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Enredos exagerados de Almodóvar seguem cativantes

Por que amamos filmes delirantes e inverossímeis como “A Pele que Habito”, que estreia neste mês no Brasil

Tramas do diretor espanhol, cheias de reviravoltas, deixam pouco espaço para o chamado “mundo interior” dos personagens (Divulgação)

Tramas do diretor espanhol, cheias de reviravoltas, deixam pouco espaço para o chamado “mundo interior” dos personagens (Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 31 de outubro de 2011 às 17h02.

São Paulo - Se você é fã do diretor espanhol Pedro Almodóvar, tente adivinhar quais são os filmes abaixo – reduzidos aos 140 caracteres da linguagem nervosa do Twitter:

(a) Enfermeiro estupra bailarina em coma e, antes de se matar, procura melhor amigo – escritor cuja mulher também havia entrado em coma.

(b) Mulher abandonada por amante casado perde o eixo, coloca fogo na cama e faz polícia e amigos dormirem com sopa soporífera.

(c) Mãe vê filho morrer atropelado enquanto ele pede autógrafo para diva do teatro – e, durante o luto, decide se tornar secretária da atriz.

(d) Policial fica paraplégico enquanto salva mulher ameaçada por traficante de drogas. Eles se casam, mas não são felizes para sempre.

(e) Cirurgião sequestra homem e o transforma em objeto de experiências médicas – dermatológicas, psiquiátricas e ginecológicas.

Você acertou se respondeu que de (a) a (d) temos, respectivamente, Fale com Ela, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, Tudo Sobre Minha Mãe e Carne Trêmula. A letra (e) se refere a A Pele que Habito, com estreia prevista para este mês no Brasil. É mais um filmaço a reiterar a pergunta: como enredos que se parecem com manchete de jornal sensacionalista podem ser tão cativantes? E como seu autor pode ter tanto prestígio junto à crítica, num raro caso de unanimidade inteligente? Almodóvar é, em nossa época, o diretor que mais se identifica com aquilo que ensaístas franceses – como o fundador da revista Cahiers du Cinéma, André Bazin, e seu pupilo, o diretor François Truffaut – definiram nos anos 50 como “cinema de autor”. Como um escritor, Almodóvar tem um universo, um repertório de personagens e situações aos quais volta sempre. Ele sabe disso e cultiva em seu marketing pessoal. De uns tempos para cá, passou a assinar seus filmes usando apenas o sobrenome – nos créditos, aparece “um filme de Almodóvar”. Federico Fellini assinava alguns de seus filmes no título, também com o sobrenome, casos de Fellini Oito e Meio. Mas Fellini era Fellini – e, na falta do que criticar, os críticos criticam em Almodóvar o excesso de pretensão.


Dizer que Almodóvar é um cineasta autoral pode ser lugar-comum. Bem mais interessante é tentar descobrir de quem ele é herdeiro na liga dos autores de filmes considerados “de arte”. Novamente, vale o teste do Twitter. Tente adivinhar quais os autores dos clássicos abaixo – e qual deles é o verdadeiro inspirador de Almodóvar:

(a) Jornalista em crise existencial perambula pelas ruas de Roma e perde as ilusões depois que seu mentor comete um crime.

(b) Cineasta em crise existencial separa-se da mulher, tenta se matar para recuperar a amada e fracassa na morte e no amor.

(c) Atriz em crise existencial fica muda. É internada numa clínica e acaba se envolvendo emocionalmente com a enfermeira.

(d) Adolescente em crise briga na escola, entra em conflito com a família, foge de casa e se torna flâneur em Paris.

(e) Fotógrafo fica obcecado por um crime que presenciou. Cura-se da obsessão assistindo a um jogo de tênis sem bolinha.

