Nísia Trindade, da Fiocruz: "É possível gerar produtos de alta tecnológica em saúde no Brasil e contribuir para a descentralização da produção" (Marcello Casal Jr./Agência Brasil)
Carolina Riveira
Publicado em 24 de agosto de 2022 às 12h29.
Última atualização em 24 de agosto de 2022 às 12h59.
Esta entrevista faz parte do "Especial 55 anos da EXAME", presente na edição deste mês da revista. Acesse aqui a reportagem completa com as visões de 55 lideranças sobre o futuro do Brasil e veja as demais reportagens da edição.
A pandemia de covid-19 entrará para a história como um período doloroso para o Brasil. Mas, em meio ao luto coletivo, alguns orgulhos nacionais também farão parte desse capítulo, sem os quais o cenário poderia ser ainda pior. O trabalho da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), responsável pela produção e acordo de transferência de tecnologia para 200 milhões de vacinas, é certamente um deles.
Os desafios, porém, não acabaram, argumenta Nísia Trindade, presidente da instituição. A cientista social, que se tornou em 2017 a primeira mandatária mulher da história da Fiocruz em 116 anos, falou à EXAME como parte da edição especial de 55 anos da revista (veja aqui).
Trindade aponta que o mundo ainda precisa avançar na cobertura vacinal, não só da covid-19 como de outras doenças, e trabalhar para evitar a volta de males já controlados. "Esse risco já é evidente no Brasil, como vimos no retorno do sarampo", diz.
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Trindade cita como o Brasil avançou na saúde desde a fundação da EXAME em 1967 — das vacinações em massa nas quais o país se tornou referência à criação e desenvolvimento do SUS. Porém, para os próximos anos (e, infelizmente, talvez as próximas pandemias), a cientista argumenta que o Brasil tem capacidade para se tornar um polo de produção de tecnologia em saúde, em um momento em que países buscam dinamizar suas cadeias de produção e suprimentos, um recado claro da pandemia.
"Hoje, países que não têm ciência forte e um sistema universal de saúde sólido não estarão preparados para enfrentar os desafios do futuro", diz. "Essa é uma das maiores oportunidades para o Brasil entrar na quarta revolução tecnológica." Veja abaixo os principais trechos do depoimento, editados para concisão.
Trindade: "A ideia de lições aprendidas dependerá da forma como a sociedade e os governos irão lidar com o balanço dessa traumática experiência.
No caso do Brasil, será imprescindível, desde já, definir e dar sustentabilidade a ações de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) e ao Sistema Único de Saúde (SUS). Investimentos contínuos em CT&I são essenciais para a construção de uma base permanente de respostas para problemas recorrentes de saúde coletiva e para prováveis novas emergências sanitárias, que podem resultar em pandemias."
"Outra lição consiste no fortalecimento do Complexo Econômico Industrial em Saúde (Ceis), como parte integrante do SUS. É possível gerar produtos de alta tecnológica em saúde no Brasil por meio do Ceis e contribuir para um esforço global de descentralização da produção, envolvendo medicamentos, testes diagnósticos, vacinas e insumos farmacêuticos ativos, como mostraram o Acordo de Transferência Tecnológica com a Farmacêutica Astrazeneca e as mais de 200 milhões de vacinas contra a covid-19 produzidas pela Fiocruz.
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A Fiocruz propõe há 20 anos que a saúde é uma nova frente de desenvolvimento para o Brasil, que alia geração de emprego, bem-estar e sustentabilidade ambiental. Essa é uma das maiores oportunidades para o Brasil entrar na quarta revolução tecnológica, cuidando das pessoas e do planeta, seguindo de modo concreto e não apenas nas intenções a implementação da Agenda 2030.
A pandemia mostra ainda a importância de mobilizar abordagens interdisciplinares para lidar com a complexidade dessas emergências, que envolvem dimensões biológicas, ambientais, sanitárias e sociais."
"Ainda temos pela frente ações a desenvolver no enfrentamento da covid-19. A vacinação precisa avançar, tanto no Brasil como no mundo, inclusive para enfrentar o risco sempre presente de surgimentos de novas variantes.
Pensando nisso, a Fiocruz foi selecionada pela OMS para ser um hub regional da América Latina e do Caribe na capacitação e desenvolvimento de vacinas baseadas nas tecnologias de RNA mensageiro, e vamos compartilhar os conhecimentos desenvolvidos com a região."
Um esforço global também vem sendo empreendido para aumentar a cobertura vacinal contra outras doenças, a fim de diminuir o risco de ressurgimento de doenças graves e consideradas plenamente controladas em passado recente, como a poliomielite.
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Esse risco já é evidente no Brasil, como vimos no retorno do sarampo, e ações tentam reverter esse processo, como o projeto Reconquista de Altas Coberturas Vacinais e a campanha Vacina Mais."
"Uma das maiores conquistas da sociedade brasileira no período foi a criação do SUS, instituído pela Constituição de 1988. Pela primeira vez no país, afirmou-se a saúde como um direito de todos e dever do Estado, marco civilizatório que evidenciou a proximidade entre saúde e democracia.
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Ao lado do SUS, foi destacada a importância de outro sistema: o de CT&I, com suas instituições, que mostraram toda sua força para a compreensão das epidemias e pandemias. Hoje, países que não têm ciência forte e um sistema universal de saúde sólido não estarão preparados para enfrentar os desafios do futuro."
"Nesse momento de debate dos grandes desafios nacionais, uma agenda que articule os direitos sociais, o acesso universal à saúde, a ciência, a inovação e a produção local talvez seja a grande opção estratégica que permita sair da falsa separação entre economia, direitos sociais e sustentabilidade ambiental.
É esse desafio para o futuro que o enfrentamento da pandemia mostrou com muita clareza, sendo, ao mesmo tempo, um caminho para um pacto nacional que alie desenvolvimento, bem-estar e democracia."