Ciência

Pílula marrom da MSD pode revolucionar o combate ao coronavírus

Em abril de 2020, a MSD fechou um acordo para comprar os direitos do molnupiravir da Ridgeback e dar início aos tipos de testes em grande escala que poderiam fazer o remédio ser autorizado pelas agências reguladoras

Produção da pílula em laboratório da MSD (Christopher Leaman/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

Produção da pílula em laboratório da MSD (Christopher Leaman/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

LP

Laura Pancini

Publicado em 25 de abril de 2021 às 08h00.

A história do que pode se tornar a principal descoberta no tratamento da covid-19 tem início no corredor de um andar de hotel em janeiro de 2020, meses antes de você se preocupar com o vírus, semanas antes de imaginar que ele existia.

Um cientista e uma executiva de negócios estavam em uma conferência de saúde em San Francisco, elaborando um plano para tirar uma promissora droga da academia e dos testes de pesquisa para aprovação regulatória.

George Painter, presidente do Instituto Emory para o Desenvolvimento de Medicamentos, e Wendy Holman, diretora-executiva da Ridgeback Therapeutics, se encontraram no Handlery Union Square Hotel para discutir um composto que Painter tinha começado a desenvolver com verba dos Institutos Nacionais de Saúde (National Institutes of Health, agência federal de pesquisas médicas dos EUA). Os dois se entusiasmaram tanto com as possibilidades que o encontro demorou mais que o previsto, até um grupo de advogados enxotar a dupla da sala. Então, eles continuaram falando no térreo do hotel, horas depois de começarem.

Painter e Holman não estavam discutindo mirar na covid naquela época. A doença e o coronavírus que a causa, o SARS-CoV-2, não estavam no topo da lista de preocupações da conferência do JP Morgan, onde apertos de mão e festas com centenas de convidados ainda eram comuns. Em vez disso, Painter esperava que seu medicamento, o molnupiravir, conseguisse receber mais recursos para acelerar os estudos sobre a gripe. Holman estava ansioso para ver se ele funcionaria com o ebola. Essa é a questão com o molnupiravir: Muitos cientistas creem que ele poderia atuar como um antiviral de amplo espectro, eficaz contra uma série de ameaças.

Alguns dias mais tarde, Holman chegava a Atlanta para ver os laboratórios da Emory e mergulhar nos dados iniciais. Enquanto ela e Painter discutiam os termos de um acordo em que a Ridgeback compraria a droga e começaria a estudar sua segurança e eficiência em pacientes, a covid começava a se alojar no consciente coletivo. Na época em que a Ridgeback anunciou que havia comprado o molnupiravir, em 19 de março, o mundo tinha sido fechado, e estava claro para qual ameaça a droga precisava ser testada logo de cara. Os testes clínicos da pílula começaram em abril.

No mês seguinte, a Merck (com exceção dos Estados Unidos, o Brasil e outros países conhecem a empresa como MSD), que tem uma antiga história de trabalho voltado ao desenvolvimento da área de saúde pública, inclusive com o HIV e o ebola, fechou um acordo para comprar os direitos do molnupiravir da Ridgeback e dar início aos tipos de testes em grande escala que poderiam fazer o remédio ser autorizado pelas agências reguladoras. Eles começaram no outono.

Mesmo com as vacinas distribuídas no mundo todo, o cornavírus e suas mutações ainda apresentam uma das maiores ameaças à saúde. Nem todo mundo que pode tomar uma dose da vacina irá recebê-la. As centenas de milhares de pessoas que continuam a contrair covid todos os dias têm poucas opções de tratamento. Não existe nenhuma pílula simples e barata capaz de impedir que aqueles nos estágios mais iniciais da infecção precisem ser internados mais tarde. As terapias monoclonais de anticorpos que os doutores têm disponíveis hoje àqueles que correm maior risco de ficar gravemente doentes precisam ser administradas em infusões nos centros médicos especializados. E, para aqueles que forem internados, o antiviral remdesivir, da Gilead Sciences, acelera a recuperação, apesar de não haver comprovação de que reduza mortes.

Fabricantes de medicamentos veem uma oportunidade de aumentar o arsenal de potenciais tratamentos. Há 246 antivirais em desenvolvimento, segundo a Organização de Inovação em Biotecnologia, um grupo do setor comercial. E empresas que vão desde uma gigante como a Pfizer a uma desconhecida como a Veru estão testando-os em forma de pílulas. O molnupiravir da Merck está entre as drogas que registraram maior avanço. Seus desenvolvedores esperam que as pílulas possam ser receitadas em larga escala para qualquer um que adoecer. Imagine um Tamiflu para a covid.

