Escritores da periferia lutam para viver de literatura
"Faço da minha literatura o que um médico em zona de guerra também faz. O que ele tem à mão, ele aproveita", explica um dos escritores
Da Redação
Publicado em 1 de julho de 2016 às 15h03.
Rio de Janeiro - A Flipzona, que tem programação própria durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), reuniu autores de três diferentes periferias brasileiras na tarde de hoje (1) para falar sobre o que os leva a escrever, os obstáculos que enfrentam e como suas origens estão presentes em sua obra.
Jéssica Oliveira, de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Márcio du Coqueiral, de Aracaju, e Diego Moraes, de Manaus, responderam a perguntas do escritor Marçal Aquino e rejeitaram o desânimo com as dificuldades de viver de literatura.
"Falta muita coisa, mas a gente tem que hackear e tem que fazer na raça também", afirmou Jéssica, que escreve crônicas muitas vezes inspiradas em histórias que ouve nas três horas diárias de transporte público entre a Baixada Fluminense e o centro do Rio de Janeiro .
"Estou há apenas duas gerações do analfabetismo, e a pessoa que mais me dá repertório para escrever, minha avó de 86 anos, não sabe ler e assinar o próprio nome."
A autora conta que sempre foi estimulada a gostar de ler, mas começou a querer escrever quando um professor recomendou livros de autores de sua cidade.
"Antes, só lia autores distantes da nossa convivência. Comecei a ler e a sair por pro barzinho e encontrar os caras", lembrou Jéssica. "Quando eu falo do Rio de Janeiro, posso escolher de que Rio de Janeiro eu vou falar. Moro na periferia da periferia, em Morro Agudo."
Ela questiona a visão de quem acredita que só a publicação em papel dá legitimidade aos escritores e afirma que as dificuldades financeiras não farão com que pare de escrever. "Se rolar dinheiro, bom. Se não rolar, vou escrever também."
Romances perdidos em enchente
Márcio du Coqueiral, nascido em Estância, Sergipe, e morador da capital, Aracaju, chegou a ficar dois anos sem escrever após uma experiência traumática: uma enchente em sua rua fez com que perdesse tudo em casa, incluindo dois romances finalizados e um terceiro em produção.
"Não escrevia nem bilhete", lembrou o escritor, que conseguiu salvar poucos textos, que reuniu no livro O que Sobrou da Enchente.
Em sua obra, o escritor diz que tenta estimular pessoas que não gostam de ler. Com textos curtos espalhados em ônibus, papéis de pão e outros locais inesperados, Márcio quer incentivar "as pessoas a perderem um minuto lendo aquilo".
Desempregado e com duas filhas, Márcio trabalha atualmente como freelancer, escrevendo as memórias de um advogado de sua cidade, e não rejeita trabalhos braçais para pagar as contas, nem vê problema nisso.
"Faço da minha literatura o que um médico em zona de guerra também faz. O que ele tem à mão, ele aproveita".
"Manaus é de asfalto e sangra"
Autor de Manaus, Diego Moraes conta que sua literatura nada tem a ver com a tradição de lendas regionais do Amazonas. "A minha Manaus é de asfalto, sangra", diz ele.
E acrescenta: "esse lance de pertencer a um lugar é balela. A escrita pode ter um passaporte infinito, pode ser cosmopolita sempre", afirmou Diego.
Apesar disso, ele defende que os autores não sejam fake (falsos). "Vejo muito isso na perferia. Tentam escrever algo que não dominam, tentam escrever uma novela do Manoel Carlos", critica ele, referindo-se ao autor de novelas da Rede Globo que costuma ambientar tramas no bairro do Leblon.
Com uma trajetória que inclui ter vivido em situação de rua por um ano e se recuperado da dependência química de cocaína, ele afirma que a literatura alivia suas dores.
"A literatura é meu refúgio e minha fortaleza. A literatura é onde eu gozo e onde eu sinto tesão", diz o escritor, que tem como um dos maiores orgulhos saber que sua literatura desperta o interesse de jovens da periferia, inclusive cooptados pela criminalidade.
"Vejo moleques que estavam no tráfico e que me seguem. Tem coisa melhor que isso?"
