Atrás apenas de Barack Obama, YouTuber conquista fama literária na França
Mahfouf teve um ano de 2020 bastante agitado: ela acumulou milhões de seguidores, tornou-se uma autora de best-sellers e atraiu críticas literárias parisienses
Julia Storch
Publicado em 17 de fevereiro de 2021 às 10h03.
Última atualização em 17 de fevereiro de 2021 às 12h03.
Léna Situations ganhou fama na França ao compartilhar conselhos de moda e dicas para viver uma vida positiva com milhões de seus seguidores nas redes sociais. A jovem de 23 anos de origem argelina cujo nome verdadeiro é Léna Mahfouf conquistou 1,8 milhão de seguidores no YouTube, outros 2,9 milhões no Instagram, e ganhou um People's Choice Award, cobiçado prêmio das estrelas de vídeos virais. No ano passado, seu primeiro livro liderou as paradas de não ficção na França por seis semanas seguidas – perdendo a posição apenas com o aparecimento do primeiro volume das memórias de Barack Obama.
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E então veio a inevitável reação de uma figura proeminente do mundo literário da França. "147 páginas de vazio, 19,50 euros perdidos", reclamou o escritor Frédéric Beigbeder do livro "Toujours Plus" (Sempre mais, em tradução livre) no "Le Figaro", um dos principais jornais conservadores. "Entre o ser e o nada, Léna Situations se inclina bastante para a segunda opção", escreveu ele na coluna de novembro, referindo-se ao tratado filosófico de Jean-Paul Sartre. E acrescentou: "A jovem escritora foi uma das muitas vítimas de Mark Zuckerberg."
Os comentários de Beigbeder, romancista famoso que é jurado de vários prêmios literários de prestígio há mais de duas décadas, causaram indignação nas redes sociais francesas por parte dos seguidores de Mahfouf, mas também de ativistas que viram um toque de racismo e sexismo em sua crítica. (Mahfouf evitou a coluna de Beigbeder com um tuíte amplamente compartilhado: "Devo dinheiro a ele ou o quê?")
Os guardiões literários da França já estão sob fogo cruzado por serem muito insulares e restritivos. Críticos dos comentários de Beigbeder disseram que ele mostrou como o setor é relutante em reconhecer vozes como a de Mahfouf. "Como guardião, Beigbeder visa proteger a entrada no mundo literário usando uma estratégia clássica de desqualificação: estigmatizar as sensações das mídias sociais", afirmou Delphine Naudier, socióloga do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica, especializada em desigualdades de gênero na literatura.
Alguns sugeriram que Beigbeder poderia estar se sentindo ameaçado. "O texto transmite inveja e amargura, tingidas pelo sexismo, e despreza produções femininas", tuitou Rokhaya Diallo, escritora e ativista de causas feministas e raciais, apontando para sua "necessidade de ser grosseiro com uma cultura legítima para ficar do lado do que ele acha valioso".
Contatado por telefone, Beigbeder suavizou suas críticas a Mahfouf: "Desejo a essa jovem um sucesso duradouro, mas sou pessimista. Esse tipo de fenômeno é temporário." Ele falou da "rápida criação de estrelas pela mídia".
O sucesso da estreia literária de Mahfouf acirra o debate. Seu livro, guia de autoajuda para jovens adultos, vendeu mais de 280 mil cópias até agora – número extraordinariamente alto para o primeiro lançamento de um escritor na França. Em média, os vencedores do Goncourt, o prêmio literário francês mais prestigiado, vendem cerca de 350 mil cópias, de acordo com o instituto de pesquisa de mercado GfK.
Até agora, Mahfouf parece ter lidado bem com toda a atenção que está recebendo. "Amo me desafiar, chegar a ambientes onde sou persona non grata e provar que consigo ocupar um espaço", disse ela em uma entrevista em seu apartamento em Paris, usando um rabo de cavalo alto e delineador grosso. Em sua mesa havia uma placa dizendo: "Não sou mandona, sou a chefe."
Mahfouf é uma das mais proeminentes influenciadoras de moda da França, com Sanaa El Mahalli e Marie Lopez – que também ganharam milhões de seguidores on-line ao compartilhar dicas sobre maquiagem e roupas, e anedotas pessoais sobre relacionamentos ou saúde mental.