O problema, além de garantir que o remédio funcione, é ter certeza de que ele é seguro. Há décadas os desenvolvedores de antivirals vêm lidando com os problemas espinhosos que eles apresentam. Caso a Merck tenha sucesso em demonstrar que o molunipiravir é eficaz e livre de efeitos colaterais sérios, ele pode ser um grande trunfo da empresa, e da sociedade, durante vários anos.

Vírus são particularmente difíceis de se atacar com drogas. Eles capturam células humanas e colocam um maquinário que despeja cópias de si próprios, criando um desafio: destruir os vírus sem danificar as células. O sucesso, quando vem, pode ser temporário, porque vírus sofrem mutações para sobreviver.

O primeiro antiviral aprovado nos Estados Undos foi a idoxuridina, um remédio para herpes que obteve o sinal verde dos órgãos reguladores em 1963, gerações após a descoberta dos antibióticos. Ele está em uma classe amplamente usada de drogas chamadas análogos de nucleotídeos – versões sintéticas de nucleotídeos, componentes fundamentais do DNA e de sua contraparte, o RNA, a molécula-mensageira que leva instruções às fábricas produtoras de proteína de uma célula. OS análogos de nucleotídeos impedem que vírus se reproduzam, ou que se reproduzam de modo eficiente, no interior das células.

Os receios de que a idoxuridina fosse tóxica para o coração fizeram com que ela fose indicada apenas para uso tópico – o tipo de obstáculo que manteve o desenvolvimento de drogas antivirais lento. A crise da Aids da década de 80 fortaleceu o campo. “Até que a HIV surgisse longitudinalmente, havia poucos antivirais importantes”, afirma Saye Khoo, professor de farmacologia e tratamentos na Universidade de Liverpool.  Os números de mortes em alta e o desespero do público quanto ao vírus levaram empresas e governos a despejar milhões de dólares em um setor que não havia visto este tipo de investimento até então.

Os avanços foram significativos. Khoo diz que os cientistas descobriram que algumas pessoas pareciam ter uma resistência natural a contrair HIV – faltava nelas um receptor que permitiria ao vírus entrar nas células –, o que levou a uma nova categoria de medicamentos. Eles descobriram ainda que os antivirais precisavam ser adaptáveis o bastante para lidar com mutações, e que as potentes combinações de tratamento envolvendo múltiplos medicamentos conseguiam prevenir a evolução e propagação da resistência aos remédios. Ao mesmo tempo, alguns dos novos tratamentos causavam sérios efeitos colaterais, como a anemia e os problemas no fígado, o que forçava os fabricantes de medicamentos a melhorarem continuamente seus tratamentos.

Durante esta era, o governo americano começou a estimular sua preparação pandêmica, com enfâse em montar guarda contra o bioterrorismo. Alarmado após ter lido a novela O Evento Cobra, de Richard Preston, em que um terrorista liberta um vírus que causa uma doença fictícia chamada de neurovaríola, o presidente Bill Clinton reuniu em abril de 1998 um grupo de integrantes de sua equipe e cientistas para avaliar tais ameaças. Isso levou à formação do que hoje é chamado de reserva nacional estratégica, cujo objetivo era ter medicamentos e materiais de emergência suficientes para serem usados até 12 horas após uma solicitação oficial em épocas de crise. Após o 11 de Setembro e os atentados com anthrax de 2001, o governo Bush direcionou a reserva para a aquisição de produtos como vacinas da varíola.  Mais tarde, em 2006, o Congresso autorizou a criação da Autoridade Biomédica de Pesquisa e Desenvolvimento Avançado (na sigla original em inglês, BARDA, de Biomedical Advanced Research and Development Authority), para ajudar a desenvolver tratamentos e vacinas para ameaças de saúde pública.

O próximo grande avanço das farmacêuticas nos antivirais aconteceu em 2013, uma cura para a hepatite C cujo custo era de US$ 1 mil por pílula, fabricada pela Gilead. A companhia foi bastante criticada por colocar um preço tão alto em um remédio de uso tão amplo. Era o velho problema risco-recompensa: Se as empresas farmacêuticas não podem definir preços que permitam a elas lucrar com as drogas, é provável que não invistam nelas.

