Ciência

Última esperança, imunidade de rebanho se mostra pouco confiável

A explosão de variantes vem diminuindo o otimismo de uma conclusão rápida para a pandemia

Zona de comércio, em Manaus: a cidade foi fortemente atingida pela covid logo no início da pandemia, no entanto, não demonstra sinais de a imunidade de rebanho tenha amenizado a transmissão (Bruno Kelli/Amazonia Real/Divulgação)

Zona de comércio, em Manaus: a cidade foi fortemente atingida pela covid logo no início da pandemia, no entanto, não demonstra sinais de a imunidade de rebanho tenha amenizado a transmissão (Bruno Kelli/Amazonia Real/Divulgação)

Muito antes da imunidade de rebanho se tornar a obsessão coletiva da humanidade, a frase já era usada para se referir a vacas doentes. Há mais de um século, veterinários observaram que surtos de uma infecção bacteriana altamente contagiosa que ameaçava o gado eram interrompidos assim que eles queimavam uma determinada porcentagem do rebanho, desde que novos animais não fossem introduzidos. O conceito foi ampliado para uma série de surtos humanos, e logo o termo se tornou um lugar comum da epidemiologia.

Desde o início da pandemia, o momento exato em que os EUA devem atingir a imunidade de rebanho para a covid-19 vem sendo discutido furiosamente em audiências no Congresso, programas de tv e entre os vários epidemiologistas de fundo de quintal no Twitter. No imaginário popular, a frase se tornou um sinônimo de fim da pandemia - uma linha de chegada que irá subitamente fazer o vírus recuar e permitirá a volta da normalidade sem máscara.

No entanto, considerando-se quão implacável, imprevisível e sujeito a mutações o coronavírus vem se mostrando, os principais pesquisadores estão começando a dizer que uma expectativa mais realista para a estação final da covid é uma melhora lenta e gradual, com diversos percalços e recuos ao longo do caminho. Vacinas potentes, como a da Modena e a da parceria da Pfizer com a BioNTech, estão deixando o mundo em situação muito melhor do que há seis meses. Mas é provável que o vírus - que já matou 3 milhões de pessoas e infectou mais de 140 milhões em todo o mundo, sem sinais de diminuir o ritmo - continue a circular durante muitos anos. Em outras palavras, o fim da pandemia talvez só fique claro quando se olhar para trás, não para frente.

A ideia por trás da imunidade de rebanho é irresistivelmente simples. Uma vez que determinada porcentagem da população se torne imune por meio de vacinação ou contágio - talvez 70% a 85% de uma população, no caso deste vírus em particular -, a transmissão se torna mais difícil e o efeito protetor blinda aquela comunidade de modo mais amplo. A fórmula, 1-1/R₀, sendo R₀ o número médio de novas infecções que se imagine que sejam resultados de cada caso, exige álgebra básica. Porém, quando se olham os detalhes, em pouco tempo este conceito intuitivo se torna complicado. “Todo mundo fala de imunidade de rebanho como se fosse esse limiar de fato importante, mas ele é na verdade um número bastante bruto e difícil de estimar”, afirma Nicholas Reich, bioestatístico da Universidade de Massachusetts em Amherst, que desenvolve previsões de covid-19 combinando dados de diferentes grupos de pesquisa do mundo todo.

Humanos não são vacas. Longe de ser um número fixo simples, a porcentagem da população necessária para atingir a imunidade de rebanho pode variar com o tempo e de lugar para lugar dependendo de uma série ampla de fatores, entre eles quanto tempo a imunidade dura, como as pessoas se comportam, que fatores atenuantes estão em vigor, quão depressa o vírus sofre mutações e até mesmo o clima local. Uma olhada nas antigas campanhas de vacinação oferece uma perspectiva sóbria do trabalho à frente. A varíola é um dos maiores vírus humanos que já foi oficialmente erradicado. Casos raros de poliomielite ainda acontecem em alguns países. Até mesmo o sarampo levou anos para ser totalmente contido nos EUA graças a vacinas potentes.

Qualquer que possa ser o número teórico, ele teve uma alta nos últimos meses em função da ascensão de variantes mais infecciosas, como a cepa B.1.1.7 que predomina hoje nos EUA. No início da pandemia, alguns estudos otimistas - em geral citados pelos opositores dos lockdowns - afirmavam que até 10% ou 20% da população infectada já seriam suficiente para levar à imunidade de rebanho. As estimativas mais conhecidas, inicialmente em torno de 60% a 70%, têm subido ao longo do tempo. Nos últimos tempos, autoridades americanas têm evitado citar um número específico, enfatizando a necessidade de se tomar a vacina o quanto antes. “Gostaria que as pessoas se livrassem dessa ideia de se referir a algo que, por sua própria definição, é bastante arisco”, disse Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, em uma coletiva de imprensa na Casa Branca em 12 de abril. Uma volta à normalidade será gradual, vem frisando ele.

