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O setor editorial e a dificuldade de checar os fatos

Com notícias de erros em livros, surge debate sobre se os editores devem assumir mais responsabilidade pela exatidão das obras que publicam

Naomi Wolf, na livraria Strand em Nova York: erro factual acendeu debate sobre papel dos editores (Jeenah Moon/The New York Times)

Naomi Wolf, na livraria Strand em Nova York: erro factual acendeu debate sobre papel dos editores (Jeenah Moon/The New York Times)

Guilherme Dearo

Guilherme Dearo

Publicado em 17 de outubro de 2019 às 09h00.

Última atualização em 17 de outubro de 2019 às 09h00.

Em uma era atormentada por notícias falsas e campanhas de desinformação on-line, ainda temos a tendência a confiar no que lemos nos livros. Mas será que deveríamos?

Só no ano passado, erros em obras de vários escritores famosos – incluindo Naomi Wolf; a ex-editora executiva do "The New York Times", Jill Abramson; o historiador Jared Diamond; o cientista comportamental e "especialista em felicidade" Paul Dolan; e o jornalista Michael Wolff – geraram um debate sobre se os editores devem assumir mais responsabilidade pela exatidão de seus livros.

Alguns autores começaram a contratar verificadores independentes para revisar seus livros. Há editores de não ficção em grandes empresas editoriais que começaram a incluir a rigorosa verificação profissional de fatos em seu conjunto de serviços.

Mesmo que, após cada escândalo de exatidão, todos se perguntem onde estão as pessoas que verificam os fatos, não há consenso no setor editorial, que já tem baixas margens de lucro, sobre quem deve pagar pelo processo demorado e trabalhoso.

"O padrão entre os editores é: 'Confiamos em nossos escritores', e, bem, isso não é o suficiente", disse Gabriel Sherman, jornalista que pagou a dois verificadores US$ 100 mil do adiantamento de seu livro de 2014, "The Loudest Voice in the Room", sobre Roger Ailes e a Fox News. "Eu gostaria que os editores vissem a importância da verificação de fatos como um tipo de apólice de seguro."

Os editores há muito tempo insistem que checar os fatos de cada livro seria proibitivamente caro e que a responsabilidade cabe aos autores, que detêm os direitos autorais. Mas, com a atual polarização da mídia, essa postura parece estar mudando, pois alguns deles discretamente concordam que deveriam estar fazendo mais, especialmente quando o assunto é controverso.

"Se você está escrevendo um livro remotamente controverso, vai haver um público que tentará ativamente desacreditá-lo", disse Kyle Pope, editor da "Columbia Journalism Review". "Não acho que vá durar a noção de que os livros estão acima disso."

Acusações de negligência e de más práticas jornalísticas rapidamente explodem nas redes sociais. Abramson foi denunciada no Twitter por fontes e outros jornalistas por erros em seu livro "Merchants of Truth", e por não citar o material de outros escritores. Ela fez correções e deu crédito a fontes na versão digital e para futuras edições.

"Eu estava ciente de que cuidar de tudo isso era minha responsabilidade como escritora", disse Abramson em uma entrevista. "Houve erros e imperfeições e notas de rodapé ausentes, e isso me incomodou."

A situação foi ficando mais séria à medida que a indústria editorial se tornou cada vez mais dependente de indiscrições políticas, memórias e livros de não ficção informativa para impulsionar seus lucros. De 2014 a 2018, a receita de não ficção para adultos cresceu 23 por cento, enquanto a ficção para o mesmo segmento caiu 10 por cento, de acordo com a Associação de Editores Americanos, um grupo do setor.

Ao mesmo tempo, o escrutínio desses livros vem aumentando. Depois que Michael Wolff publicou "Siege" em junho, seu relato da volatilidade dentro da administração Trump, os jornalistas destacaram inúmeras imprecisões na obra.

O editor de Wolff, Henry Holt, o apoiou.

"Embora possa haver pequenas correções de edição feitas no texto em edições futuras, Holt não tem planos de alterar os relatos ou percepções do autor", disse a empresa em um comunicado.

Em maio, o "The New York Times Book Review" publicou uma crítica dura ao livro de Diamond, "Upheaval". O revisor, o escritor Anand Giridharadas, mencionou fatos confusos e o que descreveu como generalizações enganosas, e argumentou que os problemas simbolizavam bem a ausência sistêmica de verificação de fatos no mundo editorial.

"Os verificadores são tão importantes quanto os designers de capa e os editores", disse Giridharadas em uma entrevista. "Esse serviço não é visto como obrigatório, e acho que deveria ser."