Quando as empresas investem, têm muito mais incentivo para focar nas doenças crônicas em vez das agudas, que envolvem períodos de tratamento – e receitas – implicitamente menores. “Se você for ver que medicamentos foram desenvolvidos contra vírus, há (os de combate à) HIV, hepatite C e herpes. São todas infecções crônicas. Isso quer dizer tratamento de longo prazo”, diz Ashley Brown, professora associada do Instituto de Inovação Terapêutica da escola médica da Universidade da Flórida. “Para as infecções virais agudas como a dengue, febre do Nilo ocidental e chikungunya, não existe nada que possa tratá-las.” Médicos também tiverem dificuldades quando as ameaças anteriores de pandemia de coronavírus – a síndrome respiratória aguda grave (SARS) e a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS) – apareceram, em 2003 e 2012, respectivamente. Mesmo no caso do influenza, só há quatro medicamentos antivirais aprovados recomendados pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças.

A BARDA pode ter ajudado a suprir a brecha na pesquisa de drogas antivirais, mas praticamente desde o começo ela não obteve o financiamento de que precisava para apoiar um processo de canalização robusto. O foco do governo americano em bioterrorismo de certo modo ofuscou a ameaça de surtos de doenças contagiosas. “Não havia uma estratégia tão focada de investimentos para desenvolver antivirais para pandemias”, diz Phillip Gomez, que estabeleceu um programa de produção de potenciais vacinas para HIV, SARS e ebola no Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID, na sigla original em inglês) no início da década de 2000, antes de voltar para o setor privado.

A BARDA também foi limitada pelo fato de que os tipos de drogas que podem ser mais úteis na preparação para uma pandemia – compostos de amplo espectro que combatem múltiplos vírus – são particularmente difíceis de se desenvolver. “O campo inteiro foi inundado de óbitos de candidatas que nuca funcionaram”, diz Robin Robinson, diretor da BARDA de 2008 a 2016.  Mesmo que determinada formulação consiga barrar a reprodução de um vírus, não quer dizer que ela vá funcionar em outro. Isso é porque os vírus têm jeitos diferentes de se replicar, explica ele. Ou seja, em vez de colocar dinheiro no que Robinson chama de “uma chance em um milhão”, o governo americano vem adotando uma abordagem mais direcionada, financiando antivirais adaptados para vírus específicos em vez de para uma série deles. E receber dinheiro o bastante para fazer isso foi sempre um problema. “Toda vez que tivemos uma emergência grande nos Estados Unidos nos últimos 75 anos, fazemos um ótimo trabalho depois, e ele desaparece quatro ou cinco anos depois, quando a verba acaba”, diz Robinson.

Sem o gasto de bilhões de dólares do governo em potenciais medicamentos pandêmicos, restou a um punhado de centros acadêmicos fazer grande parte do trabalho de pesquisa, até que algo se mostrasse promissor o bastante para que uma empresa de biotecnologia ou farmacêutica entrasse em campo para bancar os testes em larga escala. Dito de modo mais bruto, “as farmacêuticas têm um distúrbio de déficit de atenção”, diz Ali Munawar, fundador de duas empresas de medicamentos antivirais em estágios iniciais, uma das quais foi comprada pela Johnson & Johnson.  “Imagino que seja o problema da recompensa”, acrescenta ele. “Não dá para prever quando vai acontecer a próxima pandemia. É difícil fazer planos diante dessa incerteza.” A falta de interesse dos fabricantes de medicamentos em desenvolver antivirais para doenças infecciosas criou o que é conhecido como o vale da morte, em que descobertas promissoras vão por aǵua abaixo porque nenhuma empresa farmacêutica  intervém.

De vez em quando, contudo, surge uma oportunidade.

O composto químico no qual o molnupiravir é baseado – C9H13N3O6, ou N4-hidroxicitidina – é conhecido há décadas. Como a idoxuridina, o remédio do herpes, é um análogo do nucleotídeo. Ele interfere na reprodução, impedindo que uma ameaça cause infecções graves. Porém, o molnupiravir não faz o vírus parar de se reproduzir; em vez disso, a droga introduz erros no RNA do vírus que são replicados até que ele esteja morto.

Com antivirais como este, “basicamente você vai colocar um grão de areia na engrenagem e torcer para que ele pare o impacto do vírus”, diz Gomez, ex-cientista do NIAID. Mas, acrescenta ele, impedir o vírus criando erros no código genético ou por outros meios pode ter consequências imprevisíveis. “Não dá para saber para onde a areia pode ir em outras áreas do corpo.” Uma empresa chamada Pharmasset (uma fabricante de remédios para hepatite C comprada pela Gilead em 2011) investigou o principal ingrediente do molnupiravir por volta da virada do século, mas abandonou o desenvolvimento por receio de que ele fosse mutagênico, ou seja, que pudesse causar má-formações congênitas.