Bem, vamos lá: de (a) a (e), temos A Doce Vida, de Federico Fellini; Salve-se Quem Puder – A Vida, do francês Jean-Luc Godard; Persona, do sueco Ingmar Bergman (que, no Brasil, recebeu o título safadinho de Quando as Mulheres Pecam); Os Incompreendidos, a clássica estreia de François Truffaut; e Blow Up – Depois daquele Beijo, do italiano Michelangelo Antonioni. Qual deles é o mentor de Almodóvar? Quem respondeu “nenhuma das anteriores” acertou. O contraste entre os resumos tuitados é significativo. De um lado, como já se disse, sentenças no gênero “espreme-sai-sangue”. De outro, jornadas mentais de personagens atormentados. Filmes como os listados acima ajudaram a estabelecer o clichê do cinema autoral europeu como algo centrado no percurso interior do protagonista, que ao longo da trama vive situações que aparentemente não se conectam – mas que, no conjunto, ajudam o personagem a aprender algo sobre si próprio. Como todo clichê, é reducionista e dá conta apenas de parte do fenômeno. Mas, como todo clichê, tem um fundo de verdade. Estabelece o que se tornou a tradição do cinema europeu. E essa tradição nada tem a ver com Almodóvar.


Folhetinesco, Brega e Teatral

As tramas do diretor espanhol, cheias de reviravoltas, pouco espaço deixam para o chamado “mundo interior” dos personagens. Quando se fala de seus enredos, o adjetivo que costuma vir junto é “folhetinescos”. Quando se discorre sobre o estilo interpretativo de seus atores, a qualificação é “teatral”. E quando se analisam os cenários de seus filmes, mesmo os críticos amigáveis resvalam na palavra “brega” – o escritor e ensaísta David Denby, da revista norte-americana The New Yorker, chegou a dizer que as famosas cores que aparecem em seus filmes lembram as usadas em lojas de departamentos para anunciar liquidações. “Enredos folhetinescos”, “interpretações teatrais” e “cores de liquidação” são expressões que, dentro de resenhas, não costumam exprimir virtudes. São associadas, ao contrário, ao exagero. Talvez seja este o grande trunfo de Almodóvar: elevar o exagero ao estado da arte.

Nada mais folhetinesco do que aquele momento, comum em novelas de televisão, em que um personagem relembra algo que aconteceu no passado – como o milionário que revela ser pai do galã pobretão – e isso de repente dá sentido à trama. Nos filmes de Almodóvar, tal recurso aparece com frequência, mas de forma genuinamente cinematográfica, em flashbacks alucinantes. O diretor é um virtuose do roteiro cheio de idas e vindas, sem que nunca o espectador se perca. Em A Pele que Habito, seu novo filme, o personagem central, Robert, interpretado por Antonio Banderas (que volta a filmar com o diretor depois de 20 anos), é um cirurgião plástico que vive num palacete bizarro. Um dos salões é habitado por uma mulher belíssima, Vera, interpretada pela atriz Elena Anaya. Ela é uma espécie de experimento científico de Robert: o cirurgião testa em Vera uma pele artificial, mais bela, suave e resistente do que aquela que os seres humanos portam ao nascer – e que vai envelhecendo ao longo da vida. Por meio de TVs espalhadas pela casa, Robert monitora Vera. Existe uma clara tensão sexual entre os dois, enfatizada pela situação bizarra. O espectador fica com várias dúvidas. Por que Vera foi escolhida como cobaia? Por que Robert se mantém nesse exercício de voyeurismo? As respostas vêm, como é comum nos filmes de Almodóvar, numa cena de volta ao passado – que esclarece, ao mesmo tempo, a obsessão de Robert e o desconforto de Vera (não é o caso, claro, de contar aqui, sob pena de estragar o filme. Mas para quem for bom observador o segredo está revelado nas entrelinhas deste texto). Em Almodóvar, o folhetim nunca é simplista como, bem, o folhetim. O esclarecimento gera novas dúvidas, numa espiral de tensão que gruda nossos olhos na tela.


