Ciência

Lagarto predador entra clandestinamente no Brasil

Espécie original de Cuba, a Anolis porcatus, é invasora, predadora e potencialmente nociva à fauna brasileira

O gênero Anolis tem centenas de espécies que podem hibridizar (Ivan Prates/Agência Fapesp)

O gênero Anolis tem centenas de espécies que podem hibridizar (Ivan Prates/Agência Fapesp)

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Da Redação

Publicado em 17 de fevereiro de 2017 às 12h51.

Última atualização em 17 de fevereiro de 2017 às 16h08.

Começou com a foto de um lagarto publicada em agosto de 2015 em um post no grupo Herpetologia Brasileira no Facebook. Era um lagarto estranho que havia sido observado em uma região residencial próxima à zona portuária de Santos pelo estudante de biologia Ricardo Samelo, da Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista.

“A foto causou comoção entre os membros do grupo. Era um animal diferente de qualquer outro em nossa fauna”, recorda o herpetólogo Ivan Prates, atualmente doutorando na City University of New York (CUNY), sob orientação da professora Ana Carolina Carnaval, da mesma universidade.

Imediatamente começaram as especulações para saber qual seria a espécie em questão. A sugestão mais forte era que devia se tratar de um Anolis carolinensis.

O gênero Anolis reúne quase 391 espécies, praticamente todas no Caribe e nas Américas Central e do Sul. Uma única espécie é exclusiva da América do Norte, justamente o A. carolinensis.

“Após comentar sobre a foto com a minha orientadora [Carnaval], resolvemos descobrir que bicho afinal era aquele. Entrei em contato com Ricardo, que mora em Praia Grande, e aproveitei uma vinda a um congresso no Brasil para irmos a campo na Baixada Santista tentar elucidar o mistério”, disse Prates.

Os pesquisadores não imaginavam, mas estavam prestes a identificar a primeira ocorrência na América do Sul de uma espécie original de Cuba, a Anolis porcatus, que é invasora, predadora e potencialmente nociva à fauna brasileira.

A identificação foi publicada em dezembro de 2016 no South American Journal of Herpetology. O trabalho contou com apoio da FAPESP e da National Science Foundation por meio do projeto de pesquisa “Dimensions US-BIOTA São Paulo: integrando disciplinas para a predição da biodiversidade da Floresta Atlântica no Brasil”.

Quando chegaram ao local onde Samelo havia avistado o lagarto que causou alvoroço na rede social, a dupla de biólogos se deparou com um grande número de animais.

“Até aquele momento ainda pensávamos que se tratava do A. carolinensis e achamos dezenas de exemplares do estranho lagarto. Resolvemos perguntar às pessoas que viviam nas proximidades se conheciam aqueles bichos. Todos os conheciam muito bem. O mesmo se deu quando fomos investigar no Guarujá e em São Vicente, municípios onde aqueles lagartos são abundantes. Acreditamos que o mesmo ocorra em Cubatão. Encontramos machos, fêmeas e também filhotes, sinal de que a espécie invasora está procriando e bem estabelecida na Baixada Santista”, disse.

De volta a Nova York, Prates contou com a ajuda da estudante de biologia Leyla Hernandez para um estudo de DNA de amostras coletadas dos animais com o objetivo de verificar se se tratava realmente do norte-americano A. carolinensis. Não era. O DNA pertencia ao cubano A. porcatus.

“O gênero Anolis é complicado de trabalhar. São centenas de espécies, várias muito parecidas. Além do mais, elas podem hibridizar, ou seja, cruzar entre si, o que complica ainda mais a identificação”, disse Prates.

Qualquer espécie invasora é indesejada, uma vez que compete com a fauna nativa pelos recursos disponíveis. Ainda assim, alguns invasores são piores do que outros. É o que pode acontecer no litoral paulista.

“O A. carolinensis é uma espécie comercializada como animal de estimação nos Estados Unidos. Daí a nossa primeira hipótese para explicar a introdução daquela espécie na Baixada Santista. Algum dono poderia ter solto o bicho ou o animal poderia ter fugido ou se extraviado”, disse Prates.

Mas o A. porcatus não é amplamente comercializado no mercado de animais de estimação. “É uma espécie exótica relativamente grande [cerca de 15 centímetros]. Trata-se de um predador generalista, que se alimenta principalmente de artrópodes, mas também de pequenos mamíferos como ratinhos e até mesmo de outros lagartos”, contou.

Segundo Prates, foram reportados na República Dominicana casos de A. porcatus invasores avistados competindo com lagartos nativos.

Isso leva a crer que a introdução da espécie na Baixada Santista pode eventualmente colocar em risco a sobrevivência das populações locais de lagartos. Sem falar na possibilidade iminente de o bicho se alastrar para outras áreas adjacentes.

A espécie também já invadiu a Flórida, próxima a Cuba. “No caso dos Estados Unidos, pode ser que alguns bichos tenham chegado boiando, à deriva em cima de ramos de vegetação flutuante, como restos de troncos ou folhas de palmeira”, disse a bióloga carioca Carnaval, professora no Departamento de Biologia da CUNY.

Dimensões da Biodiversidade

A hipótese da invasão flutuante não se aplica ao caso brasileiro. A distância entre Cuba e a Baixada Santista é de 6.100 quilômetros. “Nossa hipótese mais forte é a via marítima. Eles podem ter sido embarcados em contêineres ou na carga de navios mercantes. A ideia se justifica pelo fato de todos os locais onde achamos comunidades de A. porcatus estarem próximos a depósitos de contêineres no porto de Santos”, disse Carnaval.

“Mas o estudo de DNA também sugere que os lagartos podem ser originários da Flórida, onde também são exóticos, e não diretamente de Cuba”, disse Prates.

Segundo Carnaval, o trabalho de identificação do A. porcatus na Baixada Santista foi pontual em seu laboratório. “Como a maior parte do meu laboratório, Ivan [Prates] trabalha com a história demográfica de outras espécies de Anolis que ocupam a Amazônia e a Mata Atlântica, bem como suas respostas a mudanças climáticas”, disse.

“Nosso projeto Dimensões da Biodiversidade é um projeto bem grande que reúne biólogos trabalhando nas áreas de sistemática e documentação de biodiversidade, genética de populações e fisiologia com geólogos, geógrafos, climatólogos e engenheiros ambientais”, disse Carnaval.

O objetivo do trabalho é entender o passado, para poder prever o futuro. “Nossa meta é documentar padrões gerais de diversidade e endemismo de espécies e suas linhagens genéticas ao longo da Mata Atlântica, para entender como esses padrões foram gerados e modificados ao longo dos últimos 120 mil anos. Temos ênfase forte nas respostas das espécies da Mata Atlântica às mudanças climáticas do passado, com o objetivo de gerar previsões mais realistas sobre respostas potenciais às mudanças climáticas que ainda estão por vir”, disse.

O artigo Molecular Identification and Geographic Origin of an Exotic Anole Lizard Introduced to Brazil, with Remarks on Its Natural History, de Ivan Prates, Leyla Hernandez, Ricardo R. Samelo e Ana C. Carnaval, pode ser lido no South American Journal of Herpetology neste link.

Este conteúdo foi originalmente publicado na Agência Fapesp.

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