Painter ressucitou a estrutura química do molnupiravir anos atrás. Inspirado por uma preocupação apresentada pela Agência de Redução de Ameaças à Defesa, unidade do Departamento de Defesa americano, ele buscava uma contramedida contra o uso da encefalite equina venezuelana como arma, o material de que são feitos pesadelos como os do Evento Cobra. Químico com 45 patentes nas costas, algumas delas dos remédios antivirais para a hepatite B e a HIV, Painter fez carreira diminuindo a distância entre a descoberta acadêmica de medicamentos e os setores de biotecnologia e farmacêuticos que recebem medicamentos na linha de chegada. Ele pegou a estrutura química estudada no passado pela Pharmasset e a analisou comparada a uma ampla série de vírus, entre eles os da SARS e MERS. No fim de 2016 ele possibilitou seu uso em forma de pílula transformando aquela estrutura química em um “pró-fármaco”, o que significa que o composto se romperia no corpo humano, permitindo à parte que atrapalha a reprodução viral ser absorvida de modo apropriado na corrente sanguínea.

Após sua pesquisa inicial, Painter se dedicou à influenza, uma ameaça sempre presente, como o primeiro alvo do molnupiravir, e se preparou para lançar um teste de segurança financiado pelo NIH no início de 2020. Ele também se candidatou para receber financiamento da BARDA, mas não conseguiu. Rick Bright, então diretor da agência, destacou em uma reclamação-denúncia sobre a resposta do governo Trump à pandemia que, embora seu supervisor no Departamento de Saúde e Serviços Humanos estivesse empolgado com o molnupiravir e quisesse financiá-lo, Bright se mostrara relutante em investir quando a droga foi apresentada a ele pela primeira vez, no outono de 2019. Outros análogos de nucleotídeos tinham causado má-formações congênitas em animais, e ele queria mais dados de segurança antes de autorizar o medicamento.

Foi aí que entrou Holman. A história dela é incomum para as biotech. Ela trabalhou no setor de finanças durante mais de 15 anos, ganhando experiência com a indústria de saúde antes de decidir que queria entrar no desenvolvimento de medicamentos para doenças com poucas opções de tratamento existentes. Seu marido, Wayne, é médico e foi especialista de saúde em uma divisão da SAC Capital Advisors, de Steven Cohen.  O fundo de hedge de Wayne, Ridgeback Capital (uma homenagem ao cachorro da família, um Leão da Rodésia de nome Coco), investiu nas principais empresas de medicamentos, como a BioMarin e a Celgene, antes dele cofundar a Ridgeback Biotherapeutics com Wendy em 2015. Ela se tornou a CEO e cara da biotech.

A Ridgeback Bio é mais conhecida por ter desenvolvido um medicamento autorizado para o ebola, Ebanga, que teve sua saga particular. Os centros em que o remédio foi testado no Congo foram dragados pela violência e incendiados durante os testes, enquanto funcionários dedicados salvavam os registros médicos dos pacientes. (Nos últimos tempos, Holman vem tentando descobrir um modo de transportar a droga às regiões do país que vêm sofrendo com surtos renovados.) O interesse dela no molnupiravir surgiu da vontade de querer descobrir novos medicamentos para o ebola.

Assim que ela e Painter entenderam a urgência da crise da covid, redirecionaram sua pesquisa do molnupiravir para o SARS-CoV-2. Ela usou seus contatos para encontrar o CEO da Labcorp – a empresa estava ocupada fazendo testes desesperadamente necessários de covid, mas também tem uma divisão de testes clínicos – para ajudá-la a garantir um lugar no Reino Unido para pesquisas sobre a segurança nos estágios iniciais. “Nós chegamos e financiamos isso porque, se tivéssemos esperando a fase 1 da gripe acontecer, teria demorado de seis meses a um ano”, diz Holman sobre os estúdios iniciais do medicamento.

Antes da escala pandêmica se instaurar, a Ridgeback havia investido o suficiente em produção para custear um milhão de doses da droga. “Foi aí que começamos de fato a pensar nisso e nos ocorreu: ‘Se for realmente necessário e caso isso realmente funcione (contra covid), não é a dose suficiente de remédios’”, diz Holman. “Eu fiz tudo – não houve um amigo pra quem eu não tivesse ligado ou um colega a quem eu não tivesse implorado.”

