A migração do emprego
O trabalho está saindo da grande em direção à pequena empresa. Acredite: de 1995 a 2000, as firmas de até 100 funcionários criaram 96% dos novos empregos no Brasil
Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h32.
Os efeitos da globalização na força de trabalho das grandes corporações são conhecidos. A pressão pelo aumento da produtividade motivado pela competição entre empresas multinacionais provocou uma dispensa em grande escala ao redor do mundo. Apenas no Brasil, as grandes (mais de 500 empregados) e médias empresas (de 100 a 499) fecharam 434 000 vagas de 1995 a 2000. Para onde toda essa gente foi? Como milhares de profissionais estão fazendo para tocar adiante a carreira? Quem está criando empregos hoje? Os números levantados ajudam a entender o fenômeno que está acontecendo no mercado de trabalho:
Os dados acima trazem à tona um dos últimos reflexos percebidos no movimento de globalização: a migração do emprego das grandes para as pequenas empresas. (Fique claro que estamos falando apenas de emprego formal. Se o informal fosse considerado, o resultado seria ainda maior. Um estudo de 1996 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT, identificou que 84 de cada 100 empregos criados na América Latina de 1990 a 1995 foram no setor informal). Com as demissões em massa em grandes empresas, como Brasil Telecom (5 569 funcionários), Embraer (1 800), na Varig (1 750) e Volkswagen (750 além das adesões ao plano de demissão voluntária), para ficar em exemplos caseiros, a saída óbvia é procurar vaga nas pequenas. Mas não só isso: há bastante gente optando pela pequena empresa por motivação ou empurrada pelos processos de terceirização ou planos de demissão voluntária (PDVs). Milhões de profissionais também estão virando empreendedores -- criando o próprio trabalho e o de outras pessoas. Um estudo recente da Fundação Getulio Vargas, feito para apontar as razões que levaram cerca de 10 milhões de brasileiros a montar o próprio negócio, mostra que 2 milhões abandonaram o emprego para empreender.
É, sim, dolorido deixar o glamour de uma multinacional por uma empresa desconhecida. É arriscado abandonar a segurança de uma empresa grande por outra de futuro incerto. O fato, porém, é que os profissionais brasileiros descobriram na pele que empresa grande não é sinônimo de segurança nem de satisfação no trabalho. Além disso, não há como fugir desse movimento de migração que chega agora ao Brasil numa onda que atinge desde a década de 80 também os países mais industrializados. Voltemos ao caso das quatro grandes montadoras: em 2000 elas tiveram uma produtividade 88% maior do que em 1990 -- com 23 000 funcionários a menos. "A busca da produtividade é uma tendência mundial que se acentuou na década de 90 aqui no Brasil depois da abertura comercial", diz Sheila Najberg, gerente executiva de emprego e governo eletrônico do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), co-autora do estudo A Crescente Participação das Microfirmas no Total de Estabelecimentos. "Quem não tiver preços competitivos não sobrevive."
Efeito Robin Hood
A princípio, pode parecer uma equação excludente: fechar empregos nas grandes indústrias ou empresas de serviços significa deixar profissionais fora do mercado de trabalho. No entanto, simultaneamente, a reestruturação na maneira de fazer negócios abre postos nos pequenos estabelecimentos. É uma espécie de efeito Robin Hood: no Brasil, o mercado subtrai emprego das grandes e repassa para as pequenas. "As corporações estão se concentrando na sua atividade principal e terceirizando o que não é crítico, dando origem a empresas menores", diz César Souza, sócio-diretor da filial brasileira da consultoria americana Monitor, em São Paulo. "As empresas também estão investindo mais em fornecedores, distribuidores e parceiros, visando descentralizar seu processo produtivo e focar no essencial."
