SALVATOR MUNDI: a distorção na mão de Jesus não é perfeita de acordo com as leis da ótica – talvez tenha faltado um pouco mais de procrastinação (Peter Nicholls/Reuters)
Da Redação
Publicado em 8 de dezembro de 2017 às 19h06.
Última atualização em 8 de dezembro de 2017 às 19h06.
Um dos maiores segredos da inovação e da criatividade é: não deixe para amanhã o que você pode fazer depois de amanhã. Esse tipo de atitude é o que se chama, quase como um xingamento, de procrastinação. E é, obviamente, uma bela maneira de não realizar nada.
Pesquisas recentes, porém, indicam que o ato de procrastinar está especialmente ligado à qualidade do pensamento e das decisões. Ocorre que, assim como com o colesterol, cientistas sociais agora dizem que há dois tipos de procrastinação: a boa e a ruim. A boa é a procrastinação ativa – você adia a sua tarefa, mas realiza outras mais importantes, ou mais urgentes, em seu lugar. A ruim é a passiva, o estado de letargia.
Como mostra o professor de finanças e direito Frank Portnoy em seu livro Como Fazer a Escolha Certa na Hora Certa, agir mais tarde pode ser benéfico por vários motivos, desde a mudança de conjuntura (o que era urgente de repente se torna irrelevante) até o fato de que nossa mente, quando nos afastamos de um problema, continua conjecturando. Por isso, de acordo com pesquisadores, distrair-se pode gerar insights. Perder o foco é um caminho para chegar a uma solução original, que venha de outro campo. (O título em inglês do livro de Portnoy é mais sugestivo: Wait – The Art and Science of Delay, ou “Espere – a arte e a ciência da demora”).
Não há escassez de exemplos de procrastinadores geniais, nas mais diversas áreas de atividade. O bilionário americano Warren Buffett diz que a chave para seu sucesso como investidor tem sido retardar as decisões.
O escritor francês Victor Hugo, autor de romances como Os Miseráveis e O Corcunda de Notre Dame, era tão afeito a distrações que para terminar suas obras tinha um método, digamos, peculiar. Entregava a um empregado todas as suas roupas, com ordens para só as devolver após uma determinada hora. Nu, sem poder sair do estúdio, tinha poucas opções melhores que escrever…
Um exemplo de como o tempo de procrastinação pode ser considerado um tempo de gestação de ideias é a história da obra mais famosa do arquiteto americano Frank Lloyd Wright. Ele recebeu a missão de desenhar a casa Fallingwater, na Pensilvânia, em 1934. Quase um ano depois, ansioso ante as constantes afirmações de que ele estava trabalhando no projeto mas nunca mostrando os progressos, o empresário que o contratou lhe telefonou dizendo que passaria em sua casa antes do almoço para ver o trabalho. Em cerca de duas horas, entre o café e o almoço, Lloyd Wright desenhou as linhas de um dos marcos da arquitetura mundial.
Não é um caso isolado, segundo Adam Grant, professor de psicologia da Escola de Negócios Wharton, autor do livro Originais – Como os Inconformistas Mudam o Mundo. “Os melhores discursos da história foram reescritos no último minuto, de forma que havia muita flexibilidade para improvisar ainda no palco, em vez de memorizar o recado com meses de antecedência”, disse em entrevista à BBC.
Um caso exemplar é o famoso discurso “Eu tenho um sonho”, do pastor americano Martin Luther King, um libelo pela igualdade racial. King estava empacado no palco, titubeando, quando alguém lhe gritou das primeiras filas: “fale do sonho”. Era algo que ele tinha dito a umas poucas pessoas, e que não teria entrado para a história se King não tivesse deixado seu discurso inacabado até o último momento.
Mozart também era um caso típico de procrastinador. Ele costumava compor as músicas em sua cabeça, e muitas vezes só as registrava no papel depois de completas. Na estreia da ópera Don Giovanni, em Praga, em 1787, a tinta ainda estava molhada nas partituras dos músicos – e eles não tiveram tempo de fazer um ensaio geral.
Mas ninguém foi tão perfeito na arte da procrastinação quanto Leonardo da Vinci. Este método de trabalho, ou não-trabalho, é o cerne da biografia de Leonardo lançada pelo escritor Walter Isaacson. Não se trata da biografia mais completa de Leonardo. O escritor franco-tunisiano Serge Bramly, na década de 1980, descreveu em sua biografia do artista muitos dos mesmos episódios de sua vida, com até maior riqueza contextual, narrando com mais profundidade, por exemplo, as intrigas políticas dos patronos de Leonardo (César Bórgia, Juliano de Médici, o rei francês Francisco I) ou o modo como o homossexualismo era encarado nos séculos 15 e 16.