Seu périplo por mais capacidade fez da Merck uma escolha natrural. O acordo dinamitado pelas empresas em maio passado envolveu pagamento direto à Ridgeback pela droga e um acordo de participação nos lucros caso ela fosse aprovada. A Ridgeback também manteve o controle sobre o desenvolvimento, realizando alguns testes destinados a ampliar a pesquisa enquanto a Merck cuidava dos testes de grande escala. “O motivo de fazermos parceria com a Merck”, diz ela, foi “para garantir que houvesse medicamentos suficientes para o mundo”.

A Merck bem que precisava de uma conquista de peso. Nos últimos tempos, a farmacêutica tem se tornado cada vez mais dependente de um único remédio para câncer, sem contar uma franquia decadente para o diabetes. A empresa também chegou tarde à corrida pela vacina da covid, e as duas candidatas testadas por ela falharam nos testes em humanos, o que relegou à empresa o nada glamouroso trabalho de produzir as doses de seus concorrentes.

Após fechar o acordo com a Ridgeback, a Merck deu início às fases 2 e 3 dos testes, que visavam recrutar quase 3 mil pacientes nos EUA, Colômbia, Israel, Rússia e em outros lugares. Com milhões de pessoas no mundo contraindo covid, o então chefe de pesquisa da empresa, Roger Perlmutter, disse que iria “consultar duas vezes por dia o número de cadastrados nos nossos testes”, confirmando de forma constante o ritmo de recrutamento na esperança de trazer o molnupiravir para o mercado em tempo recorde. (Perlmutter se aposentou da Merck desde então.)

A empresa está fazendo testes com várias dosagens e acompanhando de perto os efeitos colaterais, além de monitorar uma série de avanços patológicos, que incluem checar se os pacientes em estágios diferentes de covid acabam hospitalizados, sofrem um evento adverso ou morrem. A empresa também está vendo se o molnupiravir reduz ou não a carga viral – uma medida de partículas virais concentradas no corpo após uma pessoa ser contaminada.  Estes estudos podem moldar a espinha dorsal de um pedido de autorização para uso emergencial junto aos órgãos regulatórios.

No começo de março, chegaram os resultados de um estudo menor feito pela Ridgeback com 202 adultos não-internados com covid. A diretora médica, Wendy Painter, casada com George, foi listada como a principal autora das descobertas sobre o estudo, apresentado em um conferência virtual. Alguns pacientes com níveis detectáveis de partículas do vírus viram estes números cair após cinco dias tomando o remédio, sem maiores complicações. Foi um bom sinal, mas o estudo por si só não era abrangente o bastante para determinar eficácia. “Há um sinal, e isso é inegável, mas os números são tão pequenos que temos de tomar cuidado antes de dizer que esse é o ‘próximo antiviral’”, diz Adarsh Bhimraj, diretor de doenças neurológicas infecciosas na Cleveland Clinic (centro médico americano de pesquisa sem fins lucrativos).

A expectativa é que os dados dos testes das fases 2 e 3 da Merck saiam no fim de março. Os cientistas estão ansiosos para descobrir se uma redução na carga viral significa melhores resultados de covid. “Acreditamos que, quanto mais se diminui o vírus, mais provável é que isso seja benéfico”, diz Rajesh Ghandi, médico de doenças contagiosas e professor na faculdade de medicina de Harvard. “Também vamos ficar de olho no seguinte: isso afeta o quadro clínico das pessoas?” Um motivo pelo qual a Merck vem estudando o molnupiravir em pacientes internados, tanto nos estágios iniciais quanto nos mais avançados, é que interferir em uma reprodução viral pode não fazer muita diferença no caso de alguém que já vive com covid há algum tempo.

E resta ainda a questão da segurança, que voltou à tona desde que as preocupações de Bright surgiram pela primeira vez. Em março deste ano, pesquisadores de Chapel Hill, na Universidade da Carolina do Norte, apresentaram um estudo sobre o ingrediente principal do medicamente na mesma conferência sobre doenças infecciosas em que a Ridgeback divulgou seus dados. Com base em suas análises, os pesquisadores da UNC disseram que o uso do molnupiravir deveria ser restrito aos casos em que fosse provável obter os maiores benefícios, “graças aos riscos desconhecidos no longo prazo associados à exposição sistêmica a um mutágeno” (agente capaz de causar mutações).

