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“Crimes de Maio foram porcamente investigados”, diz defensor

Ataques completam dez anos hoje, sem que a atuação de policiais tenha sido suficientemente investigada

Policial Militar: quando a vítima era agente do Estado, 85% dos crimes foram esclarecidos; quando policiais eram suspeitos de execução, apenas 13% dos casos se resolveram. (Marcelo Camargo/ABr)
DR

Da Redação

Publicado em 12 de maio de 2016 às 07h19.

Uma das maiores angústias das famílias das vítimas dos Crimes de Maio, que deixaram 564 mortos no estado de São Paulo em maio de 2006, é a falta de investigação e julgamento e condenação de responsáveis pelos homicídios.

Hoje, os crimes completam dez anos com apenas dois policiais condenados.

Responsável por ingressar com ações judiciais pedindo a responsabilização do governo paulista por causa dos crimes, o defensor público Antonio José Maffezoli Leite, do Núcleo Especializado de Direitos Humanos, em São Vicente (SP), alguns inquéritos foram encerrados após três ou quatro meses de investigação.

De acordo com ele, é possível identificar falhas nas investigações, como falta de laudo e perícia das armas.

“Os casos foram porcamente investigados. Com alguma experiência na área criminal, você vê que várias coisas não foram feitas. Não tem laudo do local, os projéteis que foram recolhidos não foram periciados para saber de que arma eles saíram, os inquéritos não foram reunidos. Os casos são todos parecidos: uma moto, um carro preto e pessoas encapuzadas”, disse.

Na época, a Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo acompanhou 54 casos de autoria desconhecida, com 89 vítimas, e 48 casos de resistência seguida de morte com 79 vítimas.

“Foram raros os casos que deram algum resultado. Para não falar raros, tivemos quatro casos em que se pode falar que houve algum desfecho: dois em que houve situação já de sentença, mas não com trânsito em julgado porque está em recurso [um em que um policial foi condenado a 36 anos de reclusão e outro em que um policial foi condenado a seis anos de reclusão], um terceiro caso onde ainda não tivemos uma sentença e um quarto caso onde houve um desarquivamento a pedido da própria polícia no caso de Santos”, disse o ouvidor de polícia Julio Cesar Fernandes Neves, acrescentando que os demais casos foram arquivados.

Segundo Neves, os casos só podem ser desarquivados se novos indícios aparecerem ou uma nova denúncia.

“Quando existir alguém denunciando, algum esclarecimento que possa vir a ajudar no esclarecimento desses crimes que foram para o arquivo, vamos ao Ministério Público e pedir para o Procurador-Geral da Justiça para que seja designado um novo promotor público para desarquivar aquele caso. Precisamos que a população ajude a combater a letalidade [policial] denunciando os maus policiais”, disse.

Investigação falha

O ouvidor admitiu que há dificuldades de investigação quando as mortes são provocadas por policiais. “A própria polícia, por meio de colegas, vai lá e muda a cena do crime. Isso fica claro porque sempre tem uma testemunha falando que alguém passou lá, policiais passaram. Não dá para não falar que haja corporativismo, desde a hora da execução de uma chacina até uma investigação. É claro que quem investiga isso é a própria polícia e normalmente estão convivendo lá há anos, juntos. Por isso essas decisões de penalidades são ínfimas”.

Em alguns boletins de ocorrência da época a que a Agência Brasil teve acesso é relatada a falta de provas.

Por exemplo, o boletim sobre o caso de sete pessoas que foram baleadas na Rua Luiz Dalman, no Capão Redondo, na madrugada do dia 16 de maio de 2006, diz que “o local onde as vítimas foram encontradas trata-se de via pública e não há vestígios do delito, estando o mesmo prejudicado para a perícia” e “que os policiais militares não lograram arrolar testemunhas presenciais dos fatos nem informações sobre o ocorrido e autoria”.

