O posicionamento foi externado em julgamento realizado no plenário virtual da corte máxima (Jane de Araújo/Agência Senado)
Estadão Conteúdo
Publicado em 10 de outubro de 2022 às 18h19.
"A inação estatal no combate ao feminicídio põe o Poder Público em patamar equivalente, na conclusão dos delitos, ao do agente da violência". Esse foi o alerta feito pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, ao defender que o governo Jair Bolsonaro restabeleça indicadores de monitoramento de feminicídio e de mortes por intervenção de agentes de segurança pública no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.
Para a ministra, agregar ambas categorias no grupo 'mortes violentas', como em Plano editado pelo governo federal em setembro de 2021, 'invisibiliza a apuração e a adoção de providência contra dois dos mais graves problemas enfrentados pela sociedade brasileira'.
O posicionamento foi externado em julgamento realizado no plenário virtual da corte máxima. A análise do caso teve início na sexta-feira, 7, e tem previsão de término na próxima segunda, 17. Os ministros avaliam os argumentos do PSB, que questionou o decreto presidencial que retirou os indicadores de monitoramento de feminicídio e mortes por intervenção de agentes de segurança pública do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.
Até o momento, só mais um voto foi depositado — o do ministro Alexandre de Moraes, acompanhando o entendimento da relatora. Cármen Lúcia viu 'retrocesso' quanto à 'necessária e especial atenção dos temas relativos à violência de gênero e da desproporcionalidade/ilicitude frequente na atuação de agentes de segurança pública' e defendeu que os indicadores sejam restabelecidos em até 120 dias.
"Para que seja revertido o quadro de proteção deficiente consequente da omissão existente no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social de 2021, é necessário dar ao feminicídio e às mortes decorrentes de intervenção de agentes de segurança pública o mesmo tratamento conferido aos outros crimes disciplinados no plano, incluindo-se indicadores de acompanhamento específicos para essas duas categorias", ponderou a ministra.
Em voto de 37 páginas, Cármen Lúcia destacou que o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social editado por Bolsonaro, em substituição a um documento elaborado em 2018, excluiu do primeiro ciclo de implantação (biênio 2021 a 2023) medidas direcionadas ao acompanhamento e redução de feminicídios e mortes decorrentes de intervenções de segurança. Segundo a ministra, somente com a elaboração de objetivos, metas e ações estratégicas específicas sobre tais temas — como no plano editado no governo Temer — 'se daria cumprimento integral à definição de políticas públicas'.
No documento editado pelo governo Jair Bolsonaro, os feminicídios passaram a ser incluídos no grupo 'mortes violentas', 'inviabilizando-se a classificação específica dos casos para atendimento eficiente e eficaz da atuação estatal voltada ao cumprimento dos objetivos estatais constitucionalmente obrigatórios', segundo Cármen Lúcia. Já as mortes por intervenção de agentes de segurança pública foram incluídas no indicador 'homicídio'.
A relatora entendeu que o Plano Nacional de Segurança Pública II 'retrocede' em relação ao disposto no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social instituído em 2018 , 'no sentido da necessária e especial atenção dos temas relativos à violência de gênero e da desproporcionalidade/ilicitude frequente na atuação de agentes de segurança pública'.
A substituição representa 'em parte, retrocesso social em matéria de direitos fundamentais, notadamente aos direitos à vida e à segurança pública, incorrendo, também, em proteção deficiente quanto a esses direitos', avaliou Cármen Lúcia.
"Os dados mencionados pelo autor, constantes no 15° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, sobre as taxas de feminicídios e mortes decorrentes de intervenções policiais no ano de 2020 retrocedem, em termos de eficácia constitucional possibilitada pela definição normativa de comportamentos e instrumentos do Poder Público, o princípio da plena eficiência estatal, possibilitando o desatendimento dos princípios da dignidade da vida e do dever da sociedade e do Estado de promover a segurança pública", escreveu a ministra em seu voto.
Com relação ao feminicídio, Cármen Lúcia alertou que ao 'invisibilizar' a tipificação no grupo de 'mortes violentas' e traçar metas para redução de 'mortes violentas de mulheres', o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 'retrocede em comparação ao que se conquistou para mais eficiente combate à violência doméstica, a todas as formas de violência contra a mulher, ao respeito à dignidade da vida, à vulnerabilidade imposta por preconceito e discriminação às mulheres, na medida em que se desconsidera, ainda que justificadamente, as peculiaridades da violência de gênero'.
A magistrada ainda destacou que a pandemia 'patenteou fator potencializador do risco de feminicídios', lembrando que o 16° Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostrou que 81,7% dos feminicídios são cometidos por companheiro ou ex. Ainda de acordo com Cármen, o 'mesmo gravíssimo cenário' ficou demonstrado quanto ao 'expressivo' número de mortes decorrentes de intervenções de agentes de segurança pública, o que, na avaliação da ministra 'configura fundamento suficiente a justificar a necessidade de restabelecimento da ação estratégica' no plano de Segurança anterior ao governo Jair Bolsonaro.
"Pelo quadro demonstrado de retrocesso social pela substituição do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social de 2018 pelo de 2021 e pela proteção insuficiente diante da omissão do Poder Executivo na inclusão de indicadores específicos para acompanhamento de feminicídios e mortes decorrentes da intervenção policial, tem-se patenteada a necessidade de se restabelecer o modelo de definição das ações estratégicas referente ao feminicídio e às mortes decorrentes da intervenção de agentes de segurança pública prevista no Decreto presidencial n. 9.630/2018", ressaltou.
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