Exemplo dessa descentralização é a fábrica da General Motors, em Gravataí, no Rio Grande do Sul. A planta principal funciona "cercada" pelos chamados sistemistas, que abastecem a linha de montagem com as diferentes peças do automóvel. Embora a maior parte dos 17 sistemistas sejam filiais de multinacionais, são abastecidos por outras empresas, muitas delas pequenas. Calcula-se que pelo menos 450 empresas forneçam, de alguma forma, produtos e serviços para a GM e seus sistemistas. Comércio e serviços crescem também. "Recebemos novos restaurantes, hotéis e cursos de inglês na cidade", diz o prefeito de Gravataí, Daniel Bordignon, do PT. A instalação de uma grande empresa funciona como catalisador do nascimento de pequenas empresas. "Em setores de intensa mão-de-obra, como confecções, calçados e turismo, que vêm se expandindo no Brasil, há o surgimento de pequenas empresas na cadeia produtiva gerada pelas empresas maiores", diz o economista Herodoto Moreira, consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Em outros setores e em novos nichos impulsionados pelo crescimento da economia, como móveis, confecções e serviços, e mesmo nas empresas de internet, as chances das pequenas e micro empresas aumentam consideravelmente. De 1995 a 2000, segundo o estudo do BNDES, os setores que mais cresceram foram o de serviços (57%) e comércio (35%), recheados de firmas de pequeno porte. "Elas têm agilidade maior para atender à demanda do mercado", diz José Eduardo Fiates, vice-presidente da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos de Tecnologias Avançadas (Anprotec), associação que reúne as incubadoras de empresas. "As grandes não têm mobilidade, e o negócio fica desinteressante para elas." A terceirização é o sintoma mais claro de como isso acontece.
Veja o exemplo da Brasil Telecom. Recentemente, a empresa de telefonia, criada em 1998 com a privatização do Sistema Telebrás, precisou diminuir o inchaço (a tal da produtividade, lembra?) e demitiu 5 569 funcionários. Nessa leva, foram incluídas pessoas dos setores de suporte técnico, manutenção e central de atendimento, entre outros, que foram terceirizados. Num elogiado programa de demissão responsável, a Brasil Telecom treinou boa parte dos funcionários para ser os próprios prestadores dos serviços terceirizados. Até março, 93,2% dos demitidos já haviam encontrado um novo caminho na carreira. De um total de 1 829 pessoas que passaram pela chamada célula de emprego e renda, para recolocação profissional, 54% foram para empresas com menos de 100 funcionários, 8% estão prestando serviços por intermédio de terceirizados e 19% montaram o próprio negócio. Os outros ex-funcionários ou foram contratados por empresas maiores, ou se tornaram prestadores de serviços autônomos. O melhor lado desse movimento é que cada um desses "terceirizados", ou donos de novas empresas, precisa contratar outras pessoas para tocar sua empresa.
Cabeça de mosquito
Além de criar mais empregos, os profissionais que saem das grandes em direção às pequenas descobrem as vantagens de tocar o próprio negócio ou um projeto com amplo poder de decisão. A inovação, a oportunidade de quebrar regras, a flexibilidade e a agilidade são alguns dos maiores trunfos das pequenas na atração de profissionais das grandes. Os casos de sedução são cada vez mais freqüentes. O carioca Sérgio Lopes é um caso exemplar (veja ao lado). Trocou o comando brasileiro da Avery Dennison, uma das maiores fabricantes de adesivos e etiquetas para escritório do mundo, pela oportunidade de fazer o planejamento estratégico da pequena TopSports -- empresa que administra, entre outros projetos, a Copa Nordeste de futebol. "As pessoas se realizam mais em empresas onde têm mais responsabilidades e onde podem ver o todo, em vez de ser meras peças na engrenagem", diz Souza, da consultoria Monitor. "Literalmente, preferem ser cabeça de mosquito a ser rabo de elefante e outros paquidermes jurássicos."
Há os que não se contentam apenas em ter voz ativa no pequeno negócio. Aí chegamos à fração mais expressiva e dinâmica do crescimento do emprego nas pequenas empresas. São os criadores, os empreendedores. É o "espírito da garagem", que está ganhando corpo e volume e finalmente mostra as caras no Brasil. Um bom indicativo desse movimento é o número de capitalistas de risco rastreando negócios em que possam investir. São pelo menos 29 fundos, com recursos de 50 000 a 100 milhões de dólares, para apostar em praticamente todas as áreas, desde agricultura até alta tecnologia, passando por serviços e, claro, internet.
