Casual

Com animes em alta na Netflix, criadores dos desenhos vivem na pobreza

Com tradição de longas jornadas de trabalho no Japão, ativista diz que o governo mostra pouco interesse em proteger os animadores por excesso de trabalho

O distrito de Akihabara, em Tóquio, um centro da cultura de anime. O boom da indústria apenas aumentou a lacuna entre lucros e salários. (Noriko Hayash/The New York Times)

O distrito de Akihabara, em Tóquio, um centro da cultura de anime. O boom da indústria apenas aumentou a lacuna entre lucros e salários. (Noriko Hayash/The New York Times)

JS

Julia Storch

Publicado em 17 de março de 2021 às 12h32.

Última atualização em 17 de março de 2021 às 19h07.

Os negócios nunca foram tão bem para o anime japonês. E é exatamente por isso que Tetsuya Akutsu está pensando em desistir. Quando Akutsu começou a trabalhar como animador há oito anos, o mercado global de animes — incluindo programas de TV, filmes e mercadorias — era pouco mais da metade do que seria em 2019, quando chegou a cerca de 24 bilhões de dólares. Na pandemia, o aumento no streaming de vídeo acelerou ainda mais a demanda no país e no exterior, porque as pessoas assistem a muitos programas infantis como Pokémon e a extravagâncias cyberpunk como A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell.

Seu dinheiro está seguro? Aprenda a proteger seu patrimônio

Mas pouco desse lucro inesperado chegou a Akutsu. Embora trabalhe quase sem parar, ele recebe apenas de 1.400 a 3.800 dólares por mês como animador de destaque e diretor ocasional de algumas das franquias de anime mais populares do Japão.

E ele é um dos sortudos: milhares de ilustradores de nível inferior fazem trabalhos detalhados por apenas 200 dólares por mês. Em vez de recompensá-los, o crescimento explosivo da indústria só ampliou a diferença entre o lucro que ajudam a gerar e seu salário insignificante, o que fez muitos se perguntarem se podem se dar ao luxo de continuar com sua paixão.

"Quero trabalhar na indústria de animes pelo resto da vida", disse Akutsu, de 29 anos, durante uma entrevista por telefone. Mas, agora que se prepara para iniciar uma família, sente intensa pressão financeira para sair: "Sei que é impossível me casar e criar um filho."

Os baixos salários e as condições precárias — a internação por excesso de trabalho pode ser considerada motivo de orgulho no Japão — não seguem as leis habituais do mundo dos negócios. Normalmente, a demanda crescente estimularia, pelo menos em teoria, a competição por talentos, aumentando o salário dos trabalhadores existentes e atraindo novos.

Isso está acontecendo até certo ponto nos níveis mais altos do negócio. Os ganhos anuais médios para os principais ilustradores e outros talentos de primeira linha aumentaram de cerca de 29.000 dólares anuais em 2015 para algo em torno de 36.000 dólares em 2019, de acordo com estatísticas coletadas pela Associação Japonesa de Criadores de Animação, organização trabalhista.

O animador Tetsuya Akutsu, em seu apartamento em Tóquio. (Noriko Hayashi/The New York Times)

Esses animadores são conhecidos em japonês como genga-man, o termo para aqueles que desenham os chamados quadros-chave. Como um deles, Akutsu, freelancer que trabalha para muitos estúdios de animação do Japão, ganha o suficiente para comer e alugar um pequeno apartamento em um subúrbio de Tóquio. Mas sua renda está longe da que ganham os animadores nos Estados Unidos, onde o salário médio pode ser de 65.000 a 75.000 dólares por ano.

E não faz muito tempo que Akutsu, que prefere não comentar as práticas salariais específicas dos estúdios para os quais trabalhou, deixou de ser um douga-man, o animador de nível básico que faz o trabalho quadro a quadro, transformando as ilustrações de um genga-man em ilusões de movimento contínuo. A associação de animação mostrou que estes ganharam uma média de 12.000 dólares em 2019, embora tenha ressaltado que esse número foi baseado em uma amostra limitada, que não incluía muitos dos freelancers que recebem ainda menos.

