Brasil

Carnaval: desfile de SP tem presidente virando jacaré e tom político

As escolas não têm admitido explicitamente que as representações são do presidente Jair Bolsonaro. A Gaviões até mesmo negou em nota publicada dias atrás

Mancha Verde: escolas de SP desfilaram após dois anos paradas. (Nelson Almeida/Getty Images)

Mancha Verde: escolas de SP desfilaram após dois anos paradas. (Nelson Almeida/Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 24 de abril de 2022 às 16h29.

O segundo dia de desfiles do grupo especial do carnaval de São Paulo, que começou no fim da noite de sábado, 23, e terminou na manhã de domingo, 24, apresentou ao público desfiles de tom político, reafirmou a negritude por meio de discursos antiracistas e, mais uma vez, trouxe homenagens às escolas e ao carnaval paulista.

Duas representações de políticos, supostamente de presidentes, chamaram a atenção no Sambódromo do Anhembi. Na Gaviões da Fiel, que desfilou o enredo “Basta!”, um homem com faixa que parecia ser a presidencial andava em meio a militares e policiais. Já a Rosas de Ouro, no carro "Vacina salva", o último do desfile sobre curas, apresentou a representação de um presidente assustado que virava jacaré após ser vacinado por uma enfermeira.

Apesar das duas referências, a reportagem do Estadão não identificou manifestações políticas explícitas durante o desfile seja em faixas nas arquibancadas, seja em gritos dos espectadores. As escolas não têm admitido explicitamente que as representações são do presidente Jair Bolsonaro. A Gaviões até mesmo negou em nota publicada dias atrás.

Vai-Vai volta com ave sagrada africana

"Vai passar um furacão", anunciou a escola pouco antes de voltar a desfilar pelo grupo especial após um ano de carnaval no Acesso I, pouco antes das 23 horas deste sábado, 23. "Retornando pro local que nunca deveríamos ter saído", destacou o presidente da agremiação, Clarício, no carro de som.

No aquecimento do desfile, a escola lembrou de quem se foi durante a pandemia. "Comunidade, mostre tudo o que fizeram nesses ensaios", foi dito no microfone. "Vamos mostrar que sempre fomos especiais."

Mestre Serginho, à frente da bateria da escola há décadas, resumiu ao Estadão antes do desfile: "Vamos dar um show". Ao lado dele, também desfilou o maestro João Carlos Martins, que regeu os ritmistas quando foi homenageado, em 2012, e agora retorna. "Eu sou Vai-Vai", comentou à reportagem.

No entorno, equipes de apoio e quem desfilava vibravam, cantavam sambavam, batiam palmas e registravam o retorno histórico antes mesmo de cruzar a passarela do samba. O Vai-Vai desfilou o enredo “Sankofa!”, inspirado em uma ave sagrada africana, relacionada ao ensinamento de que “nunca é tarde para voltar atrás e buscar o que ficou perdido”.

A proposta conversava com a trajetória da escola, nascida em 1930, como cordão, e uma das mais tradicionais e maiores vencedoras do carnaval paulistano. Na comissão de frente, seis mulheres negras passavam dentro de estruturas como grandes saias pretas com dourado e utilizavam alegorias de cabeça que remetiam a uma árvore antiga, simbolizando as origens africanas.

Em parte da coreografia, davam a luz a bebês. À frente, bailarinos com roupas metálicas surgiam debaixo das estruturas, com roupas douradas e prateadas. Na parte do samba "a tradição que resistiu", erguiam os punhos.

Logo após, as baianas desfilaram com as integrantes mais veteranas nas primeiras fileiras, com uma faixa no peito de Velha Guarda. O mestre-sala e a porta-bandeira vestiam trajes que remetiam às origens africanas do samba.

O carro abre-alas trazia uma Aranha antropomorfa articulada, enquanto as laterais mostravam zebras e outras referências africanas, incluindo uma divindade negra com quatro braços e quatro pernas. Logo atrás, uma ala exibia o símbolo sanfoka, de uma ave que se volta à própria cauda.

