Pedro Almodóvar: do underground de Madri para a Netflix
"Mães Paralelas", o novo filme do cineasta espanhol, chega ao serviço de streaming, junto com outras 11 produções do início de sua carreira
Ivan Padilla
Publicado em 18 de fevereiro de 2022 às 06h30.
Última atualização em 18 de fevereiro de 2022 às 14h07.
O mais recente filme de Pedro Almodóvar, “Mães Paralelas”, chega hoje, sexta-feira 18, na Netflix , pouco depois de estrear no cinema. E Penélope Cruz e Milena Smit, as protagonistas deste 23º longa do diretor espanhol, não estão sozinhas.
Junto a elas estão diversas outras atrizes, de diferentes épocas, em 11 filmes de autoria de Almodóvar que estão desde a semana passada também no cardápio da Netflix. São eles “Maus Hábitos” (1983), “O Que Eu Fiz Para Merecer Isto?” (1984), “A Lei do Desejo” (1987), “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervo” (1988), “De Salto Alto” (1991), “Kika” (1993), “A Flor do Meu Segredo” (1995), “Carne Trêmula” (1997), “Fale com Ela” (2002), “Má Educação” (2004) e “Volver” (2006).
Carmen Maura, Victoria Abril, Rossy de Palma, Marisa Paredes... cada uma à sua maneira, as musas de Almodóvar interpretaram mulheres por vezes fora de padrão, independentes, seguras, fortes. Até toureira teve. Sim, porque Almodóvar fala sobretudo de mulheres, tanto na sua primeira fase libertária como nos filmes mais consistentes de anos recentes.
Movida madrilenha
O cineasta começou sua carreira no contexto da chamada movida madrilenha, um movimento cultural libertário que surgiu timidamente com a morte do ditador Francisco Franco em 1975, ganhou força com a transição para a democracia e se manteve até o final da década de 1980.
Não se pode entender Almodóvar sem falar da repressão franquista. Depois de uma sangrenta guerra civil entre 1936 e 1939, em que morreram estimadas 150 mil pessoas, Franco governou a Espanha com brutalidade até seu falecimento, com apoio da Igreja católica.
Um exemplo da violência desse período: até um ano antes da morte do ditador, o governo militar usava um método bárbaro de execução chamado garrote vil, uma espécie de torniquete no pescoço que estrangulava a vítima.
Como contraponto a esses anos sombrios, os primeiros filmes de Almodóvar, a partir de 1980, abusavam de cores, música, escracho. Entre os personagens estavam mulheres adictas a remédios, adolescentes que usavam heroína, freiras ninfomaníacas, muita diversidade sexual. Tudo com muita sátira, muito humor negro. Isso em um país profundamente católico e com uma população desacostumada a ter voz.
Muitas das famílias retratadas nessas primeiras produções estão desestruturadas, em boa medida devido à presença de homens machistas, violentos, infiéis, desonestos. Ou frágeis, inseguros, dependentes.
Já os filmes dos anos 1990 mostram uma transição, oscilando entre o desbunde dos primeiros anos e roteiros mais bem trabalhados. A força dramática de Almodóvar se estabelece mesmo nos anos 2000, nos filmes em que a força feminina se impõe pelos gestos e não mais pelos gritos.
Mães Paralelas
O novo longa do diretor espanhol já está sendo considerado uma de suas produções mais consistentes. Trata de duas mães que ficam amigas na maternidade e se reencontram meses depois, cada um com um drama pessoal. Como em tantos filmes, a guerra civil espanhola serve de pano de fundo para a trama.
Apesar dos primeiros elogios, não se espera que “Mães Paralelas” seja um filme premiado. Pelo menos não na Espanha, onde Almodóvar está longe de ser unanimidade – o diretor costuma receber mais aplausos no festival de Cannes do que nas estreias dos cinemas na Gran Vía, em Madri.
Parte da crítica considera os filmes de Almodóvar caricatos demais em relação à cultura espanhola. Mulheres escandalosas, apresentações de flamenco, touradas... Almódovar não extrapola as fronteiras nacionais, ainda que papeis de destaque já tenham sido ocupados por estrangeiras, como a argentina Cecilia Roth e a italiana Francesca Neri.
A academia espanhola também não parece demonstrar tanta devoção ao cineasta. “Mães Paralelas” não levou nenhuma prêmio da última edição do Goya, o Oscar do cinema da Espanha, realizado na semana passada. Assim como aconteceu no passado com “Áta-Me”. “Não é o lugar onde mais tenhamos recebido apoio, mas sei de gente que gosta de nós”, declarou recentemente Agustín Almodóvar, produtor dos filmes do irmão.
Justiça seja feita, vale lembrar que Almodóvar ainda é o diretor mais premiado no Goya, com três troféus, ao lado de Fernando León, e seus filmes acumulam dezenas de outras conquistas em categorias variadas. Pela projeção do nome Almodóvar no exterior, talvez Pedro e Agustín vejam aí uma assimetria nas colocações do pódio. No Oscar deste ano, Penélope Cruz concorre ao prêmio de melhor atriz.
Caetano Veloso e Tom Jobim
Mais do que espanhol, Almodóvar é identificado como madrilenho. Seus filmes se passam quase todos na capital espanhola, ou no máximo nos “pueblos” ao redor, como são chamadas as cidades pequenas do campo.
“Madri não seria Madri sem Almodóvar”, escreveu o crítico Antonio Ruiz Valdivia no jornal El País. “Porque essa cidade está cheia de amantes passageiros, freiras viciadas em drogas, diretores atormentados, pessoas notívagas de ressaca que tomam café da manhã na feira do Rastro.”
Se o globalismo de Almóvodar se resume a receber convidados de fora, uma curiosidade para o público brasileiro é a participação de Caetano Veloso em “Fale com Ela”, com direito até a uma citação de Tom Jobim. Amigos, o cineasta hospedou-se algumas vezes na casa do músico em Salvador.
Apesar das fases, a trajetória de Almodóvar nem sempre apresenta uma evolução linear, mas por vezes saltos irregulares, com a volta à rebeldia da juventude, com mais deslizes com que méritos, como em “Kika".
Pode-se fazer um paralelo entre o destemor do diretor madrilenho em se arriscar nas produções, em retomar o libertarismo e voltar a mexer com as instituições, e a cena final de “Carne Trêmula”. Um casal está em um táxi e o homem comenta, sobre o momento de agora e os tempos da ditadura franquista: “Faz muito tempo que a Espanha deixou de ter medo.” Almodóvar também.