"Doméstica" investiga relação entre empregadas e patrões
Filme do pernambucano Gabriel Mascaro explora um terreno brumoso de relações trabalhistas, sociais e culturais entre famílias empregadoras e empregadas
Da Redação
Publicado em 2 de maio de 2013 às 12h44.
São Paulo - Em um de seus ensaios mais importantes, "As Ideias Fora do Lugar", o crítico literário Roberto Schwarz, comentando o Brasil escravocrata da época de Machado de Assis, diz: "O favor é a nossa mediação quase universal -e (é) mais simpático do que o nexo escravista". Nesse mesmo texto, Schwarz comenta o paradoxo da importação das ideias europeias de liberalismo para uma sociedade escravocrata que aspirava a se desenvolver de forma capitalista.
Mais de 100 anos depois, não raro o favor continua sendo moeda de troca em nosso país. O que se vê no documentário "Doméstica", do pernambucano Gabriel Mascaro, é uma prova mais do que concreta dessa prática.
Realizado antes da "PEC das Domésticas", o longa explora um terreno brumoso de relações trabalhistas, sociais e culturais entre famílias empregadoras e empregadas em diversos cantos do país. O filme entra em cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
O ponto de partida é simples: Mascaro deu uma câmera para sete adolescentes de diversas regiões e classes sociais para filmar o cotidiano de suas domésticas. O diretor não interferiu nessas filmagens, apenas pegou o material bruto e o montou.
É nesse processo de montagem, de organização das ideias criando uma narrativa, que o filme acontece. Uma vez que os próprios adolescentes estão inseridos no contexto em que filmam, é praticamente impossível haver um distanciamento e, consequentemente, um olhar minimamente crítico. Mas a relevância do filme vem exatamente daquilo que não é dito explicitamente e transpira nas entrelinhas.
Curiosamente, todas as famílias filmadas mantêm, ao menos nas aparências, uma relação bastante cordial -em alguns casos de amizade- com seus empregados.
Aí surge aquela famosa expressão que há muito parece ter-se tornado quase senso comum: "É como se fosse da família." Frequentemente, a afirmação mascara a verdadeira natureza de relações trabalhistas que implicam na troca -trabalho e pagamento- e que devem reger, como em qualquer outro emprego, essa interação.
"Doméstica" ilustra bem, em seu estudo de casos, como acumular funções se torna uma prática quase imperceptível. A primeira das empregadas mostradas é filmada por um adolescente simpático.
Com o tempo, além de seus afazeres dentro da casa, ela acumula a função de motorista -e, consequentemente, também é ela quem lava o carro. Ao fazer tarefas que não são eminentemente dela, seria necessariamente um caso de exploração? Há outro elemento: ela diz gostar do que faz, sempre quis aprender a dirigir, e com essa atividade realiza um sonho.
Outro caso interessante: uma diarista que tem sua própria diarista em casa para cuidar dos filhos e da casa enquanto trabalha, exatamente cuidando dos filhos e da casa de outra pessoa.
Até que ponto isso representa uma repetição de um padrão social? A patroa que também é empregada repete em sua casa com a sua doméstica os mesmos comportamentos de sua patroa? Não há um paradoxo nessa questão? Mais no fim do filme, conhecemos uma dona-de-casa que é amiga de infância de sua empregada. Como estabelecer uma relação trabalhista com um vínculo afetivo tão forte? Em um filme anterior, "Um Lugar ao Sol" (2009), Mascaro investigou como vivem e pensam os moradores das coberturas de luxo de várias cidades do Brasil. Nesse filme, o diretor é uma espécie de Eduardo Coutinho de sua geração e, com perguntas que parecem banais, é capaz de deixar o entrevistado confortável o bastante para confessar coisas que normalmente não diria.
Em "Doméstica", faz um pouco de falta a presença do diretor nas entrevistas, mas ao mesmo tempo é bastante reveladora essa interação entre empregadores e empregados sem a presença de um mediador.
Parece que finalmente, com a PEC, as relações começam - ou ao menos deveriam- realmente se pautar pelo que são: trabalhistas, com direitos e deveres para ambos os lados envolvidos.
