Elenco da peça "Dogville", dirigida por Zé Henrique de Paula: retrato de "cidadãos de bem" que se transformam em exploradores (Sevenx Produções Artísticas/Divulgação)
Marília Almeida
Publicado em 22 de fevereiro de 2019 às 05h00.
Última atualização em 22 de fevereiro de 2019 às 09h45.
São Paulo - O que fazer para atrair mais público para o teatro? Uma solução que vem sendo cada vez mais utilizada é apelar para a sétima arte. A fórmula tem dado certo e produzido resultados interessantes.
Um exemplo é a adaptação brasileira do filme do diretor dinamarquês Lars Von Trier, "Dogville", lançado em 2003. A peça estreou no Rio de Janeiro em novembro e realiza sua segunda temporada até o dia 31 de março em São Paulo, no Teatro Porto Seguro.
Com sessões cheias, a peça é dirigida por Zé Henrique de Paula (vencedor dos prêmios Shell e APCA) e protagonizada por Mel Lisboa, ao lado de atores como Eric Lenate, Fábio Assunção e Rodrigo Caetano. A montagem foi indicada ao Prêmio Shell na categoria "Melhor Figurino" e três categorias no Prêmio Cesgranrio de Teatro (Melhor Espetáculo, Melhor Atriz e Melhor Figurino).
Ambientada nos Estados Unidos dos anos 30, um período marcada pela depressão econômica, miséria e ascensão da máfia, o roteiro mostra como supostos "cidadãos de bem", moradores de uma pequena comunidade, podem se transformar em pessoas odiosas quando se vêem, subitamente, munidos do poder de decidir o destino de Grace (Mel Lisboa), que chega à comunidade com um passado de interrogações, fugindo de alguém.
Ainda que a forasteira colabore com pequenos serviços para todos os moradores, sendo o "olho" do cego, a educadora do jovem com dificuldade de aprendizagem, e a cuidadora dos sete filhos de uma das moradoras e conselheira do médico hipocondríaco, isso é cada vez mais insuficiente diante do potencial "perigo" de esconder a fugitiva na vila.
A peça chama a atenção porque transporta a história ao seu "habitat" natural: os palcos. Von Trier ousou ao levar um pouco do teatro para o cinema, inspirando-se em Bertolt Brecht, tanto por conta de temas que eram caros ao dramaturgo alemão como por conta do conceito de "teatro épico" criado por ele e que é definido principalmente por um narrador distanciado da trama. No filme, o diretor utiliza uma locação semelhante a usada em um teatro: uma sala escura com demarcações no chão, sinalizando as casas da comunidade retratada. Talvez por isso não exija muitas adaptações de roteiro e fique tão bem fora da telona.
Não por acaso, não é a primeira adaptação do filme para os palcos: a primeira peça foi encenada na Dinamarca teve o aval do diretor. Uma diferença clara entre filme e peça é o encurtamento do roteiro. Enquanto o filme tem quase três horas de duração, a montagem brasileira é encenada durante uma hora e meia, suficiente para entender o cerne do roteiro.
Ao invés do jogo de cena visto na telona, o diretor optou por algo mais simples: cadeiras para separar ambientes e casas dos personagens, auxiliadas por quadrados no fundo do palco, com uma passarela em cima para dar mais dinamismo às cenas. Um figurino sóbrio e fumaça que simula neblina ajuda a compor o clima sombrio da história.
Mas o que mais chama a atenção no cenário são duas telas dispostas no palco em algumas partes da trama, que representam um diálogo com o cinema.
Em alguns momentos, o que se passa nas telas "conversa" com os atores no palco. Mas, geralmente, o recurso é utilizado em situações tensas, onde há um claro embate entre os personagens. Pelas telas, é possível olhar com mais detalhes as expressões dos atores. Há ainda em alguns momentos uma câmera aérea que dá uma composição diferente das cenas ao público.
No final, o tom da peça sobe, Grace se transforma e a meia luz dá espaço à claridade. E fica a pergunta feita pelo narrador, adequada aos nossos tempos e ao tom sempre provocativo de Von Trier: "Em algum momento já tivemos sensibilidade moral?".
Serviço
"Dogville" - Teatro Porto Seguro
Sextas e sábados, às 21h. Domingo, às 19h
Até o dia 31 de março