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Roseanne: a pequena classe média americana na TV

O sitcom Roseanne, sobre a matriarca de um família operária que vive nas margens do sonho americano, volta ao ar na TV americana

ROSEANNE BARR E JOHN GOODMAN: a série Roseanne volta ao ar 20 anos depois da nona temporada / Divulgação

ROSEANNE BARR E JOHN GOODMAN: a série Roseanne volta ao ar 20 anos depois da nona temporada / Divulgação

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Da Redação

Publicado em 31 de março de 2018 às 08h06.

Última atualização em 31 de março de 2018 às 12h23.

LOS ANGELES — Numa tarde inusitadamente gélida em Los Angeles, Roseanne Barr — comediante, atriz, fazendeira, mãe de dois filhos, vencedora do Globo de Ouro em 1993 — está caminhando por um longo e sombrio corredor num hotel de luxo em Beverly Hills, onde está hospedada. Uma pequena multidão de divulgadores, assessores e representantes da rede de TV ABC cria uma espécie de muro ambulante ao seu redor, mas os fãs não se intimidam.

Uma família — mãe, pai, filho adolescente — pede uma selfie. Um grupo de admiradores , colegas no mesmo escritório que sacrificaram a hora do almoço para ver seu ídolo em carne e osso, se aglomera numa esquina do corredor, celulares em riste.

Numa curva antes da sala de reuniões preparada para ela, Roseanne é cordialmente emboscada por uma repórter italiana. “Senhora Roseanne, eu tenho um problema que só você pode esclarecer”, ela diz. Roseanne, que sorri muito pouco em público fecha ainda mais o rosto. “Bom, se é o seu problema, não posso fazer nada. O problema é seu.” A jornalista continua. “Meu problema é que o Presidente Trump jamais fará o mundo melhor. E no entanto você o admira. O que você viu nele que eu não consigo ver?”

Roseanne respira fundo e responde, pausadamente: “Seu problema é a lente através da qual você está enxergando – você só vê o que já sabe. Na minha opinião, eu acho uma boa coisa as conversas com a Coreia do Norte sobre a eliminação do programa nuclear deles, e o Irã, logo a seguir. Acho bom que ele seja amigo de Putin em vez de começar uma guerra nuclear contra ele. Eu acho que ele quer um mundo em paz com muito comércio e coisas sendo vendidas em toda parte. Rezo muito para que ele consiga isso, um mundo sem armas nucleares e com comércio livre e as pessoas com um padrão de vida melhor. Estas são algumas das razões pelas quais  eu o admiro — liderança e boas ideias. Acho que ele tem um ótimo senso de humor. E ele sempre foi muito gentil comigo. Ele participou do meu programa especial de TV e foi muito gentil. Acho que, no fundo, ele é uma pessoa progressista.”

Roseanne, comediante, atriz, fazendeira e fã de Donald Trump, deixou sua fazenda de abacaxis, mamões e nozes macadâmia da Big Island do Havaí e está em Los Angeles participando de uma maratona de divulgação da décima temporada da série que a tirou do circuito de stand-ups e a tornou famosa mundialmente: o sitcom Roseanne. Lançado pela rede ABC em outubro de 1988, Roseanne foi um enorme sucesso desde a primeira temporada, atingindo uma audiência de 23 milhões de pessoas e ficando em segundo lugar em todo o país (na segunda temporada, a série foi para o primeiro posto, onde permaneceu até 1990).

Vinda de seis anos em clubes e bares de standup, uma turnê como show de abertura das apresentações de Julio Iglesias e um especial na HBO, Roseanne Barr transformava sua persona de comediante — cáustica, pé no chão, sem papas na língua, — numa personagem que sincretizava seu passado, numa família de baixa classe média em Salt Lake City, Utah (“a única família judia em Salt Lake City!”, ela gosta de dizer. Salt Lake City é uma cidade fundada e habitada majoritariamente por mórmons) com os perfis de milhares de famílias norte-americanas vivendo abaixo do padrão mediano de renda. “Eu conheço o meu público, sempre conheci – porque eu vivi o que eles vivem”, Roseanne me diz mais tarde, depois do confronto no corredor, instalada na privacidade da sala de reuniões. “Há tão pouco conteúdo focado na classe operária, na pequena classe média! Não se pensa neles. Depois ficam surpresos com o sucesso. Claro! As pessoas dessas comunidades não se viam nas telas de TV!”

E se existiam dúvidas de que o mesmo conceito — Roseanne como a personagem Roseanne, matriarca de um família operária vivendo nas margens do sonho americano — faria sucesso trinta anos depois, elas estão mais que eliminadas: a estreia do que é, oficialmente a décima temporada do sitcom, dia 27 de março, teve uma audiência de mais de 18 milhões de espectadores, um número extraordinário em si mesmo, e ainda mais notável numa era em que as TVs abertas estão em queda livre, perdendo audiência, cada vez mais, para cabo, satélite e plataformas de streaming.

Donald Trump telefonou para cumprimentar Roseanne no dia em que os índices de audiência foram anunciados.