O caso foi registrado como de autoria desconhecida. Na ocasião, todas as vítimas foram levadas com vida ao Hospital do Campo Limpo, mas quatro morreram: Renato Maciel Vieira (36 anos); David Shuindi Bernardo (25 anos); Mauricio Menezes (27 anos); e Marcos Alfredo Scassi (47 anos).

A falta de testemunhas ou de indícios do crime também consta no boletim de ocorrência que trata de três vítimas baleadas às 23h30 do dia 14 de maio, na Rua Francisco Lourenço Gomes Jr, em Santos.

De acordo com o documento, as vítimas foram “alvejadas por disparos de arma de fogo por indivíduos desconhecidos ocupando uma moto não identificada”. O policial que fez a ocorrência informou “que no local não foi encontrado nada”. Duas das vítimas morreram no local.

Para o defensor público, a investigação dos casos não pode ser tarefa das famílias.

“A legislação não prevê um recurso para as vítimas ou para interessados contra o arquivamento. O inquérito só pode ser reaberto quando houver uma prova nova. Como é que se vai conseguir uma prova nova se não há investigação? Várias vezes falaram isso para as mães: 'tragam uma prova nova'. Isso impulsiona as famílias a irem atrás, de investigarem, de se expor, ir a um determinado lugar, e isso é um absurdo”, disse.

Investigação foi mais eficiente para punir membros do PCC

O Estudo São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em maio de 2006, elaborado pela Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard e pela Justiça Global, aponta que as investigações policiais sobre as execuções ocorridas após os ataques do PCC foram “quase uniformemente arquivadas sem os devidos esclarecimentos, salvo nos casos envolvendo a morte de um agente público”.

De acordo com o estudo, quando os policiais ou agentes do Estado eram as vítimas dos crimes, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa esclareceu 85% dos casos, equivalente a 12 de um total de 14.

Mas quando houve a suspeita de participação de policiais nas execuções, apenas 13% dos casos foram elucidados (4 de 34).

“Eles não puniram os policiais porque as punições foram dadas para as famílias e para as mães que perderam seus filhos. A segurança pública do nosso país e do estado de São Paulo tem modelo de encarceramento em massa, o extermínio gritante e assustador e tortura, principalmente a psicológica. Enquanto tivermos esse modelo, não conseguiremos lavar nossas feridas”, disse Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio e mãe de Edson Rogério, gari morto durante os ataques.

Para o procurador de Justiça Criminal Márcio Sérgio Christino, membro do Conselho Superior do Ministério Público, as investigações para crimes cometidos por uma organização criminosa são conduzidas de forma diferente daqueles com possível participação de policiais.

“A investigação sobre uma organização criminosa é uma. Está se investigando um organismo que tem um chefe, um executor. Isso você rastreia, intercepta, prende, faz delação premiada. Esse é um tipo de investigação. Quando você fala das mortes, você vê essas mortes debitadas muito mais a iniciativas individuais, individualizadas, de um grupo de homens sem que se tenha uma ligação macro. Ou seja, todos os atentados foram praticados pela organização criminosa”, disse o procurador à Agência Brasil.

“Supondo que tenha sido a Polícia Militar: o que o PM Santana fez, não tem nenhuma ligação ou vínculo com o que o PM de Taubaté fez, com o que do Ipiranga fez, com o que o do centro fez porque eles não se comunicam e muito menos tem a mesma oportunidade de ação. É diferente um crime organizado, pega um ato e você desmembra em vários e diversos crimes individuais. [Nos demais casos] não se consegue nem dizer quantos foram esclarecidos ou quantos não porque não se consegue sequer fazer o vínculo”, disse.

Para o defensor público Antonio José Maffezoli Leite, as investigações não foram conduzidas da forma correta. “O que aconteceu naqueles 11 dias não é uma situação normal de violência urbana, algum assalto no farol que deu errado. Alguém tem que ser responsável por isso. Os ataques do PCC não eram porque eles foram cessados. Eles eram específicos, voltados para bombas em prédios públicos ou assassinatos de agentes públicos, seguranças de presídios ou policiais. O PCC não saiu atirando a esmo na cidade, não é nem prática do crime organizado”.

Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo negou, em nota, que as investigações tenham sido falhas.

“As mortes ocorridas em maio de 2006 foram investigadas pela Polícia Civil e pela Corregedoria da PM. Todas as ocorrências de morte foram apuradas, à época, com rigor, assim como as denúncias de eventuais homicídios que poderiam ter policiais como autores”, diz a nota.

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Hoje, os crimes completam dez anos com apenas dois policiais condenados.

Responsável por ingressar com ações judiciais pedindo a responsabilização do governo paulista por causa dos crimes, o defensor público Antonio José Maffezoli Leite, do Núcleo Especializado de Direitos Humanos, em São Vicente (SP), alguns inquéritos foram encerrados após três ou quatro meses de investigação.

De acordo com ele, é possível identificar falhas nas investigações, como falta de laudo e perícia das armas.

“Os casos foram porcamente investigados. Com alguma experiência na área criminal, você vê que várias coisas não foram feitas. Não tem laudo do local, os projéteis que foram recolhidos não foram periciados para saber de que arma eles saíram, os inquéritos não foram reunidos. Os casos são todos parecidos: uma moto, um carro preto e pessoas encapuzadas”, disse.

Na época, a Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo acompanhou 54 casos de autoria desconhecida, com 89 vítimas, e 48 casos de resistência seguida de morte com 79 vítimas.

“Foram raros os casos que deram algum resultado. Para não falar raros, tivemos quatro casos em que se pode falar que houve algum desfecho: dois em que houve situação já de sentença, mas não com trânsito em julgado porque está em recurso [um em que um policial foi condenado a 36 anos de reclusão e outro em que um policial foi condenado a seis anos de reclusão], um terceiro caso onde ainda não tivemos uma sentença e um quarto caso onde houve um desarquivamento a pedido da própria polícia no caso de Santos”, disse o ouvidor de polícia Julio Cesar Fernandes Neves, acrescentando que os demais casos foram arquivados.

Segundo Neves, os casos só podem ser desarquivados se novos indícios aparecerem ou uma nova denúncia.

“Quando existir alguém denunciando, algum esclarecimento que possa vir a ajudar no esclarecimento desses crimes que foram para o arquivo, vamos ao Ministério Público e pedir para o Procurador-Geral da Justiça para que seja designado um novo promotor público para desarquivar aquele caso. Precisamos que a população ajude a combater a letalidade [policial] denunciando os maus policiais”, disse.

Investigação falha

O ouvidor admitiu que há dificuldades de investigação quando as mortes são provocadas por policiais. “A própria polícia, por meio de colegas, vai lá e muda a cena do crime. Isso fica claro porque sempre tem uma testemunha falando que alguém passou lá, policiais passaram. Não dá para não falar que haja corporativismo, desde a hora da execução de uma chacina até uma investigação. É claro que quem investiga isso é a própria polícia e normalmente estão convivendo lá há anos, juntos. Por isso essas decisões de penalidades são ínfimas”.

Em alguns boletins de ocorrência da época a que a Agência Brasil teve acesso é relatada a falta de provas.

Por exemplo, o boletim sobre o caso de sete pessoas que foram baleadas na Rua Luiz Dalman, no Capão Redondo, na madrugada do dia 16 de maio de 2006, diz que “o local onde as vítimas foram encontradas trata-se de via pública e não há vestígios do delito, estando o mesmo prejudicado para a perícia” e “que os policiais militares não lograram arrolar testemunhas presenciais dos fatos nem informações sobre o ocorrido e autoria”.

O caso foi registrado como de autoria desconhecida. Na ocasião, todas as vítimas foram levadas com vida ao Hospital do Campo Limpo, mas quatro morreram: Renato Maciel Vieira (36 anos); David Shuindi Bernardo (25 anos); Mauricio Menezes (27 anos); e Marcos Alfredo Scassi (47 anos).

A falta de testemunhas ou de indícios do crime também consta no boletim de ocorrência que trata de três vítimas baleadas às 23h30 do dia 14 de maio, na Rua Francisco Lourenço Gomes Jr, em Santos.