Esse recurso de ir e voltar no tempo é empregado com especial virtuosismo naquela que talvez seja a obra-prima do diretor: Fale com Ela, de 2002. Novamente, Almodóvar abre o filme com uma situação intrigante: um enfermeiro, Benigno (interpretado por Javier Camara), cuida de uma mulher belíssima em coma, Alicia (a atriz Leonor Watling). Ficam perguntas similares no ar: existe uma tensão sexual entre Benigno e Alicia? Seria Benigno gay? A resolução, novamente, é uma cena em flashback, que conta como os dois personagens se conheceram. A sequência, longa, mostra o caráter obsessivo do enfermeiro, dando a pista de que algo terrível pode acontecer. Mas, ao mesmo tempo, deixa reticências sobre sua orientação sexual. Puro Almodóvar.

O outro exagero do diretor seriam as interpretações, frequentemente consideradas “teatrais”. É sabido que Almodóvar costuma desprezar as ideias que seus atores trazem ao set, impondo as entonações e os trejeitos que acha convenientes – e nesse sentido, seu método não tem nada a ver com as artes cênicas. Como escreveu o ensaísta Richard Brody, também na The New Yorker, no teatro o ator traz o personagem para que o diretor o lapide, enquanto no cinema o diretor arranca o personagem pela goela do ator. Almodóvar, como Alfred Hitchcock, é assim. “Tenho total poder sobre os atores, pois sou o único espelho em que eles podem se mirar”, costuma dizer o diretor.

Guitarras e Palmas Flamencas

A sensação de que os filmes de Almodóvar são “teatrais” talvez venha menos da interpretação dos atores e mais da imaginação poderosa do diretor, que força os diálogos e as cenas ao limite. Num dos momentos de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, a personagem Pepa (Carmen Maura) é rejeitada pelo amante e coloca fogo, sem querer, na cama em que os dois dormiam. Parece uma leitura de almanaque de Sigmund Freud, e é. Mas é também algo ao mesmo tempo grandioso, engraçado e dramático. Almodóvar tem um talento especial para nos deixar em dúvida sobre qual a real intenção da cena. E, tontos com o exagero de subtextos de seus roteiros, rimos e nos emocionamos ao mesmo tempo.


Por último, cabe uma menção sobre as cores. Os tons vivos se tornaram a marca registrada de Almodóvar em seus primeiros filmes, ambientados na louca movida madrileña dos anos 80 – em que os espanhóis explodiram seus armários no tocante a sexo, drogas, rock’n’roll e histrionismo. Nas produções mais recentes, no entanto, Almodóvar viu que as cores estavam se tornando um maneirismo e passou a usá-las a serviço do enredo de seus filmes. Fale com Ela alterna os tons em função da intensidade das cenas. A história começa e acaba em espetáculos da coreógrafa alemã Pina Bausch. Na abertura, a sombria Café Müller. No final, a exuberante Mazurca Fogo. Entre essas duas paletas, o filme encontra seu equilíbrio, num desfile vertiginoso de meios tons emocionais.

Pode-se dividir a carreira de Almodóvar em três fases. A primeira vai até A Lei do Desejo (1987), e compreende os filmes da época da movida madrileña. Nesse período, o diretor era conhecido apenas na Espanha e em circuitos de cineclubes. A segunda começa em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e dá conta das produções que fizeram a fama internacional do diretor. A terceira se inicia em 1997, com Carne Trêmula, e mostra Almodóvar em sua maturidade. Três dos filmes lançados desde então são obras-primas, Tudo Sobre Minha Mãe, Fale com Ela e Volver. Os restantes, no entanto, não são menos do que brilhantes. A Pele que Habito se enquadra nessa categoria. Tem o roteiro com as idas e vindas que reproduzem, na linguagem do cinema, a estética do folhetim. Tem falas afiadas levadas ao limite e enredo mirabolante roçando o inverossímil. Tem um uso inteligente da cor, que de certa forma imita o olhar do cirurgião plástico Robert, sensível aos tons de pele. E tem, é claro, o exagero de criatividade e talento que faz com que a obra de Almodóvar não caiba nos clichês sobre o cinema de arte. Nem nos 140 toques do Twitter.

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