Mulheres na prisão: perfil de mulheres jovens, negras e de baixa escolaridade são as que mais têm dificuldade para voltarem ao mercado (Mario Tama/Getty Images)
Clara Cerioni
Publicado em 5 de outubro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 10 de outubro de 2019 às 20h02.
São Paulo — Karine Vieira tinha apenas 14 anos quando cometeu o primeiro delito de uma trajetória de criminalidade que duraria quinze anos. Começou praticando pequenos furtos, seduzida pelo que chama de "desejo de transgressão" de uma adolescente que não aceitava a separação dos pais, somado à influência de amigos também envolvidos em delitos.
Com o passar do tempo, expandiu sua participação e passou a traficar drogas e gerenciar negócios. Aos 23 anos, foi presa dentro de casa, por conta de uma investigação que a acusou de tráfico e associação criminosa.
Mas apesar de viver no mundo do crime, ela não fazia parte do esquema em que foi detida, e seis meses depois foi absolvida. Deixou o presídio decidida a nunca mais voltar, mas sabia que, a partir daquele momento, iria carregar para sempre a marca de ter passado pelo cárcere.
"O mundo do crime é muito triste: ele traz ou morte ou presídio, e eu não sei o que é pior", diz Karine em entrevista a EXAME.
Precisou de mais alguns anos até abandonar de vez o mundo do crime — o que só aconteceu quando fez 29 anos. A decisão, no entanto, não veio imediatamente como um alívio. Era preciso conseguir, com urgência, um emprego. "Quem iria aceitar uma egressa do sistema prisional?", questiona.
Segundo ela, no presídio não havia trabalho e, durante a juventude, o crime foi sua ocupação. Na época, já tinha dois filhos e precisava sustentá-los, mas ela não lembrava sequer quais eram suas qualidades e habilidades para trabalhos lícitos.
"Quando você deixa o crime, uma hora o dinheiro guardado acaba e, ou você encontra uma oportunidade de trabalho, ou volta para o esquema, que é o que vai pagar suas contas", afirma, relembrando as dificuldades que enfrentou para chegar aos 38 anos que tem hoje e ser fundadora da Responsa, empresa de inserção de egressos no mercado de trabalho (leia mais abaixo).
Os desafios na trajetória pós-prisão de Karine, contudo, terão que ser enfrentados eventualmente por outras 38 mil mulheres que cumprem pena atualmente no Brasil — 64,5% respondem por tráfico de drogas, um delito não violento.
Como o perfil da maior parte das mulheres no cárcere é de jovens, negras e com baixa escolaridade, o grupo mais afetado pelo desemprego e subemprego, os obstáculos para egressas são ainda mais árduos.
Essa é a conclusão de uma pesquisa inédita realizada pelo Instituto Igarapé, divulgada nesta semana, que investiga as oportunidades de trabalho dentro de presídios femininos em praticamente todo o Brasil.
Os números mostram que, atualmente, em 15 estados brasileiros, apenas 31,8% das mulheres presas trabalham. Já o percentual de detentas remuneradas pelas atividades, regra determinada na Lei de Execução de Penal (LEP), é ainda menor, de 23,9%.
"As vagas de trabalho ofertadas são, com frequência, relativas a atividades tradicionalmente associadas a mulheres, como corte e costura. Mas a gente chama atenção a isso, porque o trabalho pode não ser produtivo, mas tem que qualificar essa mulher. Para que, quando ela saia da situação de encarceramento, ela possa encontrar um trabalho e não volte ao crime", afirma Dandara Tinoco, uma das autoras da pesquisa.
A pesquisa foi produzida com objetivo de lançar uma campanha, nomeada de "Sócios da Liberdade", para conscientizar empresários sobre a importância de dar oportunidades a essas mulheres.
"Há duas questões essenciais para as empresas contratarem egressas: vantagens sociais, uma vez que não é exigido uma série de normas trabalhistas, além de contribuir para reduzir os índices de reincidência e violência. Normalmente, quando é dada uma oportunidade para ex-detentas, o reconhecimento é imediato e a dedicação e gratidão também", diz Dandara.
O caminho de Karine para subverter a tendência de retornar ao crime e empreender foi longo e desafiador. "Você sai do presídio estereotipada e estigmatizada, mas precisa fazer algo da vida. Hoje sou grata a todas as pessoas que me ajudaram", conta.
De 2009 até 2017, ela passou pelo supletivo para concluir o ensino médio, depois cursou faculdade de serviços sociais, trabalhou no Afroreggae no projeto Segunda Chance, para inserir egressos prisionais homens e mulheres no mercado de trabalho, e atuou em trabalhos voluntários.
Há dois anos, foi incentivada a montar o próprio negócio, o Responsa, que funciona como uma espécie de agência social de emprego, com trabalho de recrutamento e parcerias com outras empresas.
Para conseguir um emprego, o programa oferece aconselhamento profissional, psicólogos e acompanhamento por quanto tempo for necessário. Até hoje, já foram 90 contratações fixas e mais 200 temporárias.
As empresas Grin e Yellow, que oferecem transporte alternativo incluindo os patinetes, são parceiras da empresa e contratam os fiscais dos equipamentos. O rapper Dexter, ex-detento do Carandiru e hoje CEO de uma produtora de artistas independentes, é o padrinho do Responsa, e tem como função "inspirar e sensibilizar a sociedade".
Para Karine, sua maior conquista é saber que, além de transformar outras vidas, também conseguiu transformar a sua. "O que mais me empodera é ter o orgulho dos meus filhos. Eles sabem da minha história de vida e do meu processo de mudança. Nada me deixa mais feliz", conclui.
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