Em fevereiro passado, ela cobriu um desfile da Balmain no YouTube a convite de Loïc Prigent, jornalista de moda e admirador. Na época, ela era relativamente desconhecida, e estava usando roupas da marca de fast fashion Zara. Mas sua excitação e seu senso de humor eram evidentes quando cumprimentava – e geralmente era ignorada por – outros convidados.
Quando ficou sabendo que, quanto mais tarde as pessoas chegam ao desfile, mais importantes são, ela brincou: "Chegamos antes mesmo de instalarem as luzes – isso significa que realmente não somos importantes."
"Você pode fazer graça com algo que ama. A moda é um ambiente maravilhoso, mas às vezes pode ser muito ridículo", declarou ela na entrevista.
Desde o desfile da Balmain, Mahfouf se tornou uma nova força no cenário da moda francesa. Foi escolhida pela Dior para promover seus itens on-line, e suas compras se tornaram mais sofisticadas – sapatos Yves Saint-Laurent e bolsas Jacquemus estavam espalhados por sua sala de estar.
Aos olhos de seus seguidores, porém, Mahfouf ainda é acessível e pé no chão. Ela ri com facilidade e fala com grandes gestos entusiasmados. Em uma manhã recente, maravilhou-se com os grandes flocos de neve caindo do lado de fora de sua janela.
Com pais argelinos que fugiram da guerra civil do país, ela cresceu em uma família de classe média em Paris. Começou a compartilhar conselhos de moda popular e tutoriais de maquiagem em seu canal no YouTube há cinco anos, enquanto fazia malabarismos com vários trabalhos estranhos para pagar seus estudos em uma escola de marketing de moda.
Seus vídeos são muitas vezes discretos e apresentam familiares e amigos. Em um deles, seu pai, que trabalha com espetáculos de marionetes em escolas e que atualmente está desempregado por causa da pandemia, faz piadas sobre suas roupas fora de moda; em outro, seu amigo Bilal Hassani – músico gay de origem norte-africana que representou a França no concurso Eurovision 2019 – aparece de peruca e maquiagem.
Outros vídeos assumem uma abordagem mais ativista. Ela expressou apoio ao movimento Black Lives Matter, falou sobre seu feminismo e como o cabelo naturalmente encaracolado deve ser aceito, mesmo que artistas como Beyoncé e Rihanna tenham alisado o delas. "Um aspecto positivo das mídias sociais é que elas dão espaço às minorias. Espero que essa dinâmica chegue até a vida real", disse Mahfouf.
Para alguns de seus seguidores, parte do apelo de seu canal é que sua formação étnica não é uma questão, mesmo em um país onde os franceses de origem norte-africana ainda sofrem estigmatização e discriminação.
"Ela mostra que somos todos diferentes e, portanto, todos iguais. Não sei por que devemos ficar falando disso", comentou Violaine Pelillo, seguidora de 14 anos de Mahfouf.
Com algumas exceções, como a jovem romancista marroquina Leïla Slimani, vozes como a de Mahfouf raramente são ouvidas no mundo editorial muito fechado da França, que é dominado por homens brancos.
Em 2019, ela levou a ideia de um livro de autoajuda acessível para uma das maiores editoras francesas, que esperava vender 20 mil exemplares. "Toujours Plus" já vendeu 14 vezes mais que isso, e há planos para traduzi-lo em vários idiomas, incluindo o inglês.
Ao contrário de alguns youtubers que contratam operadores de câmera e editores, Mahfouf passa dias escrevendo, filmando e editando seus vídeos ela mesma. Uma assistente e seus pais a ajudam a lidar com uma agenda sobrecarregada.
"Todo mundo sempre me pergunta com um tom ansioso onde eu me vejo daqui a dez anos. As redes sociais são minha prioridade número um, nas quais sou mais livre e feliz. E a internet não vai desaparecer tão cedo", disse ela depois de uma semana durante a qual havia filmado três vídeos e recusado um pequeno papel em um filme e uma posição como apresentadora de TV.