O samba-enredo é de autoria do cantor Xande de Pilares e de Rodrigo Peu, Claudio Russo, Junior Gigante, Jairo Limozine, Silas Augusto, Zé Paulo Sierra e Bruno Giannelli. A autoria é do carnavalesco Chico Spinoza. O samba fez alusões à trajetória da própria escola, citando nomes históricos como o sambista Geraldo Filme e Dona Olívia.

No segundo carro, parte do forro era de sacos de lixo em meio a esculturas douradas de referências africanas. Nas alas seguintes o preto, o dourado e estampas regionais predominaram, assim como os carros alegóricos mais altos que as torres dos jurados e as arquibancadas. Uma chuva de papel picado recebeu a ala das crianças, enquanto a memória de baluartes da escola foi lembrada por um casal de mestre-sala e porta-bandeira e na tradicional coroa da escola, que estampa fotos de ícones do carnaval.

Gaviões da Fiel dá um ‘Basta!’ na avenida

Em seguida, por volta da 0h40, a Gaviões da Fiel desfilou o enredo “Basta!”, sobre desigualdades sociais. A escola agitou as arquibancadas, repletas de torcedores do Corinthians, que gritaram com o anúncio do desfile. Fogos de artifício foram utilizados no entorno do sambódromo por torcedores e, dentro, como havia ocorrido com a Mancha Verde, sinalizadores espalharam fumaça com as cores da escola. Nas camisetas, equipes de apoio traziam a palavra "opressão" antes do nome do enredo, seguida da expressão "liberdade já".

Na comissão de frente, gaviões totalmente pretos prendiam criaturas de múltiplos rostos atrás de grades - uma referência a galhos de árvore - e simulavam disputas. No abre-alas, punhos negros fechados e referências africanas, além do tradicional gavião, com olhos luminosos e junto ao escudo do Corinthians. Como a Colorado do Brás, a escola também trouxe representações de pessoas em situação de rua.

No segundo carro, uma grande escultura de uma criança negra desnutrida segurava um prato vazio. Na lateral, barracos de uma favela, onde eram representados moradores e a imposição da violência contra a população por um homem armado. Atrás, uma grande escultura da mulher que simboliza a justiça, com os olhos vendados.

Uma dos momentos mais comentados nos últimos dias foi apresentado na avenida de maneira mais discreta. Em meio a uma ala com policiais, militares e fantoches, um homem de terno com faixa semelhante a de um presidente, acompanhado de uma mulher, desfilava. Nos últimos dias, chegou-se a discutir se seria uma referência ao presidente Jair Bolsonaro após uma entrevista do intérprete do personagem, o que foi negado pela escola.

Atrás, veio o casal de mestre-sala e porta-bandeira de preto e prata, com referências à bandeira brasileira. Após o terceiro carro, uma ala trazia desfilantes com estandartes que mostravam ícones da defesa da democracia, como o jogador Sócrates, Gandhi, Nelson Mandela e Frida Kahlo. Na sequência, crianças vestidas de estudantes com lápis gigantes remetiam às novas gerações e mostravam o papel da educação para o futuro do País.

A ala das baianas veio com pombos da paz.

Já o último carro trazia imagens de outros ícones da luta contra a desigualdade social, como o cacique Raoni, Tereza de Benguela e Paulo Freire. No topo, um indígena com adereço de gavião na cabeça. Ao lado, desfilantes com cabeças de gavião seguravam cartazes por justiça e prosperidade. A atriz Sabrina Sato sambava à frente da bateria.

O samba-enredo da Gaviões contou com mais de 20 autores, criado a partir da junção das propostas de dois grupos. “Vidas negras nos importam/ O grito da mulher não vão calar/ Meu gavião chegou o dia da revolução/ Onde a democracia desse meu Brasil/ Faça o amor cantar mais alto que o fuzil", diz um trecho. Outra parte que chamou a atenção foi a que falava na "pátria, mãe hostil".

Clementina de Jesus foi a aposta da Mocidade

Depois, pouco antes da 1h40, foi a vez da Mocidade Alegre, escola fundada em 1967 e que ficou em terceiro lugar no último carnaval. O enredo se chamou “Quelémentina, cadê você?”, em homenagem à cantora Clementina de Jesus, do carnavalesco Edson Pereira.