O texto de Isaacson é, porém, mais moderno. Tanto no estilo, mais cativante, quanto na tônica de busca de receitas, mais próxima da auto-ajuda. A grande questão, para ele, não é tanto apresentar Leonardo, mas explicar sua genialidade. Explicá-la e, até onde for possível, replicá-la.
É quase uma obsessão do autor que já fez biografias de Steve Jobs, Albert Einstein e Benjamin Franklin. Leonardo, como ele próprio diz, se destaca como o personagem ideal, porque supostamente não nasceu com um intelecto privilegiado – construiu-o.
E a maneira como Leonardo se fez Leonardo foi pela procrastinação. A do tipo positivo, por suposto. Leonardo não deixava de concluir suas obras por preguiça, mas por um misto de perfeccionismo atroz e curiosidade insaciável. Ele tinha mais interesse em desvendar mistérios do que em produzir, preferia sonhar com o futuro a focar no presente.
Leonardo poderia servir de exemplo prático para um conceito do filósofo alemão Arthur Schopenhauer – de que a vontade é o principal elemento da ação. É ela, e não o conhecimento, a fonte das realizações. Em poucas pessoas essa vontade era deixada tão à vontade.
Leonardo era movido a curiosidades. Tanto que andava com um caderninho pendurado no pescoço, para anotar seus pensamentos a qualquer momento.
E seus pensamentos e curiosidades eram extremamente diversos: “A libélula voa com quatro asas”, escreveu. “Quando as dianteiras são erguidas, as traseiras são abaixadas.” Outro exemplo é uma ordem que dá a si próprio: “descreva a língua do pica-pau”.
Ou “perguntar a Giannino, o artilheiro, sobre a construção dos muros da torre de Ferrara”. Ou ainda: “pedir para um mestre em hidráulica me ensinar a consertar uma eclusa, um canal e um moinho à moda lombarda”.
Essas múltiplas curiosidades explicam como um filho bastardo, pouco letrado, inábil com conceitos matemáticos, veio a se tornar um dos maiores gênios da humanidade.
Como diz Isaacson, “Leonardo quase não frequentara a escola e mal sabia ler em latim ou fazer uma conta de divisão. Sua genialidade era do tipo que somos capazes de entender, do tipo que tiramos lições”.
E está aí o grande enigma moderno, talvez não tanto de Leonardo, mas certamente da visão que temos dele: de um lado, há essa noção de que qualquer pessoa pode se tornar genial como ele; de outro, a mistificação da figura desse artista que simboliza o Renascimento nos leva a crer que ele era único, inimitável.
Isaacson trilha os dois caminhos. Ajuda a desmistificar o artista ao mostrar algumas de suas fontes – como Bruneleschi e Alberti, que haviam inaugurado os estudos de perspectiva na pintura, Verrocchio, que o ensinou as benesses do trabalho colaborativo (e talvez um tanto do hábito de postergar ou abandonar projetos), e Antonio del Pollaiuolo, que experimentava a dissecação de corpos para estudar anatomia.
Mesmo a famosa escrita espelhada de Leonardo, por tantos interpretada como sinal de iniciação a mistérios, era uma técnica comum a vários artistas canhotos (que a utilizavam para não borrar a tinta no papel ao deslizar a mão esquerda sobre o que acabara de ser escrito).
É tentador demais, no entanto, encarar Leonardo como um indivíduo à frente do seu tempo. Não só ele tinha um físico que na juventude beirava a perfeição, segundo vários contemporâneos, mas era alguém sui generis: filho ilegítimo, gay, vegetariano (que servia carne a seus convidados), canhoto, pacifista (que engendrava armas e mecanismos de guerra), às vezes até herético. E, principalmente, um pensador agudo. Algumas de suas observações anteciparam em um par de séculos avanços científicos revolucionários.
Ele entendeu o que acontece com as ondas de luz quando atingem um furinho na parede, quase dois séculos antes de o físico holandês Christiaan Huygens explicar o fenômeno da difração. Ele afirmou que “a mesma força exercida pelo objeto sobre o ar é exercida pelo ar sobre o objeto”, um impressionante entendimento da terceira lei de Newton (“a toda ação corresponde uma reação de igual valor e sentido oposto”), que seria formulada 200 anos mais tarde.
Ele também antecipou em 200 anos o princípio de Bernoulli, segundo o qual a velocidade de um fluido é inversamente proporcional à pressão que ele exerce (o que ajuda a explicar a forma das asas dos pássaros e é um dos cernes da aviação).
Até mesmo na teoria da seleção natural, de Darwin, ele roçou, ao mencionar que os anéis de crescimento dos galhos das árvores, dos chifres das ovelhas e de conchas fossilizadas indicavam seu tempo de vida.
O próprio método científico, que se diz ter sido inaugurado por Galileu, pode ser considerado uma prática de Leonardo, sempre preocupado em descrever seus experimentos minuciosamente para permitir que eles fossem replicados e verificados de forma independente.