Não há dúvida de que a vacinação ampla irá reduzir a pandemia, fortalecer a economia e permitir atividades sociais mais normais. O número de mortes e casos graves vem despencando em Israel, que está liderando a corrida mundial para imunizar sua população. Porém, no maior e mais diverso EUA, as vacinas vêm se tornando um tema polarizado. Embora mais de um quarto da população esteja plenamente imunizado, a relutância em tomar a vacina pode travar uma adoção mais completa. (Os grupos que apresentam maior probabilidade de dizer que vão se abster de tomá-la são os republicanos e cristão evangélicos brancos, segundo pesquisas). A oferta de vacina já supera a demanda em algumas regiões do país.

“À medida que avançamos, vamos ter bolsões onde pessoas não terão sido vacinadas, divididos por raça, renda e religião, infelizmente”, diz Ali Mokdad, epidemiologista do Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde de Seattle. “Vamos ver automaticamente surtos entre esses grupos, ou infecções muito mais elevadas entre eles, e nunca iremos atingir a imunidade de rebanho.” Globalmente a campanha de vacinação mal começou, com doses suficientes aplicadas para cobrir apenas 6% da população mundial, segundo o rastreador de vacinas da Bloomberg. Estas doses estão concentradas em um punhado de países ricos. “Fomos pegos com as calças na mão”, diz Saad Omer, diretor do Instituto Yale para a Saúde Global, que nota que muito pouco foi gasto em distribuição mundial de vacinas, levando-se em conta que os vírus não prestam atenção a fronteiras. “Me dá um nó no cérebro a ideia de que podemos ter uma fortaleza de imunidade na América e aprender a viver com o risco de variantes importadas.”

Os recentes contratempos das vacinas não ajudam. Muitos países vêm limitando o uso da vacina contra o adenovírus da AstraZeneca depois que ela foi associada a coágulos sanguíneos raros. A distribuição americana da vacina da Johnson & Johnson foi pausada enquanto as autoridades investigam uma série de eventos semelhantes associados àquela vacina. Os médicos que assessoram os Centros de Controle e Prevenção de Doenças planejam se reunir em 23 de abril.

No longo prazo, o maior curinga são as variantes, em especial aquelas que diminuem a eficácia da vacina. Depois dos resultados empolgantes dos testes de vacinas no fim do ano passado, “eu achava que veríamos praticamente um retorno ao estilo de vida normal na segunda metade de 2021”, diz o virologista David Ho, que comanda o Centro Aaron Diamond de Pesquisa da Aids na Universidade de Colúmbia, onde vem estudando variantes. Embora Ho ainda espere uma melhora contínua, ele diz que a explosão de variantes vem “diminuindo meu otimismo” de uma conclusão rápida para a pandemia.

A cidade de floresta tropical de Manaus, no Brasil, mostra quão difícil será acabar com o vírus sem índices altos de vacinação. A cidade foi fortemente atingida pelo covid logo no início da pandemia, e um estudo concluiu que 76% do município estava infectado já em outubro. Isso deveria ter feito da cidade uma área de imunização de rebanho. Porém, em dezembro uma nova onda apareceu, impulsionada pela variante P.1, o que sugere que há pessoas que pegaram a doença duas vezes. “Não é possível entender Manaus sem se considerar alguns casos de reinfecção”, afirma Ester Sabino, pesquisadora de doenças contagiosas na Universidade de São Paulo. O que se imagina é que vacinas ofereçam mais proteção do que a imunidade natural.

Em um cenário otimista, o coronavírus pode acabar sem modos de continuar a sofrer mutações. Porém, é provável que o quadro complicado no médio prazo signifique um caminho turbulento e cheio de ziguezagues na direção da normalidade. Ele envolverá aliviar restrições em alguns lugares enquanto se quebra a cabeça com novos jeitos de viver num mundo em que o vírus ainda está à solta. Com o tempo, o coronavírus pode se tornar algo semelhante aos da influenza, mudando constantemente de modo que seja necessário uma série sem fim de injeções preventivas. Ou, quem sabe, o SARS-CoV-2 pode sossegar e se transformar em outra gripe comum.

Com tantos resultados possíveis, pesquisadores dizem que a melhor estratégia é focar no que está mais perto do nosso controle: aumentar o número de vacinações na população. “De uma perspectiva imunológica, é muito simples: Vacine tantas pessoas quanto for possível”, diz Shane Crotty, professor no Instituto La Jolla de Imunologia. “Todo mundo vai estar melhor se conseguirmos vacinar 90% da população.”

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