Quem lida com empreendedorismo gosta de repetir a história de que dez anos atrás, quando se perguntasse numa sala de aula qual era o sonho de trabalho dos alunos, a maioria não hesitava em falar o nome de qualquer grande empresa privada ou estatal. Era o tal do "empregão". "Hoje é diferente. Acima de 50% dos futuros profissionais pensam em ter seu negócio próprio", diz Fiates, da Anprotec. "Começou com a necessidade e evoluiu para a motivação." A empresa força pela pressão, seja com a demissão, seja com a terceirização. No outro lado, há a força de atração de uma economia mais dinâmica, com novos nichos a ser explorados. A boa notícia: uma quantidade impressionante de novos negócios. Nos últimos seis anos, o Departamento Nacional de Registro de Comércio contabilizou o surgimento de 490 000 empresas por ano, mais do que as 420 000 dos últimos cinco anos da década de 80. A má notícia: uma péssima qualidade, também impressionante, na gestão dos negócios.
A vantagem de treinar
A taxa de mortalidade das pequenas empresas no Brasil é de assustar: cerca de 50%, segundo o Sebrae, morrem no primeiro ano de vida --o que torna arriscadíssimo trabalhar para qualquer uma delas. Em geral, os casos de falência prematura acontecem com o sujeito que não conseguiu voltar para o "empregão" e decide criar o próprio trabalho. A questão é que a maioria nem sabe o que é fluxo de caixa, quanto mais plano de negócio. É um grave problema que precisa ser atacado. Como? Com treinamento para os empreendedores. "Muitos profissionais ainda migram para companhias de futuro incerto", diz Marília Rocca, diretora no Brasil da Endeavor, ONG que estimula o empreendedorismo na América Latina. "Se não trabalharmos a capacidade gerencial do empreendedor, as pequenas empresas vão crescer menos e empregar menos." A Endeavor tem um sistema de apoio para empreendedores com o auxílio de grandes empresários. A idéia é repassar práticas de gestão e ajudar líderes de negócios incipientes, mas com grande potencial, a encontrar investidores. São 14 negócios que recebem apoio da ONG, alguns desde setembro de 2000 e os mais recentes a partir de agosto de 2001. O faturamento desses empreendimentos foi de 27 milhões de reais em 2000. Em 2001, pulou para 56 milhões, um crescimento de 107%. Para este ano, a estimativa é que a receita total chegue a 105 milhões, quase 400% a mais. O número de funcionários total saiu de 842 em 2000 para 1 025 em 2001, 22% a mais.
É prova inconteste que o auxílio bem-feito gera resultados. Claro que é difícil estender o desempenho dessas poucas empresas para o âmbito nacional. "O gargalo da produtividade brasileira está nas pequenas, justamente onde cresce o emprego", diz o economista Claudio de Moura Castro, presidente do conselho consultivo da Faculdade Pitágoras, em Belo Horizonte. "As pequenas têm menos capital humano, menos tecnologia e gerência amadora. O grande desafio é levar a qualidade das grandes para as pequenas." Uma maneira de fazer isso é buscar talentos experientes e bem treinados pelas grandes. Assim, a transferência de conhecimento dá-se naturalmente. (Se você é um profissional que pode fazer a diferença numa pequena empresa, não deixe de ler a reportagem seguinte, com a lista de cuidados que deve tomar antes de responder sim.)
