Sem filme para hoje? "Mank" é retrato fiel de rede de intrigas
Disponível na Netflix, filme mostra bastidor da intrincada história da indústria do cinema, um mundo de egos hiper desenvolvidos, trapaças e mesquinharias
Estadão Conteúdo
Publicado em 29 de dezembro de 2020 às 09h58.
Herman J. Mankiewicz (1987-1953) sempre foi considerado o homem por trás de Cidadão Kane. Em Mank, de David Fincher, produção da Netflix, ele toma a frente da cena. Orson Welles, diretor de Cidadão Kane, filme considerado por boa parte da crítica como o maior de todos os tempos, faz apenas algumas breves aparições. Aqui, Mank é rei.
Verdade que um rei caído, ou pelo menos em alto estágio de decadência. Vamos vê-lo, logo no começo, transportado (literalmente) para um rancho em Victorville, Califórnia, com a perna quebrada. No isolamento, em companhia de uma enfermeira, uma datilógrafa e um caminhão-pipa de destilados, Mank, maravilhosamente interpretado por Gary Oldman, deverá escrever o roteiro para um futuro filme de Orson Welles. Que virá a ser, todos sabem, nada mais nada menos que Cidadão Kane.
Há um detalhe prévio e interessante a considerar. O roteiro inicial de Mank foi escrito pelo pai de David Fincher, Frank Fincher, nos anos 1990. O próprio Frank queria filmá-lo, com Kevin Spacey no papel principal. No entanto, o estúdio por ele contatado desistiu ao descobrir que seria um filme em preto e branco. O projeto não saiu e Frank Fincher morreu em 2003.
Agora, o filho resolveu retomá-lo, e com liberdade, já que a Netflix, depois do sucesso de Roma, de Alfonso Cuarón, parece não ter qualquer problema com produções em preto e branco. David Fincher, como Welles faria com o roteiro de Mankiewicz, mexeu no texto original de seu pai, talvez para torná-lo mais atual.
Digo "talvez" porque se Mank é de fato um mergulho na indústria cinematográfica e também na política dos anos 1930, diz respeito também do nosso tempo. É como uma fala que vem do passado para o presente, através da campanha eleitoral pelo governo da Califórnia, um dos panos de fundo desse filme complexo e labiríntico.
Concorriam para governador o republicano Frank Merrien e o democrata Upton Sinclair, escritor e homem de ideias avançadas, tido como esquerdista. Sinclair era o favorito dos liberais da Califórnia, mas uma besta fera para o establishment, isto é os chefões de estúdios, milionários da indústria, grã-finos e magnatas da imprensa. Entre estes últimos, o big boss William Randolph Hearst, que viria a ser modelo do personagem Charles Foster Kane no filme famoso de Welles. Vejam como as coisas vão se amarrando.
Em Mank, o escritor com a perna engessada em seu rancho, evoca o passado em sucessivos flashbacks. Em vários deles, ressurgem essas figuras, o miliardário Hearst (Charles Dance), o dono da Metro, Louis B. Meyer (Anliss Howard), o produtor Irving Thalberg (Ferdinand Kingslay). E também a jovem amante de Heast, Marion Davies (Amanda Seyfried), que seria retratada de modo caricatural em Cidadão Kane e de certa forma reabilitada em Mank.
Na memória de Mankiewicz, esses figurões patrocinam um verdadeiro complô para evitar a vitória de Sinclair. Inclusive produzindo e divulgando filmes de contrapropaganda. Usam atores e atrizes desconhecidos (os "extras"), para retratar os eleitores de Merrien como patriotas e os de Sinclair como idiotas ou aliados dos comunistas. Em resumo, uma fábrica de fake news, décadas antes da invenção dessa expressão e das redes sociais que as veiculam, mas que conecta aquele mundo com o nosso. Um fato trágico associado à fabricação dessa propaganda política enganosa será decisiva na trama de Mank. Dará ao seu protagonista o impulso decisivo para agir de maneira enérgica na defesa do que julga ser seu direito.
E o que será esse direito reivindicado por Mankiewicz? Simplesmente o de ser creditado como roteirista de Cidadão Kane. Ser reconhecido por aquilo que escreveu. Ora, ele deveria permanecer anônimo, pois havia assinado contrato com Welles abdicando da autoria. Mas o texto que vai escrevendo no rancho, em boa parte baseado nas memórias do convívio com gente como William Hearst, Irving Thalberg, Marion Davies, Louis B. Meyer, lhe parece de tal forma pessoal que nada mais justo lhe parece que colocar sua assinatura na capa.
Também é bom lembrar que esta é outra polêmica do mundo do cinema. Em 1971, a famosa crítica de da revista New Yorker, Pauline Kael, escreveu um longo ensaio intitulado Criando Kane (Raising Kane). No texto (edição brasileira da Record), ela sustenta, com todas as letras, que o roteirista Herman J. Mankiewicz seria o verdadeiro autor de Cidadão Kane.
Como se poderia esperar, o texto de Kael despertou reações diversas e nem sempre positivas. Se por um lado valoriza a figura do escritor, em geral minimizado pela figura hipertrofiada do diretor, por outro ignora que é o cineasta quem conduz o processo de filmagem e imprime o desenho final da obra. Pelo menos quando tem liberdade de trabalho, como era o caso de Welles em seu primeiro filme. Cineastas como Peter Bogdanovich saíram em defesa de Welles e um escritor como Robert L. Carringer realizou uma grande pesquisa para desmontar a tese de Kael, em The Making of Citizen Kane (aqui editado como Cidadão Kane - O Making Of, pela Civilização Brasileira).
Welles e Mankiewicz foram premiados com o Oscar de melhor roteiro em 1942, o único troféu de Cidadão Kane, que recebera nove indicações naquele ano. Nenhum dos dois foi receber a estatueta.
Mank é, portanto, o bastidor dessa intrincada história da indústria do cinema, um mundo de egos hiper desenvolvidos, com suas alianças e trapaças, rivalidades e mesquinharias, grandezas e baixezas. Tudo em torno de um filme mítico, saído da cabeça de um diretor carismático que nunca mais teria liberdade para trabalhar da mesma maneira nos estúdios. E de um roteirista de gênio, inventor de uma palavra-talismã do cinema moderno - Rosebud - e que morreria onze anos depois, de complicações decorrentes do alcoolismo.
Bastidor do mundo fascinante e ambíguo do cinema, mas também da política da época e de qualquer tempo, com seus interesses econômicos e golpes baixos, práticas usuais que conhecemos todos os dias pela leitura de jornais. Ambos - cinema e política - andam muito juntos, mais do que gostaríamos de saber, sobretudo no milionário sistema de estúdios norte-americano da época, em que a briga por espaço no mercado era também uma disputa de poder. Uma guerra, na qual, se sabe, vale tudo.
Mank tem esse fascínio e essa complexidade. Fala da escritura do roteiro de Cidadão Kane e, no próprio processo, coloca-se como um espelho antecipado desse filme famoso. Por isso, teria de ser como Kane, moldado numa estrutura em flashback, com idas e voltas no tempo. O escritor, preso à cama em seu rancho no deserto, evoca suas experiências anteriores para dar vida aos personagens e à ficção que está criando. A arte fala da vida e a recria, e também a reinterpreta. Mank tinha de ser em preto e branco, como Kane. E precisava ter, no papel principal, um ator tão fantástico como Gary Oldman, que não se deixasse ofuscar pela lembrança de Orson Welles como Charles Foster Kane.