"Doméstica" registra um período ainda coberto pela bruma do favor, pelas aparências -a relação de amizade, de afeto é, nem que seja num plano inconsciente, o véu que encobre o favor, a exploração do trabalho. Agora, um "Doméstica II", feito pós-PEC, também seria muito revelador.
https://youtube.com/watch?v=NVl1wptZdS4%3Ffeature%3Dplayer_embedded
São Paulo - Em um de seus ensaios mais importantes, "As Ideias Fora do Lugar", o crítico literário Roberto Schwarz, comentando o Brasil escravocrata da época de Machado de Assis, diz: "O favor é a nossa mediação quase universal -e (é) mais simpático do que o nexo escravista". Nesse mesmo texto, Schwarz comenta o paradoxo da importação das ideias europeias de liberalismo para uma sociedade escravocrata que aspirava a se desenvolver de forma capitalista.
Mais de 100 anos depois, não raro o favor continua sendo moeda de troca em nosso país. O que se vê no documentário "Doméstica", do pernambucano Gabriel Mascaro, é uma prova mais do que concreta dessa prática.
Realizado antes da "PEC das Domésticas", o longa explora um terreno brumoso de relações trabalhistas, sociais e culturais entre famílias empregadoras e empregadas em diversos cantos do país. O filme entra em cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
O ponto de partida é simples: Mascaro deu uma câmera para sete adolescentes de diversas regiões e classes sociais para filmar o cotidiano de suas domésticas. O diretor não interferiu nessas filmagens, apenas pegou o material bruto e o montou.
É nesse processo de montagem, de organização das ideias criando uma narrativa, que o filme acontece. Uma vez que os próprios adolescentes estão inseridos no contexto em que filmam, é praticamente impossível haver um distanciamento e, consequentemente, um olhar minimamente crítico. Mas a relevância do filme vem exatamente daquilo que não é dito explicitamente e transpira nas entrelinhas.
Curiosamente, todas as famílias filmadas mantêm, ao menos nas aparências, uma relação bastante cordial -em alguns casos de amizade- com seus empregados.
Aí surge aquela famosa expressão que há muito parece ter-se tornado quase senso comum: "É como se fosse da família." Frequentemente, a afirmação mascara a verdadeira natureza de relações trabalhistas que implicam na troca -trabalho e pagamento- e que devem reger, como em qualquer outro emprego, essa interação.
"Doméstica" ilustra bem, em seu estudo de casos, como acumular funções se torna uma prática quase imperceptível. A primeira das empregadas mostradas é filmada por um adolescente simpático.
Com o tempo, além de seus afazeres dentro da casa, ela acumula a função de motorista -e, consequentemente, também é ela quem lava o carro. Ao fazer tarefas que não são eminentemente dela, seria necessariamente um caso de exploração? Há outro elemento: ela diz gostar do que faz, sempre quis aprender a dirigir, e com essa atividade realiza um sonho.
Outro caso interessante: uma diarista que tem sua própria diarista em casa para cuidar dos filhos e da casa enquanto trabalha, exatamente cuidando dos filhos e da casa de outra pessoa.
Até que ponto isso representa uma repetição de um padrão social? A patroa que também é empregada repete em sua casa com a sua doméstica os mesmos comportamentos de sua patroa? Não há um paradoxo nessa questão? Mais no fim do filme, conhecemos uma dona-de-casa que é amiga de infância de sua empregada. Como estabelecer uma relação trabalhista com um vínculo afetivo tão forte? Em um filme anterior, "Um Lugar ao Sol" (2009), Mascaro investigou como vivem e pensam os moradores das coberturas de luxo de várias cidades do Brasil. Nesse filme, o diretor é uma espécie de Eduardo Coutinho de sua geração e, com perguntas que parecem banais, é capaz de deixar o entrevistado confortável o bastante para confessar coisas que normalmente não diria.
Em "Doméstica", faz um pouco de falta a presença do diretor nas entrevistas, mas ao mesmo tempo é bastante reveladora essa interação entre empregadores e empregados sem a presença de um mediador.
Parece que finalmente, com a PEC, as relações começam - ou ao menos deveriam- realmente se pautar pelo que são: trabalhistas, com direitos e deveres para ambos os lados envolvidos.
"Doméstica" registra um período ainda coberto pela bruma do favor, pelas aparências -a relação de amizade, de afeto é, nem que seja num plano inconsciente, o véu que encobre o favor, a exploração do trabalho. Agora, um "Doméstica II", feito pós-PEC, também seria muito revelador.
https://youtube.com/watch?v=NVl1wptZdS4%3Ffeature%3Dplayer_embedded