Embora não quisesse ser considerado apenas um artista – numa carta em que oferece seus serviços a um duque, ele só menciona sua capacidade de pintar e esculpir no décimo parágrafo, bem depois das habilidades como arquiteto, produtor de mapas e forjador de armas, por exemplo – o grande símbolo da genialidade de Leonardo é a Mona Lisa, uma pintura que também demonstra sua combinação especial de procrastinação e perfeccionismo.
Leonardo passou 16 anos pintando o quadro. Parece não ter recebido comissão por ele, e nunca o entregou a quem o encomendou. A obra se beneficia de todos os processos de aprendizado por que Leonardo foi passando ao longo da vida. Era sua eterna obra inacabada, porque sempre havia algo a melhorar.
Sua técnica de sfumato, o efeito de criar um olhar que parece seguir o observador, a inovadora posição dos modelos sugerindo pela primeira vez que um retrato podia mostrar o estado psicológico da personagem, o estudo das cores, tudo isso fez alguns críticos de arte considerarem a Mona Lisa um exemplo de perfeição.
Até quando não era perfeito Leonardo mostrava seu poder. O quadro Salvator Mundi apresenta um Jesus segurando uma bolha que distorce a imagem de sua mão. A distorção não é perfeita de acordo com as leis da ótica – talvez tenha faltado um pouco mais de procrastinação nesse caso – mas foi suficiente para atingir o preço recorde de 450 milhões de dólares no leilão realizado pela casa Christie’s em novembro.
O que nenhum biógrafo de Leonardo conta é que a Mona Lisa nem sempre foi considerada uma obra-prima. Como conta Derek Thompson, no livro Hit Makers (fazedores de sucesso), “a Mona Lisa é a pintura mais valiosa do mundo, com a apólice de seguro mais cara de todas. (…) Mas no século 19 ela não era sequer a pintura mais famosa do museu, o Louvre.”
Até os anos 1850, “Da Vinci era considerado um artista de segunda classe em relação aos verdadeiros mestres da pintura, como Ticiano e Rafael”, diz o sociólogo Duncan Watts, no livro Everything Is Obvious (“Tudo é óbvio”, numa tradução livre). “Alguns de seus trabalhos valiam quase dez vezes mais que a Mona Lisa”.
O que houve para mudar essa percepção? Em 1911, um ladrão roubou a tela do museu. O caso catapultou a Mona Lisa a outro patamar de fama. Isso não quer dizer, obviamente, que Leonardo fosse um artista qualquer. Mesmo com uma produção tão escassa, ele teve amplo reconhecimento em vida.
Ele foi retratado como Platão, na famosa pintura Escola de Atenas, de Rafael – o pai da filosofia moderna é visto caminhando de túnica rosa, como as coloridas que Leonardo gostava de usar, fazendo o gesto característico de Leonardo, o dedo indicador apontando para o céu – e como Heráclito, num afresco de Bramante, também de túnica rosa e com um livro manuscrito com as letras em grafia espelhada.
No final da vida, sua fama era tão grande que ele conseguiu um emprego dos sonhos: o rei Francisco I “o admirava incondicionalmente, nunca o incomodava para que terminasse as pinturas, incentivava sua paixão por engenharia e arquitetura, o encorajava para que produzisse espetáculos e peças, garantia uma casa confortável e pagava um salário regular”. Recebeu, além disso, o título que cobiçava: primeiro pintor, engenheiro e arquiteto a serviço do rei.
Como conta Isaacson, quando Leonardo pintava A Última Ceia, “espectadores o visitavam e ficavam sentados em silêncio, apenas para assistir a ele trabalhando”. De acordo com o relato de um padre contemporâneo, Leonardo “chegava de manhã bem cedo, montava o andaime” e depois “permanecia com o pincel em punho do nascer até o pôr do sol, esquecendo-se de comer ou beber e pintando continuamente”. Já em outros dias não produzia nada: “Ele ficava diante do painel por uma ou duas horas e o contemplava, sozinho, examinando e criticando consigo mesmo as figuras que criara.” E também havia os dias dramáticos em que sua obsessão somava-se à tendência à procrastinação. Como que tomado por um arroubo de paixão ou mero capricho, ele aparecia de repente no meio do dia “subia no andaime, pegava um pincel, aplicava uma ou duas pinceladas em uma das figuras e ia embora”.
Sim, a procrastinação parece ser um elemento importante da criatividade. Mas ela não é causa, é efeito. E um efeito indesejável. Ficar parado em cima de um andaime contemplando um muro não vai tornar ninguém um Leonardo. Ser um Leonardo é que envolve a angústia de jamais estar satisfeito com suas obras – e procrastinar é um modo de se preservar, quando se sabe que toda batalha em busca da perfeição já nasce perdida.