A Merck não quis comentar a pesquisa da UNC. Porém, levando-se em conta a categoria dos remédios, “é para se preocupar mesmo”, diz Nicholas Kartsonis, vice-presidente sênior de pesquisa clínica de doenças infecciosas e vacinas da empresa. “É preciso ter certeza de que ele não vai provocar mutações genéticas.” A Merck tem feito estudos em laboratório, em roedores e em humanos, e os dados parecem transparentes, diz ele. O que aumenta a confiança dele é um par de análises diferentes sobre a capacidade do medicamento de alterar o DNA de organismos vivos. Nestes, o molnupiravir foi estudado em doses maiores e durante períodos mais longos do que o que seria permitido para seres humanos. O volume total de dados indica que o medicamento não é mutagênico, diz Kartsonis, “mas eu ainda preciso daqueles dados de eficácia para ajudar a confirmar que não é só um comprimido de açúcar”.

Alguns cientistas dizem que, uma vez que a ideia é que a droga seja usada só duas vezes por dia durante cinco dias, seu potencial de danos é limitado. E Bright mesmo vem mudando seu discurso. “Qualquer preocupação que eu tivesse sobre um grupo acadêmico ou uma startup pequena tentando ir depressa demais foi relaxada quando a Merck se envolveu”, diz ele, acrescentando confiar na farmacêutica para realizar os estudos de segurança adequados. “A Merck, muito mais que várias outras empresas, já cancelou projetos porque os dados não pareciam confiáveis.” Umer Raffat, analista farmacêutico na empresa de investimentos Evercore ISI, diz que mesmo que os “figurões da virologia” tenham levantado dúvidas sobre o perfil de risco do medicamento, a Merck é “muito conservadora”, e os dados iniciais não sugerem que a droga seja mutagênica.

“Existe sempre um pouco de tensão sobre estes problemas de, mas e aí, esse remédio vai funcionar ou não?”, diz Robert Shafer, professor da escola de medicina de Stanford especialista em doenças infecciosas. Os dados sobre quanto o molnupiravir reduz a carga viral, que efeito ele tem no covid e que efeitos colaterais ele provoca “com certeza vão influenciar quão amplamente um remédio como esse vai ser usado”, afirma Shafer. “Se havia preocupações remanescentes, provavelmente ele seria usado em circunstâncias de fato limitadas para prevenir covid em pacientes de alto risco. Se os dados acumulados sugerirem que ele não tem efeitos imprevistos, pode ser que o remédio seja usado na população de baixo risco.”

Para a Merck, esta pode ser a pergunta do bilhão. “Pode ser um produto de US$ 1 bilhão ou US$ 10 bilhões”, dependendo do que disserem os dados, diz Mara Goldstein, analista na Mizuho Securities. A Merck está cogitando estudar o molnupiravir como tratamento preventivo, para ser usado após uma pessoa ser exposta, mas antes de ficar doente. Isso permitiria que a droga fosse empregada de modo ainda mais amplo no combate ao covid.

Se a droga se mostrar segura e eficaz, a Merck diz que está pronta para seguir em frente, com capacidade para produzir até 100 milhões de pílulas de molnupiravir, o bastante para cuidar de 10 milhões de pessoas, até o fim do ano. Mais à frente, o medicamento pode até ser tornar um ativo além da luta contra o covid. Painter diz que ele tem se mostrado promissor contra uma série de vírus de RNA, e não só o SARS-CoV-2, o que pode significar que ele é capaz de ajudar governos a se preparar para a próxima pandemia. “Nunca se sabe o que vai vir depois”, diz Brown, da Universidade da Flórida. “Quando o zika aconteceu, eu também vinha acompanhando vários desses remédios pra zika. Só se falava em ebola, e depois, só em zika. Nós meio que temos de nos antecipar, em vez de correr atrás.”

Timothy Sheahan, professor-assistente de epidemiologia na Universidade da Carolina do Norte que trabalhou com Painter em algumas partes da pesquisa inicial sobre o molnupiravir e que teve participação no remdesivir da Gilead, acredita que, dentro de um a dois anos, existirão muito mais antivirais do que há hoje. “Prevejo que será um cenário irreconhecível”, diz ele. “As coisas que teremos à nossa disposição caso outro coronavírus surja serão totalmente diferentes comparadas ao que temos hoje.” Se der certo, o molnupiravir pode ser apenas o começo.

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