Comitê do Sírio-Libanês não concorda com compra de vacinas pelo setor privado
Para os especialistas, isso representaria um comprometimento da lógica de uma campanha de vacinação
Estadão Conteúdo
Publicado em 30 de janeiro de 2021 às 08h03.
O Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês emitiu nesta sexta-feira, 29, parecer sobre a ética da compra privada de vacinas contra a covid-19.Para os especialistas, isso representaria um comprometimento da lógica de uma campanha de vacinação, que é o de proteger a população de maior risco para evitar o colapso do sistema de saúde.
A compra privada poderia significar, reforçam, o privilégio do individualismo, uma escolha "que não atinge seu maior benefício de saúde pública".
O documento de seis páginas lembra que a compra privada de vacinas está sendo ventilada no Brasil nas últimas semanas. Recentemente, veio a público a iniciativa de um grupo de empresários que objetivava adquirir doses da vacina de Oxford/AstraZeneca, empreitada que acabou não se concretizando. A AstraZeneca disse que não venderia a vacina para grupos privados, mas o próprio presidente Jair Bolsonaro vê o caminho como válido.
O comitê do Sírio-Libanês então se debruçou sobre o assunto com o objetivo de oferecer uma resposta à pergunta: é ético realizar a compra e distribuição privada de vacinas durante situação de pandemia e escassez de vacinas? A resposta enfática foi de que a alternativa não é condizente com os valores bioéticos. Essa interpretação é sustentada diante dos valores do Sistema Único de Saúde (SUS), dos benefícios para a saúde pública e do cenário socioeconômico brasileiro.
"A compra e distribuição de doses de vacina pela iniciativa privada, gerando a vacinação de indivíduos fora dos grupos prioritários que mais se beneficiam, fere os princípios fundamentais da equidade, da integralidade, da universalidade e da justiça distributiva, ferindo não só os próprios fundamentos do SUS, mas também a própria lógica que gera o benefício de uma campanha de vacinação", escreveu o comitê em seu relatório.
Os especialistas lembram que é o efeito decorrente da imunidade de rebanho conferida pela vacinação que leva à redução mais significativa da mortalidade da doença. Portanto, quanto maior for o porcentual de imunidade da população de maior risco, maior será o benefício da população, pontuam. A vacinação privada fará com que doses sejam ofertadas a quem tem privilégios econômicos, enquanto os de maior vulnerabilidade terão de permanecer aguardando sem saber quando a imunização ocorrerá.
"A falta de confiança de diversos setores privados no protagonismo do poder público para agir de forma eficaz e oportuna no acesso e distribuição das vacinas durante a pandemia cria, junto a uma sensação de insegurança, um risco generalizado de ações individualistas em detrimento de ações cooperativas que busquem prioritariamente o bem comum", destaca o comitê.
O relatório ressalta que, em um momento de escassez de vacina, oferecer doses para a população que terá maior benefício epidemiológico (idosos, por exemplo) deve se sobrepor ao individualismo imposto pelo poder econômico.
Consensos e programas governamentais nacionais e internacionais, lembra o documento, estabelecem como prioritária a vacinação para grupos populacionais com maior risco de morte, maior exposição profissional e maior vulnerabilidade social.
"Iniciativas desta natureza (vacinas privadas), neste cenário tão sensível como o atualmente vivenciado por nós, podem não só comprometer princípios, mas também acentuar ainda mais desigualdades e injustiças já excessivas hoje no Brasil", reforça.
Uma alternativa proposta é que eventuais compras privadas sejam integralmente doadas aos SUS. "Ações solidárias desta natureza, além do benefício tangível ao sistema de saúde e à população, inspiram uma sociedade a ser melhor e a buscar o bem comum", pontua o comitê.