Outra maneira de saber o tamanho do risco ao apostar numa pequena empresa é verificar a origem do negócio. Se nasceu dentro de uma incubadora, melhor. Hoje, o Brasil oscila entre o segundo e o terceiro lugar em número de incubadoras no mundo. Houve um crescimento exponencial desde 1986, quando surgiram as cinco primeiras iniciativas. Atualmente, são mais de 160. Mais do que gerar emprego -- ainda não é o seu forte, são cerca de 6 000 pelo país --, as incubadoras desempenham o importante papel de formar a cultura empreendedora. Em cidades médias e pequenas, assim como nas próprias universidades, o prédio de incubação é visto como referência e símbolo de empreendedorismo. Um resultado concreto: as empresas incubadas têm maior chance de sobrevivência. Segundo estudo realizado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pelo Instituto Euvaldo Lodi em dezembro de 2001, do total de 392 empresas que nasceram em incubadoras já graduadas no Brasil apenas 39 encerraram as atividades. Uma baixa de apenas 10%. Nada mau.
Melhor do que isso, só o desempenho das franquias. O índice de quebra no primeiro ano é ínfimo: 3%. Mais de 90% duram além de dez anos. "O negócio é mais durável porque o franqueado recebe apoio do franqueador e aprende a conhecer o negócio antes de começar", diz Marcelo Cherto, presidente do Instituto Franchising. "No Yázigi, por exemplo, muitos franqueados começaram como professores da rede de inglês." Outra vantagem é a geração de emprego em todos os níveis. Em 2000, empregavam 227 000 pessoas, 26% a mais que em 1995.
A união faz a força
Os exemplos da Endeavor, das incubadoras e mesmo dos franqueados é uma boa medida de como a política de apoio à pequena empresa pode resultar no aumento do emprego formal no Brasil. "Quando os empregos das grandes empresas desaparecem ou se tornam mais instáveis, a opção é a pequena empresa ou nada", diz Vinicius Lummertz, diretor técnico do Sebrae Nacional. "Sendo assim, abrir uma pequena empresa deveria ser um processo mais fácil. As taxas são altas, a burocracia é enorme e a regulamentação também." O Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte é um bom exemplo de incentivo à criação de empresas. Trata-se da unificação do pagamento de impostos. Em alguns estados, o pagamento corresponde a 3% do faturamento. É uma boa medida para evitar o que alguns empresários já estão chamando de "flexibilização fiscal", ou evasão de alguns impostos, um eufemismo para sonegação.
Pelo potencial de renda, as pequenas empresas merecem um olhar mais atento. Na região sul de Minas Gerais, por exemplo, existe um bloco econômico (ou cluster) de eletroeletrônica e tecnologia da informação nas cidades de Santa Rita do Sapucaí e Itajubá. O bloco é formado por 137 empresas, a maioria de pequeno porte, com faturamento total de 270 milhões de reais em 2000. O crescimento foi de quase 20% ao ano nos últimos três anos. "Essa é a tendência de emprego para os próximos anos em cidades de médio porte", diz o economista Paulo Haddad, ex-ministro do Planejamento e da Fazenda. "Blocos de negócios dinâmicos como esses vão proliferar pelo interior do Brasil." Trata-se de outro processo de desconcentração econômica, como o da migração do emprego da grande para a pequena empresa, só que dessa vez geográfico. Municípios e regiões brasileiras estão descobrindo a sua vocação, explorada por pequenas empresas na maioria dos casos. Esse tipo de associação já gerou frutos famosos, como o Vale do Silício na Califórnia, o distrito industrial de couro, calçados e moda em Milão, o bloco de biotecnologia e software em Boston e mesmo o pólo vinícola do Chile.
Juntas, as pequenas empresas já mostraram que são capazes de fazer frente às grandes. Em número de criação de vagas, no Brasil, as médias e grandes firmas demitem muito mais do que contratam (só para reforçar: de 1995 a 2000 as médias e grandes criaram apenas 88 000 vagas, ante um total de 1,9 milhão das pequenas). No entanto, ainda existe certo glamour em trabalhar para as grandes empresas. Benefícios como motorista, hotéis caros e restaurantes da moda ainda fazem a cabeça de muita gente. Entretanto, não pagam contas nem garantem a satisfação ao fim de um dia de trabalho. Considere a hipótese de deixar a sedução da grande empresa de lado quando pensar em trocar de emprego ou montar o seu negócio. As pequenas empresas estão esperando por você.