“Eles (a emissora) nunca me ofereceram essa possibilidade antes – do programa voltar, de alguma forma”, Roseanne diz. “E eu não estava pronta para essa possibilidade, de todo modo. Agora estou – e me senti grata e muito feliz. Grata pela oportunidade e feliz pela chance de rever meus amigos e trabalhar com eles, novamente.”

O “novo” Roseanne pega o fio da meada exatamente 20 anos depois do último episódio da nona temporada, exibido em maio de 1997. O cenário é o mesmo, com o velho sofá desbotado e sua manta de crochê em posição de destaque, na mesma casinha modesta em algum subúrbio operário no meio-oeste dos Estados Unidos. Roseanne Conner e  Dan, seu marido de longa data (John Goodman) lá estão, lidando com os mesmos problemas familiares com os três filhos (Sara Gilbert, Lecy Goranson e Michael Fishman), a irmã (Laurie Metcalf) e, agora, um punhado de netos.

A equipe de roteiristas, contudo, sofreu uma mudança radical: apenas Matt Williams, roteirista-chefe da série original, e Bruce Rasmussen sobreviveram para ver o futuro da família Conner. Não é de estranhar: o writers room da série dos anos 1980-90 era um verdadeiro campo de batalha entre Roseanne e os roteiristas, que eram demitidos em massa e substituídos incessacentemete… só para serem demitidos depois. Quando o último episódio da nona temporada foi ao ar, 110 roteiristas tinham sido empregados e demitidos (entre eles: Carrie Fisher, Penelope Spheeris, e Chuck Lorre).

“Sim, é verdade – o writer’s room era uma praça de guerra”, Roseanne diz, com um suspiro seguido por sua famosa risada. “Eu sempre fui muito protetora do meu trabalho, e não foi fácil manter essa proteção na primeira metade da série. Desta vez, quando (a emissora) começou a conversa sobre a volta da série, eu fiz questão de não me comprometer com coisa alguma antes que ficasse bem claro  de que haveria menos briga, menos interferência (da emissora), e que tudo seria mais calmo, e que o processo seria mais receptivo à minha visão das coisas.”

Uma história de mulheres 

A visão de Roseanne, em suas próprias palavras, se define em dois elementos. “É uma história de mulheres, em primeiro lugar. Mulheres como Mary Tyler e Carol Burnett, que são minha inspiração e minhas aliadas. E é a história de uma família operária. É uma história popular. Você conhece a obra de Norman Lear? Eu sou a filha espiritual dele. Seu trabalho sempre foi enraizado no popular, e sempre foi político e sempre deu voz e preferência aos operários e a pequena classe média, que tão poucas vezes tem voz e tão poucas vezes são representados e fazem as coisas se mover, no entretenimento.”

Norman Lear, um dos mais ilustres pioneiros da TV, criou, entre muitas outras séries de sucesso, All in the Family, um sitcom sobre os conflitos de geração numa família de baixa classe média que se tornou um dos marcos da TV nos anos 1970, lidando com temas como a ressaca pós-guerra do Vietnã, a inflação descontrolada, a crise do petróleo, o desemprego e a sensação geral de “o sonho acabou” que dominava os Estados Unidos.

Roseanne continua. “É claro que minha série é política. Sempre foi política, só que de uma forma sutil. Mas meu objetivo principal é fazer rir. No meu ponto de vista, estou ajudando alguém a sair de um estado de tristeza e desamparo e levando para um lugar de poder, através do riso.”

Como na primeira versão da série, Roseanne está usando sua própria vida como material de base.  Seus filhos – dois homens, três mulheres, de três diferentes parceiros, são “diametralmente opostos” a ela, politicamente – como sua prole na série, mais notadamente nesta nova versão. “Eles só acreditam no que Anderson Cooper [jornalista da CNN] diz”, ela ri. “Temos brigado muito. Eu não vou mudar, eles não vão mudar. Sei disso. Queria pelo menos ser um traço de união. O país está muito dividido. Minha família está muito dividida. É muito triste.”

Roseanne acha que a divisão é geracional, não necessariamente de convicções. “Por que as pessoas não procuram entender os pontos de vista dos outros? Por que não são capazes de entender por que tantas pessoas votaram em Trump? Mas esta geração não quer entender, e acho que pelo menos as mulheres da minha geração queriam entender os outros.  Talvez porque eu seja uma avó, agora, eu acredito que é necessário ter compaixão pelo ponto de vista dos outros, e não apenas raiva. Senão sua vida vira um inferno.”

Com a série no ar, Roseanne vai retornar à sua fazenda na Big Island para cuidar dos abacaxis, os mamões e as 3.000 árvores de macadâmia e os netos (“ponho todo mundo para trabalhar”), interrompendo a vida rural apenas para uma turnê de stand-up durante duas semanas no Canadá e uma temporada em Las Vegas. Não tem planos de trabalho como atriz -“comediantes são bons atores, mas é difícil para um ator ser bom comediante” – mas gostaria de escrever uma peça. Gosta de não estar casada com seu companheiro há 16 anos, Johnny Argent, seu sócio na fazenda havaiana (“nunca mais vou me casar, aprendi a lição”), de nadar e desbravar os sertões da Big Island com seu 4X4. E admite que, no fim das contas, está mesmo mais calma. “Passei pela menopausa. Isso muda completamente a vida de uma pessoa.”

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