Na comissão de frente, bailarinos estavam fixos a bonecos, criando a simulação de que eram três andando em conjunto. Atrás, um tripé, trazia uma fonte e uma foto do centro histórico de Valença (RJ), cidade natal da cantora. Com um movimento, a peça virava o manto e a coroa de Nossa Senhora da Glória, de devoção da artista.

O abre-alas trouxe uma igreja colonial colorida, com alegorias de anjos gigantes. Ao longo do desfile, um integrante segurava um cartaz na lateral da pista que dizia: "Atenção. O desfile começa aqui. Nossa missão é cantar e evoluir!!! Precisamos de vocês."

As baianas vieram com cestos de frutas e legumes na cabeça, sobre uma saia de ‘fogo’. Mais atrás, um casal de mestre-sala e porta-bandeira vestia-se ele de pescador com chapéu e rede e ela com peixes na saia.

Em outro carro, havia a representação de um grande disco de vinil de Clementina, junto a um jukebox e representações de apresentações da cantora. Na parte, a "Mocidade se ajoelha aos seus pés", os passistas se abaixavam no chão.

O samba é de autoria de Márcio André, Fabiano Sorriso, China da Morada, Marquinhos, Biel, Lucas Donato, Daniel Katar, Bello e Marcelo Valência. “É lindo ver a mulher negra lutar! Quem te vê sorrir, não há de te ver chorar! Rainha Quelé, vem ser coroada! Na minha, na sua, na nossa morada!”, diz um trecho.

Na madrugada, Águia de Ouro fala de diversidade étnica

Na sequência, a Águia de Ouro desfilou pelo sambódromo, a partir de 2h45. O enredo foi voltado à exaltação da diversidade étnica e cultural brasileira e contra a intolerância religiosa, com Sidnei França de carnavalesco. Fundada em 1976, a escola é a atual campeã do carnaval paulistano.

A comissão de frente trazia bailarinos com roupas que remetiam a religiões de matriz africana. Na sequência, uma ala apresentava trajes semelhantes aos de orixás incorporados do candomblé.

Em grande parte das alas, passistas estavam com o rosto parcialmente coberto, como em cerimônias do candomblé. Durante o desfile, integrantes das equipes de apoio da escola (que transitam nas laterais e entre as alas) estavam com chapéus e lenços das mesmas referências religiosas. A águia da escola veio na frente do carro abre-alas, toda branca, batia as asas e movia a cabeça. Abaixo, bustos de pessoas negras com plantas e elementos de religiões de matriz africana.

No carro seguinte, participantes do desfile abriam sombrinhas no formato de flores. Uma das alas lembrou personalidades negras brasileiras, como Zezé Motta, Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo e Carolina de Jesus. Outra, trazia cartazes com frases envolvendo a letra contra o racismo, como "Vidas negras importam".

O samba-enredo foi batizado de “Afoxé de Oxalá - No ‘cortejo de babá’, um canto de luz em tempo de trevas”. “Awurê, Awurê, menino… O respeito há de ter quem semeia intolerância perde a paz no coração”, cantava um trecho.

Barroca e o malandro-boêmio e entidade Zé Pilantra

Por volta das 4h10 foi a vez da Barroca Zona Sul, que abordou a figura de Zé Pilintra, o malandro-boêmio considerado entidade pela umbanda. Ele apareceu interpretado por bailarinos já na comissão de frente, com os característicos terno e calça brancos gravata, sapato e chapéu de malandro; E também em uma escultura no topo de um tripé no formato de uma casinha vermelha. Entre eles, em destaque, o coreógrafo e dançarino Carlinhos de Jesus, que fazia saudações ao Zé Pilintra e jogava rosas vermelhas aos espectadores.

A escola apresentou o carro abre-alas predominantemente em vermelho, com o seu símbolo (um menino tocando um pandeiro) em três formatos, incluindo o escudo, a girar, uma carranca e garrafas de cachaça com o rótulo marcado como "Zé". Atrás, uma grande escultura de Zé Pilintra sentado em uma cadeira. Na sequência, o mestre-sala vinha com o chapéu de malandro, típico da entidade.

Um dos casais da escola trouxe o mestre-sala como Zé Carioca, personagem de estilo semelhante ao de Zé Pilintra. Já o carro seguinte tinha um grande cassino, com roleta, dados e os arcos da Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro. Em outra ala, pela terceira vez no grupo especial paulistano, foram representadas pessoas em situação de rua.