Para Diego Moraes, o escritor não pode esperar nada de ninguém. "Do céu, só vai cair merda de pombo e chuva", diz ele, que promete para seu primeiro livro: "vem pancada por aí".
Rio de Janeiro - A Flipzona, que tem programação própria durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), reuniu autores de três diferentes periferias brasileiras na tarde de hoje (1) para falar sobre o que os leva a escrever, os obstáculos que enfrentam e como suas origens estão presentes em sua obra.
Jéssica Oliveira, de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Márcio du Coqueiral, de Aracaju, e Diego Moraes, de Manaus, responderam a perguntas do escritor Marçal Aquino e rejeitaram o desânimo com as dificuldades de viver de literatura.
"Falta muita coisa, mas a gente tem que hackear e tem que fazer na raça também", afirmou Jéssica, que escreve crônicas muitas vezes inspiradas em histórias que ouve nas três horas diárias de transporte público entre a Baixada Fluminense e o centro do Rio de Janeiro .
"Estou há apenas duas gerações do analfabetismo, e a pessoa que mais me dá repertório para escrever, minha avó de 86 anos, não sabe ler e assinar o próprio nome."
A autora conta que sempre foi estimulada a gostar de ler, mas começou a querer escrever quando um professor recomendou livros de autores de sua cidade.
"Antes, só lia autores distantes da nossa convivência. Comecei a ler e a sair por pro barzinho e encontrar os caras", lembrou Jéssica. "Quando eu falo do Rio de Janeiro, posso escolher de que Rio de Janeiro eu vou falar. Moro na periferia da periferia, em Morro Agudo."
Ela questiona a visão de quem acredita que só a publicação em papel dá legitimidade aos escritores e afirma que as dificuldades financeiras não farão com que pare de escrever. "Se rolar dinheiro, bom. Se não rolar, vou escrever também."
Romances perdidos em enchente
Márcio du Coqueiral, nascido em Estância, Sergipe, e morador da capital, Aracaju, chegou a ficar dois anos sem escrever após uma experiência traumática: uma enchente em sua rua fez com que perdesse tudo em casa, incluindo dois romances finalizados e um terceiro em produção.
"Não escrevia nem bilhete", lembrou o escritor, que conseguiu salvar poucos textos, que reuniu no livro O que Sobrou da Enchente.
Em sua obra, o escritor diz que tenta estimular pessoas que não gostam de ler. Com textos curtos espalhados em ônibus, papéis de pão e outros locais inesperados, Márcio quer incentivar "as pessoas a perderem um minuto lendo aquilo".
Desempregado e com duas filhas, Márcio trabalha atualmente como freelancer, escrevendo as memórias de um advogado de sua cidade, e não rejeita trabalhos braçais para pagar as contas, nem vê problema nisso.
"Faço da minha literatura o que um médico em zona de guerra também faz. O que ele tem à mão, ele aproveita".
"Manaus é de asfalto e sangra"
Autor de Manaus, Diego Moraes conta que sua literatura nada tem a ver com a tradição de lendas regionais do Amazonas. "A minha Manaus é de asfalto, sangra", diz ele.
E acrescenta: "esse lance de pertencer a um lugar é balela. A escrita pode ter um passaporte infinito, pode ser cosmopolita sempre", afirmou Diego.
Apesar disso, ele defende que os autores não sejam fake (falsos). "Vejo muito isso na perferia. Tentam escrever algo que não dominam, tentam escrever uma novela do Manoel Carlos", critica ele, referindo-se ao autor de novelas da Rede Globo que costuma ambientar tramas no bairro do Leblon.
Com uma trajetória que inclui ter vivido em situação de rua por um ano e se recuperado da dependência química de cocaína, ele afirma que a literatura alivia suas dores.
"A literatura é meu refúgio e minha fortaleza. A literatura é onde eu gozo e onde eu sinto tesão", diz o escritor, que tem como um dos maiores orgulhos saber que sua literatura desperta o interesse de jovens da periferia, inclusive cooptados pela criminalidade.
"Vejo moleques que estavam no tráfico e que me seguem. Tem coisa melhor que isso?"
Para Diego Moraes, o escritor não pode esperar nada de ninguém. "Do céu, só vai cair merda de pombo e chuva", diz ele, que promete para seu primeiro livro: "vem pancada por aí".