O problema decorre, em parte, da estrutura da indústria, que canaliza uma fração maior dos lucros para os estúdios, que podem pagar pouco porque há um grupo quase ilimitado de jovens apaixonados por anime sonhando em fazer nome na indústria, explicou Simona Stanzani, que trabalhou no negócio como tradutora por quase três décadas. "Há muitos artistas por aí que são incríveis", afirmou, acrescentando que os estúdios têm muita gente na fila, não havendo razão para aumentar os salários.

Muito dinheiro inundou o mercado de animes nos últimos anos. As produtoras chinesas pagaram altas somas aos estúdios japoneses para a produção de filmes para seu mercado interno. E, em dezembro, a Sony — cuja divisão de entretenimento ficou muito para trás na corrida para disponibilizar conteúdo online — pagou quase 1,2 bilhão de dólares para comprar o site de vídeos de anime Crunchyroll, da AT&T.

O negócio é tão bom que quase todos os estúdios de animação no Japão recebem encomendas com anos de antecedência. A Netflix divulgou que o número de domicílios que assistiram a animes em seu serviço de streaming em 2020 aumentou 50% em relação ao ano anterior.

Mas muitos estúdios foram excluídos da bonança por um sistema de produção ultrapassado, que direciona quase todos os lucros da indústria para os chamados comitês de produção.

Esses comitês são coalizões de fabricantes de brinquedos, editoras de quadrinhos e outras empresas criadas para financiar cada projeto. Eles normalmente pagam aos estúdios de animação uma taxa fixa e reservam os royalties para si mesmos.

"Os estúdios são tipicamente dirigidos por criadores que querem fazer algo realmente bom, que querem dar passos maiores que as pernas e são muito ambiciosos. Quando terminam um projeto, é muito provável que tenham perdido dinheiro. Todo mundo sabe que é um problema, mas infelizmente é tão sistêmico que ninguém tem ideia do que fazer a respeito", disse Justin Sevakis, fundador da Anime News Network e executivo-chefe da MediaOCD, empresa que produz animes para lançamento nos Estados Unidos.

Uma loja de jogos em Tóquio com prêmios inspirados em animes. (Noriko Hayashi/The New York Times) (Noriko Hayash/The New York Times)

O mesmo se aplica à natureza dura do trabalho. Mesmo em um país com uma devoção às vezes fatal ao escritório, a indústria de anime é notória por suas exigências brutais, e os animadores falam com um perverso senso de orgulho sobre atos de devoção como dormir no estúdio por semanas a fio para completar um projeto.

No primeiro episódio de Shirobako, anime sobre os esforços de jovens para entrar na indústria, uma ilustradora colapsa com febre à medida que se aproxima o prazo de finalização. O clímax da história não está ligado à sua saúde, mas à probabilidade de o show que está produzindo ser concluído a tempo de ir ao ar.

Jun Sugawara, animador de computador e ativista que dirige uma organização sem fins lucrativos que fornece moradia acessível aos jovens ilustradores, começou sua campanha em 2011, depois de saber das condições precárias em que viviam os criadores de seu anime favorito.

Sugawara acredita que, se algo não for feito em breve, a indústria pode um dia entrar em colapso, já que jovens talentosos desistem do ramo para buscar um emprego que possa lhes proporcionar uma vida melhor.

Esse foi o caso de Ryosuke Hirakimoto, que decidiu deixar a indústria depois que seu primeiro filho nasceu. Trabalhar com anime sempre foi seu sonho, mas, mesmo depois de anos no negócio, nunca conseguiu ganhar mais de US$ 38 por dia. "Comecei a me perguntar se esse estilo de vida era suficiente", contou ele durante uma chamada de vídeo.

Agora, Hirakimoto trabalha para um asilo, parte de uma indústria em que a alta demanda por trabalhadores em uma sociedade com grande número de idosos garante um salário melhor. "Muitas pessoas só viam valor em poder trabalhar com animes que amavam. Não importava que ganhassem muito pouco; elas estavam dispostas a fazer o trabalho." Em retrospecto, ele disse: "Não me arrependo nem um pouco da minha decisão."

Acompanhe tudo sobre:Empresas japonesasJapãoStreamingTelevisão

Mais de Casual

12 restaurantes que inauguraram em 2024 em São Paulo

João Fonseca bate Van Assche e vai à final do Next Gen Finals

Guia de verão no Rio: dicas de passeios, praias, bares e novidades da estação

O carro mais tecnológico do Brasil entre R$ 150 mil e R$ 300 mil, segundo ranking EXAME Casual