De acordo com o documento, as vítimas foram “alvejadas por disparos de arma de fogo por indivíduos desconhecidos ocupando uma moto não identificada”. O policial que fez a ocorrência informou “que no local não foi encontrado nada”. Duas das vítimas morreram no local.

Para o defensor público, a investigação dos casos não pode ser tarefa das famílias.

“A legislação não prevê um recurso para as vítimas ou para interessados contra o arquivamento. O inquérito só pode ser reaberto quando houver uma prova nova. Como é que se vai conseguir uma prova nova se não há investigação? Várias vezes falaram isso para as mães: 'tragam uma prova nova'. Isso impulsiona as famílias a irem atrás, de investigarem, de se expor, ir a um determinado lugar, e isso é um absurdo”, disse.

Investigação foi mais eficiente para punir membros do PCC

O Estudo São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em maio de 2006, elaborado pela Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard e pela Justiça Global, aponta que as investigações policiais sobre as execuções ocorridas após os ataques do PCC foram “quase uniformemente arquivadas sem os devidos esclarecimentos, salvo nos casos envolvendo a morte de um agente público”.

De acordo com o estudo, quando os policiais ou agentes do Estado eram as vítimas dos crimes, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa esclareceu 85% dos casos, equivalente a 12 de um total de 14.

Mas quando houve a suspeita de participação de policiais nas execuções, apenas 13% dos casos foram elucidados (4 de 34).

“Eles não puniram os policiais porque as punições foram dadas para as famílias e para as mães que perderam seus filhos. A segurança pública do nosso país e do estado de São Paulo tem modelo de encarceramento em massa, o extermínio gritante e assustador e tortura, principalmente a psicológica. Enquanto tivermos esse modelo, não conseguiremos lavar nossas feridas”, disse Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio e mãe de Edson Rogério, gari morto durante os ataques.

Para o procurador de Justiça Criminal Márcio Sérgio Christino, membro do Conselho Superior do Ministério Público, as investigações para crimes cometidos por uma organização criminosa são conduzidas de forma diferente daqueles com possível participação de policiais.

“A investigação sobre uma organização criminosa é uma. Está se investigando um organismo que tem um chefe, um executor. Isso você rastreia, intercepta, prende, faz delação premiada. Esse é um tipo de investigação. Quando você fala das mortes, você vê essas mortes debitadas muito mais a iniciativas individuais, individualizadas, de um grupo de homens sem que se tenha uma ligação macro. Ou seja, todos os atentados foram praticados pela organização criminosa”, disse o procurador à Agência Brasil.

“Supondo que tenha sido a Polícia Militar: o que o PM Santana fez, não tem nenhuma ligação ou vínculo com o que o PM de Taubaté fez, com o que do Ipiranga fez, com o que o do centro fez porque eles não se comunicam e muito menos tem a mesma oportunidade de ação. É diferente um crime organizado, pega um ato e você desmembra em vários e diversos crimes individuais. [Nos demais casos] não se consegue nem dizer quantos foram esclarecidos ou quantos não porque não se consegue sequer fazer o vínculo”, disse.

Para o defensor público Antonio José Maffezoli Leite, as investigações não foram conduzidas da forma correta. “O que aconteceu naqueles 11 dias não é uma situação normal de violência urbana, algum assalto no farol que deu errado. Alguém tem que ser responsável por isso. Os ataques do PCC não eram porque eles foram cessados. Eles eram específicos, voltados para bombas em prédios públicos ou assassinatos de agentes públicos, seguranças de presídios ou policiais. O PCC não saiu atirando a esmo na cidade, não é nem prática do crime organizado”.

Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo negou, em nota, que as investigações tenham sido falhas.

“As mortes ocorridas em maio de 2006 foram investigadas pela Polícia Civil e pela Corregedoria da PM. Todas as ocorrências de morte foram apuradas, à época, com rigor, assim como as denúncias de eventuais homicídios que poderiam ter policiais como autores”, diz a nota.

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