O fundador da umbanda no Brasil, Zélio Fernandino de Moraes, foi retratado em uma ala inteira e também em um carro alegórico sobre a religião. O último carro trazia uma favela colorida e uma escultura de Cristo Redentor. A escola atravessou a pista no tempo máximo (65 minutos), chegando a criar certa tensão: integrantes da dispersão estavam alertas para que o último carro e a bateria acelerassem no fim.

Rosas de Ouro chega pela manhã com a cura

A penúltima escola do grupo especial a desfilar foi a Rosas de Ouro, às 5h20. Fundada em 1971, ela ficou em quinto no carnaval passado. O tema escolhido foram os rituais e caminhos para a cura dos males - pelas mãos, pela alma ou pela mente. Paulo Menezes foi o carnavalesco.

Batizado de “Sanitatem”, o samba-enredo diz em um trecho: "Faço minhas preces ao senhor/ Que a ciência seja a fonte do saber/ A medicina, esperança pra salvar/ O povo cantando em oração/ A alma e o brilho no olhar/ Entenda que o samba também tem o dom de curar".

Na comissão de frente, um dos bailarinos cuspia fogo. O primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira trazia pombos da paz na roupa, nas cores da escola (branco e rosa) e dourado. Como na Águia de Ouro, uma ala trazia pessoas com vestes e pintura que remetiam à iniciação kétu, na religião, com a cabeça careca, pinturas e roupa brancas, plantas e espada de São Jorge, referência também presente no abre-alas.

Em outro carro, o tema foi o Egito Antigo, com hieróglifos, deuses antropomorfos e outros elementos associados ao período e ao local. As curas milagrosas, em três dias, foram lembradas em uma das últimas alas.

Em um tripé, o manto de uma Nossa Senhora do Círio de Nazaré era coberto de papéis com pedidos. No carro seguinte: um Jesus Cristo negro perecia na cruz. Já o último carro trazia a cura pela ciência, com vidros de doses com a frase "vacina salva". Na frente, um homem com uma faixa que simulava a presidencial virava jacaré ao ser vacinado. Na última ala, desfilantes seguravam bandeiras das escolas do grupo especial paulistano. Na noite anterior, outras escolas, como a Dragões da Real e a Acadêmicos do Tucuruvi), também homenagearam outras agremiações.

No fim, Império cantou o poder das comunicações

A escola Império de Casa Verde entrou na pista do sambódromo às 6h30, debaixo de céu azul. O desfile viajou dos “primórdios da humanidade” até os influenciadores digitais para falar sobre “o poder das comunicações”, com o influenciador digital Carlinhos Maia como homenageado. Os carnavalescos são Mauro Quintaes e Leandro Barboza.

O carro abre-alas trouxe um grande tigre, que abria a boca e mexia a cabeça, e referências à era do gelo. As alas seguintes trouxeram referências a diferentes momentos da comunicação, chegando a personalidades do meio, como Chacrinha, retratado em um tripé antecedido de passistas fantasiadas de chacretes. No último setor, celulares e o influenciador Carlinhos Maia como destaque e homenageado do último carro, com telões, que exibiam vídeos do influencer e um QR code para receber mensagens.

O samba-enredo se chamava "O poder da comunicação. Império, o mensageiro das emoções…”, em que um dos trechos cantava: "Grafias linhas geniais, vias digitais/ Abro a janela pra grande viagem/ O mundo na palma da mão/ Vila Primavera, influência maior, se avexe não!". A autoria da composição é de André Diniz Marcelo Casa Nossa, Claudio Russo, Darlan Alves, Samir Trindade Diego Nicolau e Fabiano Sorriso.

Acompanhe tudo sobre:Carnaval

Mais de Brasil

Rio usa drone para monitorar Réveillon, identificar foragidos e flagrar crimes na cidade

Queda no desemprego em 2024 é consistente, diz coordenadora do IBGE

Processo de extradição de Oswaldo Eustáquio avança na Espanha

Rodovias concedidas em São Paulo devem receber 3,8 milhões de veículos