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Débitos fiscais para pagar em dois mil anos

Presidente do Instituto ETCO: “Devedores contumazes se estruturam para não pagar tributos e utilizam todos os meios para adiar indefinidamente o pagamento”

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Juros futuros (Gustavo Mellossa/iStock/Getty Images)

Juros futuros (Gustavo Mellossa/iStock/Getty Images)

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Edson Vismona

Publicado em 21 de dezembro de 2020 às, 10h48.

O título desse artigo pode parecer ao leitor uma piada, mas na verdade revela como pode ser encaminhado o contencioso tributário no Brasil. Trata-se do caso, em julgamento no Superior Tribunal de Justiça, fartamente divulgado na mídia, de uma cervejaria instalada no Rio de Janeiro que, segundo a Procuradoria Geral do Estado, tem uma dívida de R$ 1,2 bilhão em ICMS.

A devedora está tentando se beneficiar de uma lei estadual que permite o parcelamento especial com a limitação de um valor mínimo que não ultrapasse 2% da receita bruta da empresa devedora, para os casos de débito superior a R$ 10 milhões. A primeira instância aprovou o parcelamento em mais de dois mil anos! Decisão que foi revertida no Tribunal de Justiça e que agora está no Superior Tribunal de Justiça tendo a devedora o voto favorável do relator do caso.

Sem entrar no mérito dessa demanda, esse prolongamento milenar do pagamento de uma dívida tributária faz lembrar o modus operandi do denominado devedor contumaz: a empresa se estrutura para não pagar tributos e utiliza todos os meios administrativos e judiciais para protelar indefinidamente o pagamento, criando uma ciranda interminável, prejudicando diretamente o erário e a concorrência, especialmente em setores altamente tributados como bebidas, combustíveis e tabaco. Ao não pagar impostos, sua margem de lucro  é multiplicada e pode ofertar produtos a preços bem mais baixos, destruindo a concorrência leal.

Essa perversão há muito tempo é apresentada pelos setores prejudicados. Os valores devidos são bilionários e embolsados por quem se locupleta. Só no setor de combustíveis, o passivo é de R$ 60 bilhões e, no de cigarros, R$ 24.7 bilhões.  Uma subversão do dito popular: “Devo, não nego e não pago”.

É evidente que o sistema tributário brasileiro se apresenta de modo caótico, são tantas normas, decretos, regulamentos, possibilitando as mais diversas interpretações, fazendo com que a vida do contribuinte que tem patrimônio declarado, atividade regular e reputação a zelar seja muito mais difícil do que aquele que atua desde sempre ocultando e exercendo suas atividades nas sombras. Para o primeiro, a legislação permite uma série de possibilidades ao fisco para atingir seu objetivo na cobrança do que entende ser devido, inclusive com a indiscriminada utilização da representação fiscal para fins penais e aplicação de multas agravadas. Já, para o segundo grupo, a mão pesada do fisco fica mais distante, pois os subterfúgios são muitos e a criatividade é vasta, e, quando finalmente é alcançado, encerra suas atividades e inicia nova empreitada com outro CNPJ.

É certo que temos que enfrentar esse desafio simplificando o sistema tributário, procurando inverter esse processo anacrônico, facilitando e estimulando a atividade do contribuinte regular e dificultando e diminuindo o espaço dos contumazes, que aproveitam todas as brechas para obter o lucro indevido. Nesse sentido, temos no Senado Federal, pronto para ser votado, o PLS 284/17 - definindo com precisão o que é devedor contumaz, diferenciando-o de devedor eventual e reiterado e assegurando medidas mais eficazes para o fisco poder agir - mas está parado com o relator desde março de 2019.

Assim temos dois tormentos que se interligam: de um lado, o sistema tributário caótico, criando obstáculos para os contribuintes, resultando em cifras inacreditáveis, como demonstra o estudo patrocinado pelo Instituto ETCO com a consultoria internacional EY, indicando que o contencioso tributário no Brasil atinge o incomparável montante de R$ 3.4 trilhões que cresce a cada ano; e, de outro, esse caos auxilia os que querem postergar o pagamento de tributos indefinidamente. Essa situação causa insegurança jurídica e afasta investimentos, devendo ser revertida com urgência.

Voltando à lei que permite esse parcelamento de extensão bíblica, temos um retrato das consequências que algumas iniciativas legislativas podem ter. Assim, limitar o valor das prestações poderia ser uma medida defensável, mas, em verdade, boas intenções podem gerar um resultado anacrônico. A análise de risco e efeitos deve ser sempre aprofundada.

Diante dessa possibilidade de transação, é possível que seja proposta uma conciliação, diminuindo as prestações para quinhentos anos. É, parece piada, mas é verdade patente.

 

*Edson Vismona é advogado, presidente do Instituto ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial) e do FNCP (Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade). Foi secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.

 

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