O amargo deixa o doce menos cansativo, possibilitando o consumo em maiores quantidades. (Jack Andersen/Getty Images)
Julia Storch
Publicado em 30 de dezembro de 2022 às 09h34.
Como cervejeiro e consumidor de cervejas artesanais de longa data, não tenho dúvidas em apontar que o caminho sem volta para esse universo lupulado não acontece com um estilo específico da bebida. Mas sim com uma sensação. Ou, para ser biologicamente mais correto, com um gosto. Gosto esse que inicialmente provocaria o impulso de nos afastar daquele copo: o amargor. Sim, ele mesmo!
As possibilidades de equilíbrio que esse gosto básico oferece para cervejas são imensas. Como os maltes vão sempre fornecer uma base adocicada, o balanço um pouco mais direcionado para o amargo - como acontece em Pale Ales e Lagers mais caprichadas - oferece uma experiência sensorial ampla e de maior duração. O amargo deixa o doce menos cansativo, possibilitando o consumo em maiores quantidades. Pessoalmente, acho que foi essa a característica que permitiu que cervejas mais complexas fossem consumidas em eventos sociais de longa duração, colaborando para sua popularização.
E sabe o que é mais legal? O mesmo acontece com outro dos gostos básicos: o azedo (ou ácido). Aqui é até mais fácil notar o porquê de uma possível repulsa inicial. A maioria dos alimentos fica azeda quando estraga. Mas apesar desse instinto ter nos salvado na savana ou na floresta, onde de fato é mais seguro permanecer apenas no doce, quando falamos de cervejas o azedo também traz equilíbrio, além de ampliar a sensação de frescor em níveis até mais elevados que o amargor. Que tal então mais uma vez lutar contra esse instinto?
De forma geral, podemos nomear as cervejas que apresentam essa característica em destaque como Sour. E não tenho receio em dizer que muitos dos estilos desse grande grupo são a cara do Brasil, com grande potencial de consumo em dias quentes, na praia e naqueles já mencionados eventos sociais de longa duração.
Mas além do afastamento evolutivo pelo azedo, concordo que essas cervejas não são sensorialmente similares à memória afetiva da bebida. A acidez, na verdade, as aproxima um pouco dos vinhos e, com isso, quem gosta também desse universo vai ter mais facilidade com essa experiência.
Possibilidades de cervejas ácidas não faltam. Algumas bem complexas com descritores sensoriais que de fato são mais comuns em vinhos, e não muito atrativos. Assim, não comece por nada que tenha “notas de couro, estábulo e cobertor de cavalo”. Vá devagar, priorizando as de acidez mais simples e palatável como as Berliner Weisse, com ou sem adições de frutas.
Nosso país tem tido muito sucesso na produção de exemplares com esse perfil. Já fazemos em quantidade e tão bem essas cervejas azedas/ácidas simples, com baixo teor alcoólico e adição de frutas, que você precisa experimentar. Para quem se lembra da trajetória sensorial da descoberta do amargo, o desvendar do azedo vai ser um caminho muito refrescante a ser percorrido.
*Rodrigo Louro é biólogo e pós-doutor em Bioquímica Molecular pelo European Molecular Biology Laboratory, França e sócio-fundador da Sinnatrah Cervejaria-Escola