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O ocaso de chefs poderosos como Mario Batali, ex-Eataly

À medida que os chefs construíam grandes restaurantes, eles se tornavam marcas poderosas, capazes de ocultar abusos, agressões e discriminação

Mario Batali em seu restaurante em Greenwich Village (Fred R. Conrad/The New York Times)
DS

Daniel Salles

Publicado em 11 de outubro de 2020 às 06h11.

Imagine um ótimo restaurante, o chef trabalhando antes de o dia raiar, jogando farinha moída a mão na superfície de trabalho. O chef sob uma luz forte, cortando cebolinha ou abanando o fogo na madeira que assa uma fileira de aves.

O chef está concentrado, mas todo o resto – todo mundo – está fora de seu foco.

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Não preciso descrever o chef para você. Ele é um homem, provavelmente. Um gênio, definitivamente. Digamos que esse gênio é volátil, meticuloso, impenetrável, charmoso, pronto para a câmera. Ele não só gerencia o pessoal de um grande restaurante. Ele é o grande restaurante.

Por décadas, o chef foi tido como a estrela da cozinha. Da mesma forma que o cinema de autor vê o diretor como o responsável pela visão criativa de um filme, o chef é considerado inteiramente responsável pelo sucesso do restaurante. Todos os outros – cozinheiros de linha, garçons, lavadores de louça, até mesmo os clientes – são o suporte de sua visão.

Essa forma de pensar tem informado a cultura do setor em todos os níveis. Mas o poder do chef-auteur como uma ideia está desaparecendo, e, à medida que os trabalhadores de restaurantes se organizam e falam sobre locais de trabalho abusivos, chefes tóxicos e desigualdade em salários e benefícios, fica claro que a indústria de restaurantes precisa mudar.

Esse papel central do chef é algo relativamente novo. Até cerca de 40 anos atrás, eles eram considerados sem graça, trolls do fogão, escondidos atrás da porta da cozinha.

Com algumas exceções, não eram considerados artistas nem visionários. Em geral, não sonhavam em sair em capas de revista ou conquistar seguidores dedicados que os cultuassem. Não lançavam livros nem falavam sobre suas inspirações em entrevistas; não eram estrelas de documentários e não contratavam publicitários para fazer um escândalo horrível desaparecer.

Em seu livro de 2018, "Chefs, Drugs and Rock & Roll", Andrew Friedman documenta a mitologia dos chefs e sua saída da obscuridade. Ele escreve que, antes dos anos 70 e 80, os chefs eram "burros de carga anônimos", em muitos casos não só desconhecidos, mas considerados descartáveis.

Uma mudança começou na década de 1970, transformando o modo como os chefs eram vistos nos Estados Unidos. Quando Wolfgang Puck construiu sua reputação inovadora na cozinha do Ma Maison, e então abriu o Spago, ele ajudou a inaugurar uma era nos EUA na qual os chefs se tornaram nomes – grandes nomes – conhecidos do público não apenas do setor de restaurantes.

Jean-Georges Vongerichten no Lafayette em Nova York em 1988 (Ruby Washington/The New York Times)

Conforme avançavam rumo à cozinha de autor, eles foram finalmente reconhecidos por seu trabalho extenuante, anteriormente desvalorizado. Também conquistaram mais espaço para reimaginar pratos e menus, para mexer na maneira como os restaurantes funcionavam e a quem se destinavam. Transformaram os restaurantes em locais de jantar – e de trabalho – infinitamente mais emocionantes.

Quando comecei a trabalhar em cozinhas de restaurantes, em meados dos anos 2000, voluntariamente desaparecendo no sistema militarista, o status do chef como autor era inquestionável, e a frase "a comida é o novo rock", profundamente embaraçosa, era dita quase que sem ironia.

O livro "Cozinha Confidencial", de Anthony Bourdain, era um cânone. Ao longo de sua carreira, Bourdain pediu consideração e respeito pelos imigrantes que trabalhavam ilegalmente no país, e aos muitos postos de trabalho mal pagos e negligenciados, mas essenciais para um restaurante.

Mas ele também era uma celebridade, e manteve o ideal romântico do chef como um tipo de trabalho brutal, impossivelmente exigente, mas, em última análise, significativo, que exaltava desajustados, atraindo-os com um senso de propósito – pelo menos, durante a duração de um jantar.

Essa complicada compreensão compartilhada da cozinha de restaurantes era frequentemente usada para justificar o trabalho e as horas, e as expectativas irracionais a serviço da excelência e da glória. Também explicava as deficiências grosseiras e sistêmicas do negócio e normalizava a cultura de trabalho abusiva.

