Uma noite com Dilma e Cristina
Thiago Lavado Dá pra ouvir a gritaria da rua. Apesar da chuva que cai no final de uma sexta-feira, o salão de festas da Casa de Portugal, uma área de arquitetura neoclássica, com 700m² no bairro da Liberdade em São Paulo, está lotado. Dos gritos de guerra, dois se destacam: “partido, partido, partido é do […]
Da Redação
Publicado em 15 de dezembro de 2016 às 17h07.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h52.
Thiago Lavado
Dá pra ouvir a gritaria da rua. Apesar da chuva que cai no final de uma sexta-feira, o salão de festas da Casa de Portugal, uma área de arquitetura neoclássica, com 700m² no bairro da Liberdade em São Paulo, está lotado. Dos gritos de guerra, dois se destacam: “partido, partido, partido é do trabalhadores” e “olê olê olê olá, Dilma, Dilma”. São quase 19h e o público aguarda o começo da conferência “A luta política na América Latina hoje”, organizada pela Fundação Perseu Abramo, que reuniu as ex-presidentes de Brasil e Argentina, Dilma Rousseff e Cristina Kirchner.
Lá, a militância do PT se uniu a movimentos argentinos e também a lideranças latino-americanas, como Rodrigo Cabezas, atual secretário de relações internacionais do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), o mesmo de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. À frente do palco, uma faixa pendurada dizia em letras garrafais (e sem vírgula mesmo) “STF anule o golpe já”.
É possível ver homens vestindo guayaberas, a tradicional camisa latina caracterizada pelas mangas curtas e dois bolsos no peito, com pontos nos ouvidos — provavelmente seguranças de Kirchner ou de Cabezas. Os homens de Cristina foram impossibilitados de entrar no Brasil portando armas de fogo, já que o governo argentino não deu entrada no pedido que autoriza o porte temporário. Em sua conta no Twitter, Cristina Kirchner reclamou no dia anterior que “se algo acontecesse seria culpa do atual governo”, do oposicionista Mauricio Macri. Como se sabe, no pasó nada.
Dilma assume o púlpito para um discurso que irá durar cerca de 1 hora e é recebida por uma plateia que a aplaude de pé. Diante de uma mesa composta estritamente por mulheres, se mostrou contente por compor uma mesa “feminina e feminista”.
Na sequência, como todos esperavam, vociferou contra o atual governo de Michel Temer. Criticou a PEC do Teto, e a “ultraconservadora reforma da previdência”, citando nominalmente o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles e sua aposentadoria de 700.000 dólares (que ele recebe não do INSS, mas do banco em que trabalhou por 28 anos, o Bank Boston, hoje Fleet Boston). Afirmou que o governo pratica o mais “branco fisiologismo, com um governo composto de homens, brancos e velhos” (como se Temer tivesse inventado o fisiologismo).
Aí veio a repetição do mantra do partido, ao criticar a “tentativa de retorno neoliberal, radical e conservador, que tolhe os direitos do trabalhador”, contra o aumento das desregulamentações no mercado de trabalho e financeiro. “Eles subestimaram a crise econômica, acreditaram no que estavam dizendo, e muitos sabiam que era mentira, de que a crise econômica era responsabilidade exclusivamente minha”, disse a ex-presidente. Quando ela assumiu o país, vinha de uma expansão anual de 7,5%. Em 2015, último ano completo de seu governo, recuou 3,85%.
Chega a vez de Kirchner, saudada com gritos de guerra em espanhol. Ela endossou o discurso antineoliberal. Em uma alusão ao final do primeiro ano de governo Macri, disse que “há um ano se finalizou o período de crescimento acentuado na Argentina”. A economia argentina deve recuar 2,2% este ano, ante o crescimento de 2,4% do último ano de seu mandato, que também contou com inflação de 30% e um terço da população argentina na miséria.
Cristina também culpou o neoliberalismo pelas crises econômicas e pela exclusão dos países latino-americanos dos mercados emergentes. “Depois de ter podido demonstrar ao mundo e também de nos havermos convencido de que era possível ter um país governado por nossas políticas, vale a pena seguir trabalhando”, disse a ex-presidente Argentina.
Difícil dizer se Dilma se “conformou” com os acontecimentos que causaram o impeachment ou se dá o tom de como o PT irá abordar as eleições em 2018. Disse que a única maneira possível de retorno do partido é por baixo, por meio do voto. “A crise política começou no dia seguinte à eleição de 2014, quando a oposição pediu recontagem de votos no TSE. Sou a favor de uma eleição direta e de uma reforma política”, afirmou.
O discurso, claro, ressoa na militância. “Argentinos e brasileiros estão sofrendo os mesmos problemas: retirada de direitos, aumento do desemprego, entrega de patrimônio público e perda de soberania”, diz Mônica Valente, secretária de relações internacionais do PT, reforçando que a esquerda latino-americana optou por acessar o poder pela via eleitoral, “desde Hugo Chávez em 1998”.
Para Vinícius Fernandes, um estudante de 21 anos que faz parte do movimento Balaio, núcleo de estudantes petistas da USP, é necessário um movimento por eleições diretas, que possibilite à população votar um projeto de governo. “O projeto que Temer apresenta não é o que foi votado nas urnas em 2014”, disse Fernandes.
O estudante está ansioso pelas eleições de 2018 e a volta do PT à presidência. Para Reinaldo Alexandre Santos, o motorista que levou a reportagem até o evento petista, a possibilidade não empolga. Com 36 anos e pai de dois filhos, ele não ganha o suficiente para sustentar a família e poder ver com mais frequência os jogos do Palmeiras, seu time de coração e atual campeão brasileiro. Quando contei para onde ia, Reinaldo disse que o evento reunia duas políticas que haviam colocado seus respectivos países em um abismo econômico.
Pelas última pesquisa Datafolha, o ex-presidente Lula lidera as pesquisas no primeiro turno em todos os cenários, mas perde no segundo turno para Marina Silva, da Rede, por 43% a 34% dos votos. Até 2018, muita coisa vai acontecer para que Vinícius e Reinaldos revejam, ou reforcem, seus pontos de vista.