Primeira mulher trans a jogar na Superliga de Volêi, Tifanny Abreu é a representante brasileira da campanha "Impossible is Nothing", da Adidas (Reprodução/Divulgação)
GabrielJusto
Publicado em 20 de abril de 2021 às 16h00.
Última atualização em 24 de abril de 2021 às 09h47.
Há quatro anos, iniciava-se um novo capítulo na história do vôlei brasileiro. Em um jogo do Vôlei Bauru contra o São Caetano em 2017, pela primeira vez no Brasil uma atleta trans entrava em quadra para jogar por um time feminino. Pelo episódio, Tifanny Abreu foi criticada inclusive entre suas pares, que a acusavam de ser mais forte que as atletas cis (cuja identidade de gênero é a mesma do sexo biológico), o que lhe daria uma certa vantagem na competição. Mesmo com as críticas, Tifanny não desistiu de continuar jogando.
"Eu fui a primeira, e a primeira vai ser sempre massacrada, mal falada e mal vista. Mas as coisas vão mudando, porque as pessoas vão se acostumando. Quando eu relembro tudo o que eu passei eu choro muito, mas hoje eu sou muito acolhida não só pela minha equipe, mas por dirigentes de outras equipes.", conta Tifanny em entrevista à EXAME. "Hoje vemos muito menos ataques do que antigamente, e ver essa evolução me dá muito orgulho."
Antes de atuar em campeonatos femininos, Tifanny jogou em times masculinos de vôlei na Europa e também na Superliga masculina de vôlei. Mas foi aos 28, após passar por uma depressão, que ela decidiu iniciar seu processo de transição de gênero - ainda que isso significasse o fim da sua carreira no esporte. Alguns anos depois, em 2015, o Comitê Olímpico Internacional (COI) autorizou a participação de transexuais no esporte, desde que seguissem alguns critérios relacionados à concentração de hormônios, por exemplo.
"Quando me chamaram para participar do vôlei feminino eu dei risada, porque achei que eu jamais poderia, por ser "mais forte". Como todo leigo, eu não imaginei o que os hormônios fariam como o meu corpo, e não sabia das regras do esporte. Fui descobrindo isso", conta Abreu. "As pessoas pensam que eu vou ter vantagem, mas sou igual qualquer outra jogadora. Se eu tiver talento, vou ser boa."
https://www.youtube.com/watch?v=4Hn6wHwea_c
Para Tifanny, sua participação no esporte, hoje consolidada, vai muito além de uma vitória pessoal. Conquistar seu lugar na elite do vôlei, diz ela, serve para mostrar a outras pessoas trans que elas também têm direito a ocupar espaços que tradicionalmente lhes foram negados, como o próprio esporte, o mercado de trabalho e também a publicidade.
Nesta segunda-feira (19), a Adidas lançou a campanha global "Impossible is Nothing", que destaca a trajetória de artistas e atletas que, com otimismo, viram possibilidades onde só se via o impossível. Além de Beyoncé como grande estrela, a série de vídeos (disponíveis no canal da Adidas no YouTube) conta também as histórias de atletas como o francês Paul Pogba, Mohamed Salah, Siya Kolisi e, como representante brasileira, Tifanny Abreu.
"Eu quase não durmo de pensar que, além de estar junto com a Beyoncé, eu sou a única brasileira nessa campanha, que se mostra muito corajosa por dar visibilidade a uma mulher trans", comemora Tifanny. "Eu espero que outras empresas tão grandes quanto a Adidas vejam essa campanha, se sintam tocadas e convidem outras trans para viver esse direito de representar uma marca, de trabalhar com pessoas cis em prol de algo maior."
EXAME: Há quatro anos você jogava pela primeira vez na Superliga, um trunfo às avessas que fez você passar por muitos episódios de preconceito. O que mudou de lá pra cá?
Tifanny Abreu: Eu fui a primeira, e a primeira vai ser sempre massacrada, mal falada e mal vista. Mas as coisas vão mudando, porque as pessoas vão se acostumando com a verdade que, no caso, é que as mulheres trans não tem nenhuma vantagem no esporte em relação às mulheres cis. Todas as mulheres trans que seguem as regras do esporte têm que poder estar ali. Quando eu relembro tudo o que eu passei eu choro muito, mas hoje eu sou muito acolhida não só pela minha equipe, mas por dirigentes de outras equipes. Hoje se vê muito menos ataques do que antigamente, e ver essa evolução me dá muito orgulho. Em um futuro próximo, outras meninas virão e não serão chamadas de atletas trans, mas apenas de atletas.
O Brasil segue ano após ano sendo o recordista de violência contra transexuais no mundo. Nesse contexto, o quão importante é ter uma pessoa trans numa grande liga esportiva?
Além de ser o país que mais mata trans e travestis no mundo, o Brasil é o país que mais tem feminicídio, o que mostra que as mulheres cis também sofrem muito. Temos que trabalhar juntas não somente na proteção das mulheres trans, mas de todas as mulheres, porque o machismo está enraizado no país e nós não podemos aceitar. Precisamos mostrar que temos o direito de viver, trabalhar, de sermos amadas, direito de representar empresas e clubes como qualquer outra pessoa, porque nós somos seres humanos, em primeiro lugar.
Ao decidir pela transição de gênero, você imaginou que poderia seguir jogando vôlei?
Quando me chamaram para participar do vôlei feminino, eu dei risada, porque achei que eu jamais poderia participar, por ser "mais forte". Mas, como todo leigo, eu não imaginei o que os hormônios fariam como o meu corpo, e não sabia das regras do esporte. Fui descobrindo isso, entendendo o meu corpo como feminino, o efeito dos hormônios nele - principalmente que eles me deixariam igual as outras atletas. Muitas pessoas acham que o passado resiste na gente, mas isso não existe. As pessoas pensam que eu vou ter vantagem, sou igual qualquer outra jogadora. Se eu tiver talento, vou ser boa.
Temos visto a chegada de algumas pessoas trans à política. Você teve a oportunidade de votar em uma pessoa trans? Como enxerga esse movimento?
Eu fiquei muito feliz que, até na política, nós trans estamos entrando. Ano passado foi o ano com mais pessoas trans eleitas, mulheres e homens. Temos o exemplo da Érika Malunguinho, Érika Hilton... É um orgulho saber que mulheres trans estão representando em todos os âmbitos, na politica, no esporte, na medicina. Nos EUA, agora temos uma trans no governo Biden. Precisamos continuar nessa luta, porque somente quando estivermos em todos os ambientes, daremos chance para as meninas que estão vindo. Eu tive a oportunidade de votar numa pessoa trans e vou continuar votando, porque sei que são pessoas boas e que vão lutar pelo coletivo. Assim como as empresas que estão incluindo, e é muito importante para abrir oportunidades para o futuro.
Você é a única brasileira e a única trans nessa nova campanha global da Adidas, ao lado da Beyoncé, inclusive. O que isso significa para você?
Eu quase não durmo de pensar que, além de estar junto com a Beyoncé, eu sou a única brasileira nessa campanha, que se mostra muito corajosa por colocar uma mulher trans. Mostra muito amor para o próximo. Eu acredito que essa campanha tem um propósito maior, de abrir portas, de mostrar que nós podemos sim chegar muito mais longe. Eu espero que outras empresas tão grandes quanto a Adidas vejam essa campanha, se sintam tocadas e convidem outras trans para viver esse direito de representar uma marca, de trabalhar com pessoas cis em prol de algo maior.