Em resposta a uma pergunta do "The Times", Diamond não aceitou que seu livro fosse considerado "repleto de erros".

Michael Wolff em sua casa: livro sobre Trump foi apontado como trazendo erros factuais

Michael Wolff em sua casa: livro sobre Trump foi apontado como trazendo erros factuais (Stephanie Diani)

"Os comentários do sr. Giridharadas estão errados ou são deliberadamente enganosos", disse ele, acrescentando que "os jornais, não só os escritores, podem ser culpados pela verificação de fatos flagrantemente deficiente".

Os erros nos livros normalmente persistem e acabam sendo amplificados, espalhando-se como uma mutação genética quando são repetidos em artigos e em livros subsequentes.

Em sua nova obra, "Talking to Strangers", Malcolm Gladwell escreve que os poetas têm, "de longe, as taxas de suicídio mais elevadas", quase cinco vezes a taxa da população em geral. A estatística espantou Andrew Ferguson, escritor da "The Atlantic", que então decidiu ir atrás da fonte: um artigo que citou um livro de 1993, de Kay Redfield Jamison, psicóloga que baseou os dados de suicídios entre 36 poetas britânicos e irlandeses nascidos entre 1705 e 1805. De alguma forma, uma análise restrita a algumas dezenas de poetas do século XVIII e XIX foi erroneamente aplicada a todos os poetas, e então amplificada em um best-seller.

Quando os editores realizam uma revisão de fatos, isso frequentemente se deve a uma crise. Em junho, a Houghton Mifflin Harcourt adiou o lançamento de "Outrages", de Naomi Wolf, que explora como os tribunais britânicos do século XIX criminalizavam relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, e encomendou avaliações independentes de vários estudiosos depois que surgiram perguntas sobre a exatidão de sua pesquisa. O editor optou pelo passo incomum e caro de fazer um recall das cópias existentes nas livrarias e destruí-las. Wolf disse que discorda do atraso e que apenas um pequeno número de erros deveria ser corrigido.

Os editores fazem seu departamento jurídico revisar manuscritos para se protegerem contra difamação e violação de direitos autorais. Mas esse processo não inclui vetar a pesquisa e a tese de um escritor, e nem sempre evita erros ou mesmo fraudes, como foi o caso das memórias fabricadas por James Frey, por Margaret Seltzer e por Herman Rosenblat, sobrevivente do Holocausto.

A realidade econômica de editoras comerciais – um negócio imprevisível que muitas vezes depende de grandes best-sellers e de escritores de sucesso – dificulta a verificação rotineira de fatos. Verificar rigorosamente um manuscrito do tamanho de um livro, tarefa que pode envolver ligar para fontes e revisar notas e documentos, pode custar dezenas de milhares de dólares, o equivalente a um adiantamento modesto a um escritor.

Barry Harbaugh, editor da Amazon Publishing, disse que a empresa pagou pela verificação de fatos de muitos de seus títulos de não ficção.

"Em geral, falamos sobre a verificação de fatos de uma maneira defensiva, como quando algo dá muito errado. Mas é também uma maneira de colocar mais mãos em uma história que está sendo esculpida a partir de fatos, e isso melhora a obra qualitativamente", disse Harbaugh.

A Tim Duggan Books, parte da divisão de publicações Crown da Penguin Random House, garante uma verba para que seus autores de não ficção contratem verificadores de fatos. A marca, que foi fundada em 2014, atraiu alguns jornalistas e estudiosos de destaque.

"Parte da natureza do trabalho é evitar suposições e fazer as perguntas mais básicas", disse Andy Young, verificador de fatos profissional que trabalhou com escritores publicados pela Tim Duggan Books.

No início de sua carreira, a escritora nova-iorquina Susan Orlean ficou chocada ao saber que os editores não vetavam livros com base na precisão, mas não podia se dar ao luxo de gastar uma parte de seu adiantamento modesto para checar os fatos. Em seus dois últimos livros, "The Library Book", sobre um incêndio na Biblioteca Central de Los Angeles em 1986, e uma biografia de Rin Tin Tin, a prórpia Orlean contratou verificadores.

"Não quero um erro substancial que possa mudar o significado do meu livro, e também não quero erros bobos", disse ela.

Mesmo assim, erros ocasionais passam despercebidos. Depois que "The Library Book" foi publicado, um bombeiro lhe enviou um e-mail dizendo que sua descrição de bombeiros usando tanques de oxigênio estava errada. Eles usam tanques de ar, já que o oxigênio puro explodiria.

"Corrigimos isso para a próxima edição", disse Orlean.

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