Imunidade de rebanho: a teoria estima que a população toda pode se proteger com 60 a 70% dela imunizada (Noam Galai/Getty Images)
Laura Pancini
Publicado em 22 de março de 2021 às 12h04.
Com a campanha de vacinação contra o coronavírus pelo mundo, uma hipótese relativamente antiga ressurge: e a imunidade de rebanho? A ideia foi popularizada durante os testes clínicos das vacinas, com debates sobre se seria possível bloquear a maior parte da transmissão à medida que um número alto da população fosse imunizado.
Na época, ela dava esperança; hoje, podemos ver que soa improvável. A imunidade de rebanho, estimavam cientistas, seria possível quando entre 60% e 70% da população se vacinasse ou se tornasse imune ao vírus após serem expostas. Fatores como as novas variantes, atraso na vacinação, desigualdade na distribuição, questões sociais, entre outras coisas, atrapalham essa estimativa.
De acordo com a Nature, as perspectivas de longo prazo indicam que a covid-19 nunca irá embora totalmente, e se tornará uma doença endêmica como a gripe. A curto prazo, os cientistas buscam um novo normal que não tenha a imunidade de rebanho como expectativa. Veja algumas razões que explicam o comportamento desses cientistas:
A imunidade coletiva foca na hipótese de que a vacinação e a infecção diminuem o número de hospedeiros suscetíveis para o vírus. Hoje, com muitas vacinas já registradas por órgãos como a Anvisa ou sendo usadas para uso emergencial, se sabe que muitas delas não podem impedir a infecção do vírus — como a Coronavac, por exemplo, que consegue previnir 100% dos casos graves, mas ainda tem uma chance de 50,38% da pessoa ser contaminada e 78% dela ter sintomas leves de gripe. Não há garantia também que alguém imunizado não possa transmitir o vírus, mesmo sem nenhum sintoma.
“A imunidade do rebanho só é relevante se tivermos uma vacina bloqueadora da transmissão. Do contrário, a única maneira de obter imunidade coletiva na população é dar a vacina a todos ”, diz Shweta Bansal, bióloga matemática da Universidade Georgetown em Washington.
De acordo com Bansal, a eficácia da vacina para interromper a transmissão precisa ser "muito alta" para uma imunidade de rebanho significativa e, por enquanto, os dados são inconclusivos.
De acordo com Matt Ferrari, epidemiologista do Centro de Dinâmica de Doenças Infecciosas da Universidade Estadual da Pensilvânia, uma campanha global perfeitamente coordenada poderia ter eliminado a covid-19. “É uma coisa tecnicamente viável, mas na realidade é muito improvável que consigamos isso em escala global”, diz ele.
Realmente, iniciativas como a Covax Facility tentam criar uma campanha global e igualitária, mas a disparidade já está definida nos países e blocos mais avançados. Os Estados Unidos, por exemplo, têm tantas doses disponíveis que 2,5 milhões delas serão enviadas ao México, com outras 7 milhões disponíveis para outros países, além de mais de 115 milhões de doses já administradas na população norte-americana desde dezembro.
Já Israel, país que mais vacinou até agora, conseguiu vacinar mais de 1% de sua população todos os dias no início da campanha. Agora em março, cerca de 50% já tomou as duas doses necessárias para proteção. Enquanto isso, seus vizinhos Israel, Líbano, Síria, Jordânia e Egito ainda não vacinaram 1% de suas respectivas populações.
Além da desigualdade entre países, há a questão da faixa etária. Na maioria dos países, a distribuição da vacina tem foco nos grupos de risco, principalmente em idosos. Isso quer dizer que adolescentes, crianças e bebês são os últimos da fila, e em mais sentidos do que apenas a vacinação – as próprias empresas farmacêuticas estão começando agora seus testes clínicos voltados para crianças. A Pfizer e a Moderna já inscreveram adolescentes em seus testes, enquanto a AstraZeneca e a Sinovac Biotech testam crianças de três anos.
Porém, os resultados estão meses de distância, e cientistas têm que considerar a possibilidade de que talvez crianças não possam receber o imunizante. Caso isso ocorra, a imunidade de rebanho se torna um sonho ainda mais distante. Nos EUA, por exemplo, 24% da sua população têm menos de 18 anos. Sem 24% da população vacinada, 100% dos maiores de 18 anos teriam que ser vacinados para atingir uma imunidade de 76%, número ideal para a suposta imunidade coletiva.
Há também a questão da estrutura geográfica. Usando o exemplo de Israel, mesmo com suas altas taxas de vacinação, se seus países vizinhos não conseguirem fazer o mesmo, as populações podem se misturar e novos surtos (ou até variantes) podem surgir. “Nenhuma comunidade é uma ilha, e a paisagem de imunidade que cerca uma comunidade é realmente importante”, afirma Bansal.
