Pesquisa com crianças da USP: estudo é iniciativa da Abrapraxia (FG Trade/Getty Images)
Um estudo inédito no Brasil desenvolvido pela Universidade de São Paulo (USP) faz o mapeamento genético de 100 crianças com apraxia de fala na infância (AFI) para identificar as alterações genéticas que levam ao transtorno, que ainda passa por muito desconhecimento no Brasil.
A intenção é auxiliar em novas opções de tratamento no futuro. A AFI é um transtorno que interfere na reprodução dos sons da fala.
Segundo a fonoaudióloga e consultora técnica da Associação Brasileira de Apraxia de Fala na Infância (Abrapraxia), Elizabeth Giusti, a criança sabe o que quer dizer, mas o cérebro não envia os comandos adequados para movimentar os articuladores, a língua, os lábios e a mandíbula.
A pesquisa é uma iniciativa da Abrapraxia, entidade criada a partir da união de três mães que têm filhos diagnosticados com o transtorno e criaram uma rede de apoio, em 2016.
Desde lá, a entidade já capacitou mais de 15 mil pessoas, entre fonoaudiólogos, terapeutas, pais e familiares, além de oferecer cursos regulares. Dados da entidade indicam que o transtorno, pouco debatido no Brasil, atinge duas a cada mil crianças.
O financiamento do estudo é da Abrapraxia, mas tem contrapartida da USP, que presta os atendimentos gratuitos. A professora titular de genética do Instituto de Biociências da USP, Maria Rita Passos Bueno, que coordena a área de genética do projeto, disse que na fase atual os resultados já são positivos.
“Os resultados estão muito promissores onde a gente está encontrando a caracterização genética em praticamente 50% da amostra.
O estudo, além de confirmar alguns genes já sugestivos associados à apraxia de fala, também está possibilitando a identificação de novos genes candidatos para a apraxia de fala”, contou, informando que entre os 50% somente dois casos só tem apraxia de fala, nos outros casos há alguma outra alteração clínica como espectro autista, deficiência intelectual e convulsões.
A previsão é encerrar esta fase do estudo até o fim deste ano, mas conforme a coordenadora, a intenção é continuar a avançar com o projeto, que ainda precisa de financiamento para uma nova etapa.
“A gente não vai conseguir resolver todas as perguntas com este projeto, que é inicial. No primeiro momento é caracterizar as alterações genéticas de apraxia de fala nesta casuística de crianças brasileiras.
A segunda fase é resolver os casos que a gente não conseguir achar a causa genética”, afirmou.
Bruna Ribeiro é mãe de Gabriel, de 10 anos, uma das crianças que participam do estudo. Além da Apraxia, o filho foi diagnosticado com espectro autista, o que ocorre também com outras crianças com transtorno de fala.
Bruna contou que Gabriel nasceu prematuro extremo com 29 semanas e até os três anos não tinha o diagnóstico de apraxia. “Como teve atraso global motor, demorou a se sentar, a andar, ele não fazia as transições, eu sempre pensava que a fala viria. Mesmo ele balbuciando pouco, meu foco era sempre no atraso motor global. Eu nem imaginava, nem sabia que existia apraxia de fala”, revelou.
O diagnóstico veio quando a fonoaudióloga que trabalhava com o menino fez um curso realizado pela Abrapraxia em Goiânia, Goiás, e identificou o transtorno da fala no Gabriel.
“Até os quatro anos ele foi não verbal. Com quatro anos falou a primeira palavra. Falou Ana, que é o nome da minha sobrinha e afilhada. Hoje o Gabriel fala bem, não tem alguns sons, por exemplo, o r, o g, mas se faz entender”, comentou.
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A doutora Elizabeth Giusti, chamou atenção para a necessidade de capacitar os profissionais da área, diante do desconhecimento sobre o transtorno no Brasil, que pode levar a um erro no diagnóstico e prejudicar o desenvolvimento da criança. Segundo a fonoaudióloga, esse é um tipo de transtorno que se precisa manejar vários tipos de componentes para que a terapia dê resultado. Para isso, é fundamental ter uma criança muito motivada, porque é necessário transformar em prazeroso algo difícil para ela.
“Se está exigindo da criança algo que é uma ferida dela, muito difícil, então, as terapias precisam ser motivadoras e criativas. Os profissionais precisam ser resilientes, porque não é um transtorno que em um mês já vai ver resultado. Não é só a técnica em si, mas tem toda uma questão de manejo da criança, do ambiente, de conseguir dar o desafio na medida certa. Se dá pouco não tira a criança do lugar, mas se dá demais frustra a criança, porque o que se está pedindo foi muito. Encontrar esse ponto de equilíbrio para dar à criança o desafio na medida certa, é algo que vai muito além de só a aplicação das técnicas. Esse olhar empático de entender o quanto aquele momento é difícil para a família e o quanto é desafiador para a criança”, pontuou.
Elizabeth Giusti recomendou ainda a estrutura de uma equipe multidisciplinar, incluindo terapeuta ocupacional e fisioterapeuta. “Com as dificuldades da fala (a criança) pode não conseguir interagir com os amigos e pode gerar comportamentos inadequados, ser, por um lado, uma criança inibida ou, por outro, querer morder os amiguinhos. É importante ter o olhar para a criança como um todo”, comentou, completando que é importante também que a equipe tenha contato com a professora porque é ela quem está lá em contato com a criança na escola todos os dias.
Apesar de a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) autorizar tratamentos completos com fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, a mãe de Gabriel contou, que mesmo tendo uma liminar permitindo o tratamento, não consegue ter acesso a todos os profissionais por causa do seu tipo de plano de saúde. “Tem uma liminar pelo plano mas não consigo fazer valer esse meu atendimento por conta da rede dos profissionais e pela disponibilidade que eles têm de horário. A rede credenciada deles é pequena e não consegue atender à demanda”, disse.
A fonoaudióloga alertou ainda para a importância do diagnóstico precoce para que a criança possa ter acesso ao tratamento adequado para o transtorno. De acordo com ela, diferentemente do que ocorre com uma criança com desenvolvimento típico em que o aprender a falar é algo que acontece naturalmente pelos estímulos ao ter o contato das pessoas que estão ao redor, na criança com apraxia o aprendizado da fala não é algo natural.
“Precisa ser ensinado à criança como movimentar os articuladores para que ocorra essa produção de fala. O diagnóstico precoce significa acesso a tratamento adequado e suporte adequado para a família. Eu vejo que muitas crianças quando não têm acesso a esse diagnóstico precoce, muitas vezes acabam até sendo encaminhadas para outros tipos de tratamento, que não são os mais adequados para essa condição, o que acaba gerando frustração para a criança que vai crescendo. A percepção dela da dificuldade vai ficar cada vez maior. O que começa, por exemplo, com uma dificuldade para desenvolver a fala acaba gerando outras consequências no desenvolvimento, como baixa autoestima, dificuldade para se socializar com outras crianças”, concluiu.
Elizabeth Giusti diz que a Abrapraxia desenvolve cursos para profissionais e famílias de crianças com o transtorno e as informações podem ser obtidas no site.
A especialista acrescentou que desde a criação, em 2016, a associação tem um trabalho para atender famílias que não têm condição financeira para pagar o tratamento. A fonoaudióloga disse ainda que a associação oferece também cursos de formação para fonoaudiólogos e parte das vagas é destinada aos profissionais que trabalham no SUS.