Desafios da economia circular: por que gostamos de possuir coisas?
A posse gera um sentimento de segurança e identidade, e entender isso pode ajudar as empresas a adaptarem seus relacionamentos com os usuários
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Publicado em 23 de fevereiro de 2023 às 20h30.
Conheça Davi. Ele tem 56 anos, é divorciado e vive um dilema. Seu Toyota, confiável, mas agora mais antigo, falha constantemente na partida e ele precisa de uma maneira para visitar sua mãe do outro lado da cidade e encontrar seus amigos todas as sextas-feiras à noite. Desde que começou a trabalhar em casa, o carro de Davi fica parado na garagem muito mais do que é dirigido. Embora Davi apoie a lógica do compartilhamento de carros (car-sharing) – ele deseja não ter que pagar por um carro novo e, ao mesmo tempo, contribuir para a redução das emissões de carbono – algo o impede de fazer uma assinatura. Ele tem um apego, que não consegue explicar totalmente, em ver seu Toyota na garagem todos os dias.
A experiência de Davi está longe de ser incomum. Uma pesquisa conduzida pela Globescan em populações em 31 países nos últimos três anos descobriu que apenas 20% das pessoas, em média, estavam dispostas a alugar ou arrendar produtos em vez de possuí-los. Claramente, este valor médio mascara diferenças entre setores de produtos e geografias. Houve um aumento nos últimos anos, por exemplo, no aluguel de roupas, e serviços como Spotify e Netflix popularizaram a possibilidade de acessar músicas e filmes por assinatura, em vez de possuir os objetos físicos.
Mas, de acordo com a pesquisa da Globescan, a proporção geral de pessoas dispostas a alugar ou arrendar é superada pelas porcentagens de pessoas felizes em se engajar em outras atividades que ainda envolvem a propriedade do produto – mais de um terço dos compradores estão dispostos a comprar de segunda mão, enquanto 58% estão dispostos a comprar produtos feitos de materiais reciclados. Essas atividades são uma parte importante de uma economia circular, mas a resistência em abrir mão da propriedade precisa de atenção.
Afastar-se da propriedade do produto faz parte de uma economia circular que desvinculará a atividade econômica da extração de recursos finitos, ajudando a gerar fontes de receita futuras resilientes a um custo menor para o meio ambiente. Por exemplo, no mercado de moda, em um cenário em que um modelo de aluguel atinge 100 usos de um vestido não sazonal (o mesmo número de usos de pessoas com cinco vestidos), as emissões de CO2 podem ser reduzidas em cerca de 40%.
Reduzir a predominância da propriedade do produto é uma maneira de alcançar um maior nível de circulação de produtos, além de incentivar os produtores a projetar focando na durabilidade. Este último ponto é fundamental. É somente criando um modelo econômico que recompense financeiramente o proprietário e/ou produtor pela manutenção dos recursos que os produtos serão construídos de forma a facilitar a reutilização ou o reaproveitamento, em vez do descarte.
Da propriedade à identidade
Muitos fatores práticos podem ter impacto sobre se uma pessoa escolherá ter acesso a algo em vez de comprar, incluindo setor do produto, idade, fase da vida, localização e grupo socioeconômico. Muitas vezes, é uma combinação desses fatores que pode tornar a propriedade mais atraente do que o compartilhamento. Mas as motivações psicológicas que governam essas escolhas têm sido relativamente inexploradas no contexto das novas relações de usuário da economia circular.
Uma das primeiras fases de desenvolvimento que um bebê experimenta é a percepção de que sua mãe está separada dele. A teoria bem conceituada de Donald Winnicott é que a criança então se fixa em um cobertor ou brinquedo para servir como um "objeto de transição", ajudando-a a processar esse sentimento de separação e desenvolver independência física e emocional. Embora a maioria das crianças perca o apego a esses objetos transitórios, há evidências de que para algumas, muitas vezes aquelas que sofreram uma fratura em seu apego precoce a um cuidador, a obsessão por objetos que simbolizam a sensação de segurança permanece na idade adulta.
A propriedade de objetos pode fornecer segurança ontológica no sentido de “proporcionar um desejo profundo de continuidade e permanência na vida”, como afirmam Cheshire, Walters e Rosenblatt.
Sem possuir, mas valorizar?
Os desejos racionais de contribuir para uma economia circular podem ser superados por aqueles impulsos mais primitivos e poderosos de possuir, como ilustra a experiência de Davi. Uma maneira de lidar com isso seria observar como os benefícios psicológicos da propriedade poderiam ser transferidos para modelos baseados em acesso. O professor Russell Belk, uma das principais autoridades em comportamento do consumidor, descreve as três maneiras pelas quais as pessoas aprendem a "apropriar-se" de um objeto: controlar (ter a capacidade de usar um objeto e modificá-lo se necessário), criar (fazer algo para usá-lo ) e conhecer (ter um conhecimento íntimo de seu funcionamento).
Se as empresas puderem incorporar esses aspectos em suas marcas, os benefícios da propriedade poderão ser transferidos para produtos que os usuários apenas acessam, em vez de possuir? Isso foi testado em usuários da marca francesa de compartilhamento de carros Autolib em 2015. O que os usuários particularmente apreciaram no design do veículo realmente se encaixou nessa concepção. Uma sensação de controle foi alcançada com o assento do motorista de alto nível, o funcionamento suave da caixa de câmbio automática e o funcionamento perfeito da reserva de um carro. O aspecto da ‘criação’ foi contemplado por meio do processo físico personalizado de retirada de um carro. O ‘conhecimento’ foi adquirido através da padronização do modelo.
Outro exemplo é a startup de moda By Rotation. Em seu cerne operacional, trata-se de um sistema de empréstimo e aluguel de roupas. Mas sua verdadeira vantagem é a maneira como foi construído para maximizar o senso de comunidade entre emprestadores e locatários – conhecidos como 'Rotators'. Os usuários do aplicativo podem seguir pessoas ('Matches') que compartilham as mesmas preferências de tamanho e estilo que eles e alugar as roupas que os veem vestindo. Como disse um usuário: “a definição de roupa está mudando de objetos para compartilhamento emocional”.
Conclusão
A mudança para uma economia circular significa que os profissionais de marketing precisam considerar as necessidades psicológicas de seus usuários de uma maneira diferente da pesquisa clássica do comprador e, em seguida, retornar esse conhecimento ao processo de design do modelo de negócios.
Desafiar a antiga suposição de que a propriedade de objetos é necessária para dar às pessoas uma sensação de segurança e identidade pode ser uma tarefa significativa na jornada rumo a uma economia circular. No entanto, é possível fazê-lo se as empresas puderem oferecer aos usuários novos – ou talvez ressignificados – benefícios psicológicos.
*Claire Murphy é editora na Fundação Ellen MacArthur
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