O vírus sempre busca novas formas de infeccionar (e reinfeccionar) a população, o que leva ao surgimento de novas variantes. Atualmente, foram reconhecidas três consideradas as mais transmissíveis: a britânica, a sul-africana e a brasileira. Elas são as únicas na categoria da Organização Mundial de Saúde (OMS) que indica uma variante de preocupação (VOC).
“Estamos em uma corrida com as novas variantes”, diz Sara Del Valle, epidemiologista matemática e computacional do Laboratório Nacional de Los Alamos. Quanto mais tempo leva para conter a transmissão do vírus, mais tempo essas variantes têm para surgir e se espalhar, diz ela.
Um exemplo de como a variante pode afetar a imunidade de rebanho foi identificada em Manaus entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, com a variante brasileira P1. Anteriormente, um estudo havia estimado que até 76% da cidade já havia sido contaminada, sugerindo uma probabilidade de imunidade coletiva.
Porém, quando uma alta nos casos no final do ano passado fez com que pesquisadores testassem amostras, eles descobriram a presença da nova cepa em 42% delas. Hoje, eles já percebem que o problema era bem maior. “Em janeiro, 100% dos casos em Manaus foram causados pela P1”, diz Ester Sabino, imunologista da Universidade de São Paulo. “O vírus ainda ressurgiu apesar de um alto nível de imunidade.”
O que cientistas sugerem é que uma vacinação rápida e completa pode ser o necessário para o surgimento de uma cepa mais contagiosa e transmissível. Com a vacinação lenta, o vírus tem mais tempo de sofrer mutações.
Apesar da imunidade de rebanho considerar as vacinas e a infecção natural como duas fontes para a imunização, o avanço do coronavírus mostrou que a reinfecção é possível. Ainda é inconclusivo o quanto tempo dura a imunidade de pessoas recentemente curadas, mas evidências preliminares indicam que ela diminui com o tempo.
“Ainda não temos dados conclusivos sobre o declínio da imunidade, mas sabemos que não é zero e não é 100”, diz Bansal.
Por último, o fator social é o que torna mais difícil de definir se a imunidade coletiva é realmente possível. Já está sendo observado em Israel, que se aproxima do limite teórico da imunidade de rebanho, que, à medida que mais pessoas são vacinadas, elas aumentam suas interações e, consequentemente, sua exposição ao vírus.
“A vacina não é à prova de balas”, diz Dvir Aran, um cientista de dados biomédicos do Instituto de Tecnologia de Israel. Imagine uma vacina com 90% de proteção: “Se antes da vacina você conheceu no máximo uma pessoa, e agora com as vacinas você conhece dez pessoas, você está de volta à estaca zero.”
A epidemiologista Meyers está tentando ajustar seus modelos para lidar com as mudanças de comportamento da sociedade, inclusive sobre o uso de máscaras e distanciamento social. “O que sabemos sobre o comportamento humano até agora é realmente jogado fora, porque estamos vivendo em tempos sem precedentes e nos comportando de maneiras sem precedentes”, afirma ela.
Mesmo quem está imunizado ainda deve seguir as recomendações de usar máscaras e manter o distanciamento social em lugares públicos. Tais esforços ajudam a diminuir a disseminação do vírus e de novas possíveis variantes enquanto o resto da população também se vacina.
Ao mesmo tempo, estados como o Texas, nos Estados Unidos, estão retirando os mandatos de uso obrigatório de máscaras em locais públicos, desprotegendo sua população.
“É frustrante ver as pessoas diminuindo esses comportamentos de proteção agora”, diz Samuel Scarpino, cientista na Northeastern University em Boston. “O limite de imunidade de rebanho não é um limite de ‘estamos seguros’, é um limite de ‘estamos mais seguros’”, comenta. Mesmo depois que o limite for ultrapassado, surtos isolados ainda ocorrerão.
Stefan Flasche, epidemiologista de vacinas da London School of Hygiene & Tropical Medicine, acredita que “será bastante improvável alcançar a imunidade de rebanho apenas por meio de vacinas”. Ele afirma que, apesar da vacina ser “um desenvolvimento absolutamente surpreendente”, é improvável que ela interrompa completamente a propagação do coronavírus.
A solução, afirma o epidemiologista, é pensar em como viver com o vírus. Apesar da premissa soar assustadora, a vacina já está reduzindo o número de mortes por todo o mundo e testes clínicos das vacinas disponíveis considerando as novas variantes podem nos surpreender. O coronavírus não irá sumir em breve, mas irá diminuir.