À medida que os chefs construíam grandes restaurantes, eles se tornavam marcas poderosas, capazes de ocultar abusos, agressões e discriminação. E, se continuavam a ganhar dinheiro para seus investidores, muitas vezes mantinham seu poder – como no caso de Mario Batali.

Batali se tornou um dos chefs e restaurateurs mais importantes do país, abrindo restaurantes populares, apresentando programas na ABC e na Food Network, publicando uma série de livros de receitas e tendo um papel central no livro de Bill Buford, "Heat".

Mas, em 2017, várias mulheres falaram sobre o padrão de assédio sexual e agressão de Batali. Em 2019, ele se desvinculou do Bastianich & Batali Hospitality Group e parou de lucrar com os restaurantes que havia montado. Da mesma forma, a chef April Bloomfield cortou sua parceria com o restaurateur Ken Friedman em 2018, depois que ele foi acusado de assédio sexual, e ela admitiu em uma entrevista que não tinha feito o suficiente para acabar com o abuso.

A escritora Meghan McCarron descreveu recentemente o poder duradouro da teoria de autor – uma maneira de pensar em restaurantes que tem um custo difícil de medir e impossível de ignorar.

"Na versão pouco examinada do mundo da comida nessa teoria, os visionários singulares ainda são vistos como os únicos arquitetos da grandeza de um restaurante", escreveu McCarron.

A ideia de um chef-auteur é persistente e sub-reptícia – limita a narrativa e a sustenta. Veja a homogeneidade entre as principais listas da indústria de organizações como a Fundação James Beard, o Michelin e os 50 Melhores Restaurantes do Mundo.

Os homens brancos, que já se encaixam perfeitamente no estereótipo de auteur, têm representação maciça; são elogiados por uma abordagem altamente específica e recompensados com mais investimento e oportunidades para replicar essa mesma abordagem.

Muitos tipos alternativos de negócios alimentícios nunca são considerados para prêmios ou investimentos. Eles não se encaixam na estrutura do chef-auteur e, em alguns casos, nem mesmo querem isso.

Por décadas, a figura do chef genial e poderoso imperou no meio (Ryan Garcia/The New York Times)

Mas, para muitos, já é tarde demais. Eles foram repetidamente excluídos da narrativa e não se encaixam na ideia do auteur. Têm sido sujeitos a abusos, pagos injustamente. Muitos abandonaram completamente o negócio.

A pandemia expôs a fragilidade e a desigualdade da indústria de restaurantes, afetando desproporcionalmente negros, pessoas de cor, trabalhadores de restaurantes e aqueles que mantêm a cadeia alimentar funcionando nas fábricas e fazendas do país. Incentivados pelo poder dos movimentos #MeToo e Black Lives Matter, os trabalhadores estão se manifestando. O modelo da indústria, como existe agora, precisa mudar.

Os menus são colaborativos, até certo ponto. Os chefs lideram esse trabalho, talvez atribuindo testes, aprovando novos pratos, ou degustando-os, editando-os, e na maioria dos casos tomando as decisões finais que moldam a maneira como a comida vem para a mesa. Mas, em alguns casos, dezenas de outros cozinheiros podem estar envolvidos no processo.

Os restaurantes são um trabalho de equipe. Cada um, a cada dia, desempenha um papel no sucesso do estabelecimento.

Um dos meus últimos jantares chiques antes que a pandemia fechasse os restaurantes em Los Angeles foi no Somni, um pequeno bar do hotel SLS Beverly Hills de propriedade de José Andrés. O chef, Aitor Zabala, imprimiu um menu que dava crédito a todos os que trabalhavam no serviço de jantar.

Os carregadores naquela noite eram Josue Rodriguez e Mario Alarcon. O trabalho detalhado de chocolate foi de Ivonne Cerdas e Lindsey Newman. Cerca de uma dúzia de cozinheiros trabalhou na exuberante e rápida refeição de 27 pratos, e todos foram mencionados, como o elenco e a equipe de um filme.

Quando perguntei a ele em um e-mail sobre o projeto, Zabala respondeu que queria que toda a equipe se sentisse conectada ao restaurante e responsável por sua experiência. Ele explicou que é por isso que as refeições no Somni incluem uma taxa de serviço, e por que todos os funcionários participam e compartilham seus ganhos.

Um menu é apenas um menu, mas achei esse um gesto pequeno e eloquente, fazendo os comensais considerarem o restaurante como um todo – um coletivo –, com muitas pessoas trabalhando além do chef.

 

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