação do livro. Ele apresenta o funcionamento do mundo acadêmico e, particularmente, um quadro peculiar da história de Israel. Tanto Kahneman quanto Tversky lutaram em três guerras – a da independência, a dos Seis Dias e a guerra do Yom Kippur – que Israel travou com seus vizinhos. “Amos e eu discutíamos sobre isso: como reconciliar esses dois lados da vida. Professor e matador”, disse Rapoport.

Trata-se não só da história contada do ponto de vista dos indivíduos, mas também como a vida real influencia as teorias. Antes mesmo que houvesse um departamento de psicologia na universidade israelense (o acadêmico italiano Enzo Bonaventura, que o montaria, foi morto num ataque árabe em 1948), Kahneman foi designado como psicólogo das Forças Armadas.

Na Força Aérea, Kahneman esbarrou com um dos primeiros exemplos de interpretação equivocada da realidade. Os instrutores acreditavam que as críticas aos pilotos eram muito mais eficazes do que os elogios, porque pilotos elogiados costumavam ter desempenho pior no voo seguinte, enquanto pilotos criticados iam melhor.

Kahneman percebeu que o fenômeno em curso era uma simples regressão à média. Se, em média, o desempenho de alguém é nota 7, é porque ele tira alguns 8, alguns 9, mas também notas menores. Estatisticamente, ao longo do tempo, as notas maiores serão compensadas pelas menores e vice-versa. Ou seja, críticas e elogios provavelmente tinham pouco a ver com o desempenho no voo seguinte.

A última guerra da qual participaram, de 1973, foi um exemplo vivo e doloroso de suas teorias de como as pessoas se deixam cegar por heurísticas enganosas. Após a vitória acachapante de 1967, o governo israelense se sentia exageradamente seguro. O pensamento dominante era que, enquanto Israel tivesse uma Força Aérea mais poderosa que seus vizinhos, eles não ousariam atacar. Ousaram, e Israel teve, proporcionalmente, mais perdas humanas que os Estados Unidos em toda a Guerra do Vietnã.

Porque era Kahneman, porque era Tversky

Uma terceira chave para a leitura do livro é a biografia. Trata-se, porém, de uma biografia parcial. Kahneman e Tversky são retratados primordialmente em sua relação. Tudo o mais – divórcios, viagens, filhos, empregos, guerras – aparece em segundo plano. Não se trata de uma biografia dupla, e sim da biografia da dupla.

As individualidades estão ali do mesmo modo como na célebre frase de Montaigne. Lewis dá a entender que a parceria só poderia existir porque Kahneman era Kahneman e Tversky era Tversky.

Não se tratavam de espíritos irmãos. Ao contrário. Kahneman nasceu em Tel Aviv, mas passou a infância na França, onde sua família teve de fugir das agruras do nazismo. Era uma criança do Holocausto. Tversky era um sabra – um israelense nativo, tipicamente ousado e destemido.

“Danny tinha sempre certeza de estar errado. Amos tinha sempre certeza de estar certo. Amos era a vida de qualquer festa; Danny nunca ia a festas. Amos era relaxado e informal; Danny, mesmo quando agia informalmente, tinha o ar de formalidade”, escreve Lewis.

Tversky trocava o dia pela noite, trabalhava de madrugada. Kahneman gostava de acordar cedo. Tversky detestava fumaça de cigarro e, por extensão, fumantes. Danny fumava dois maços por dia. O escritório de Kahneman era uma bagunça em que não se podia encontrar nada. No escritório de Tversky também não se encontrava nada, porque não havia nada além de um caderno, uma lapiseira e uma borracha.

Tversky era superconfiante: jamais anotava coisa alguma na sala de aula e, para as provas, pedia emprestado o caderno de um amigo. Kahneman era o contrário: quando foi para os Estados Unidos, sequer tentou estudar em Harvard porque achava que não estava à altura da universidade.

Era uma amizade improvável. Mas havia semelhanças. Os dois eram netos de rabinos do Leste Europeu e se afastaram da religião. Os dois queriam entender como a cabeça das pessoas funciona. Os dois viviam o contexto dos primeiros anos do Estado de Israel.

Ambos eram personagens marcantes. Certa vez, o chefe do departamento de psicologia da Universidade Hebraica perguntou a um aluno o que achava dos professores, e ele disse que eram “ok”. “Só ok?”, perguntou o diretor. Então descobriu que o aluno tivera aulas com Kahneman em outra universidade. E disse: “Ah, você não pode comparar seus professores com Kahneman. Não é justo. Existe uma categoria de professores chamadas Kahnemans. Você não pode comparar professores a Kahnemans. Você pode dizer que um professor é bom ou ruim em relação a outros. Mas não ao Kahneman.”

Tversky, por seu lado, era considerado um gênio. Uma vez, a Universidade de Tel Aviv deu uma festa para um professor de física que havia ganhado o prêmio Wolf, um dos mais prestigiados da área. Os melhores físicos do país foram à festa, mas no dia seguinte o homenageado ligou para perguntar quem era aquele físico com quem ficara conversando num canto. Quando lhe esclareceram que era Tversky, e que ele não era físico, mas psicólogo, ele reagiu: “não é possível, ele era o mais inteligente dos físicos”.

Tversky era também um campeão de tiradas desconcertantes. Ao Nobel de Física Murray Gell-Mann, ele disse: “Sabe, Murray, não existe ninguém no mundo tão inteligente quanto você pensa que é”. Uma vez, após uma palestra, um estatístico inglês lhe disse que normalmente não gostava de judeus, mas gostou dele. Ao que Tversky respondeu: “Eu normalmente gosto de ingleses, mas não gostei de você”. Quando os dois já eram razoavelmente famosos por seus estudos, perguntaram-lhes se seu trabalho tinha algo a ver com inteligência natural. Tversky respondeu que seu campo tinha mais a ver com estupidez natural.

Por mais marcantes que fossem separadamente, quando se uniam eles viravam outra coisa. Na presença de Kahneman, Tversky tinha dúvidas. Na presença de Tversky, Kahneman sentia-se poderoso e engraçado.

A amizade deu seus melhores frutos na década de 1970. Quando foram para os Estados Unidos, Tversky foi convidado por várias universidades – inclusive com a proposta de emprego mais rápida da história de Stanford. Para Kahneman, que era erroneamente visto como um apoio de Tversky, o processo foi mais difícil, e ele acabou indo para British Columbia, no Canadá.

Tversky recebeu vários prêmios pelo trabalho que desenvolveu com Kahneman, inclusive uma bolsa da Fundação MacArthur, apelidada de “bolsa dos gênios”. Kahneman não foi sequer citado.

Com o tempo e as inseguranças de Kahneman (atiçadas pelo ego de Tversky), a amizade esfriou. Suas conversas pareciam as de um casal em processo de divórcio, lembra a mulher de Kahneman.

Até que Tversky descobriu que tinha um câncer em estágio final, e a expectativa de viver no máximo mais seis meses. Escolheu passar esse último período de sua vida trabalhando num novo livro com Kahneman (Choices, Values and Frames).

“Mas nós ficamos sem tempo antes de ter um produto apresentável”, escreveu Kahneman no prefácio. “Amos me aconselhou a ‘confiar no modelo de mim que está na sua mente’ e escrever por ambos”, afirma. Em vez disso, Kahneman escreveu uma espécie de ode à sua amizade. E esta é a quarta maneira de interpretar o livro de Lewis. Com exceção do primeiro capítulo, uma vinculação pobre da psicologia comportamental ao seu livro Moneyball, Lewis faz uma brilhante ode a uma das amizades mais espetaculares da ciência, talvez da história humana.

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