As mulheres são descartadas da política, dizem autoras de livro
As autoras de "Mulheres e Poder: Histórias, Ideias e Indicadores", apontam que as mulheres são 52% do eleitorado, mas apenas 10% das eleitas
Da Redação
Publicado em 22 de março de 2018 às 12h28.
Última atualização em 22 de março de 2018 às 12h56.
O Brasil é o pior país da América Latina em representação feminina na política, com mulheres em apenas 10% dos cargos eleitos nos legislativos e prefeituras do país, segundo o livro “Mulheres e Poder: Histórias, Ideias e Indicadores”, lançado na última segunda-feira 19 pela editora da Faculdade Getúlio Vargas (FGV).
O livro começou a nascer em 2016, quando a economista e professora da Universidade Federal Fluminense, Hildete Pereira de Melo, e a escritora e mestre em ciência política Débora Thomé montaram um curso para mais de 900 mulheres que pretendiam se candidatar aos cargos de vereadora e prefeita, financiado pela Secretaria de Mulheres.
Menos de uma semana antes do lançamento da publicação, uma dessas poucas mulheres que conquistaram um cargo no legislativo municipal, a vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) foi assassinada no centro do Rio de Janeiro.
Ela foi a única mulher declarada negra a ser eleita vereadora no Rio, sendo a quinta mais votada na cidade. Além dela, outras seis mulheres foram eleitas no pleito de 2016, num total de 51 vereadores (menos de 14%). Apenas mais uma, Tânia Bastos (PRB), é autodeclarada parda.
No âmbito nacional, Marielle era uma das 32 mulheres negras eleitas vereadoras nas capitais brasileiras nas eleições municipais de 2016, segundo um levantamento da BBC. O número representa apenas 3,9% de um total de 811 vereadores eleitos nas capitais.
EXAME Hoje conversou separadamente, por telefone, com as autoras sobre o cenário de sub-representação das mulheres na política e em outras esferas de poder no Brasil. Abaixo, a entrevista editada com as respostas de ambas autoras.
Na introdução do livro, vocês escrevem que “encontrar as brechas de gênero que mantêm as mulheres longe das esferas de poder é um passo fundamental para começar a mudança”. Por que precisa mudar? O Brasil precisa de mais mulheres em posição de poder?
Hildete: Sim. Precisamos mudar porque temos 52% da população composta por mulheres, que não têm voz nas definições da política, economia e sociedade como um todo. As mulheres estão e estiveram, por muito tempo, insatisfeitas com a condução masculina, dos homens, dos rumos da sociedade. É por isso que estamos brigando e, cada vez mais, botando a boca no trombone.
Débora: O Brasil é hoje meu tema de tese de doutorado. Eu estou tentando entender porque somos o pior país da América Latina em termos de representação política das mulheres. O eleitorado feminino é 52%, mas as mulheres são só 10% das eleitas, tanto nas prefeituras, quanto nos legislativos. Nos ministérios, então, há menos mulheres ainda. Esses 10% também se refletem em postos de comando nas empresas. Quando metade de uma população não está sendo representada, apesar de as mulheres hoje serem mais educadas que os homens, temos um déficit democrático, que é quando um grupo muito grande não possui representação e acaba sendo representado por outros. Eu não tenho uma visão essencialista -relacionada à essência, então de que ter mulheres é importante porque a personalidade da mulher é assim ou assado. Estamos alijando as mulheres dos mecanismos de decisão, é um teto de vidro.
O livro aborda a luta e a situação atual das mulheres em várias esferas: política, demográfica, educacional, laboral. Em qual dessas esferas há maior desigualdade entre homens e mulheres?
Débora: Eu diria que são três principais: a política, o setor privado e a comunicação, que ajuda justamente a circular ideias, opiniões e mudar paradigmas. Hollywood, por exemplo, ainda é feita por homens. Eu fiz uma pesquisa que mostrou que quem dá opinião nos jornais no Brasil, críticos de cinema, gastronomia, colunistas, etc, em torno de 75% é homem.
Hildete: Acho que a maior desigualdade está no fato de as mulheres estarem fora de qualquer posto de decisão do país. A desigualdade de rendimentos é importante, lógico, já que ainda ganhamos cerca de 30% a menos do que os homens, apesar de já sermos mais que têm ensino superior completo, mais mestras, mais doutoras. Mas isso não nos fez galgar postos de comando. É esse famoso teto do Brasil. Estamos muito aquém do que já foi obtido em outros países, só temos 10% de mulheres no legislativo. Há uma barreira que não permite que o nosso caminhar avance.
Que fatores explicam essa barreira de 10% que vocês duas mencionam?
Hildete: São múltiplos, não existe só uma causa. Temos que avançar mais na pesquisa para entender melhor o porquê de o patriarcado aqui ser tão forte. Por que nos contentamos em aumentar nossa participação no mercado de trabalho, ter mais autonomia econômica, e não política? Ao longo de todo o século 20, as mulheres eram 20% de todo o mercado de trabalho, inclusive com queda, na década de 1930, com o aumento da industrialização. Não é a toa que a maior ocupação das mulheres era de empregada doméstica até 2013, quando isso mudou e passou para comerciaria, funcionárias públicas. Isso já mostra o ranço de o Brasil ter uma marca de tanta desigualdade. Provavelmente o tempo da escravidão tenha colocado o Brasil numa segregação econômica tão violenta que amordaçou as mulheres, mesmo aquelas da elite.
Débora: Não sei. Estou tentando entender isso com a minha pesquisa na Universidade de Columbia [nos Estados Unidos]. Existem algumas variáveis que favorecem ter mais mulheres no poder: ter muitos partidos, ter voto proporcional e ter cotas. O Brasil tem tudo isso. Então, a gente não consegue entender o porquê de tão baixa representatividade. Temos um problema, que não é só nosso, que é a divisão sexual do trabalho. No Brasil, a mulher gasta, em média, quatro vezes mais tempo com o trabalho dentro de casa (seja limpando, gerenciando, com a família…) do que um homem. O que significa que o trabalho doméstico não pago toma muito mais horas do trabalho das mulheres, horas que elas poderiam estar gastando lutando por uma promoção no trabalho, por exemplo. Quem vai sair mais cedo do trabalho para buscar as crianças na escola? A mulher. No Brasil isso ainda é muito forte. Eu estava em uma palestra nos Estados Unidos e eles falavam sobre como lá isso vem mudando e o homem já não é mais tão mal visto se sair do trabalho para cuidar das crianças. Aqui, ele ainda será muito mal visto, será considerado submisso, etc. Além disso, as mulheres trabalham, em média, menos horas que os homens, em trabalho remunerado. Mas são muito mais punidas por essas horas a menos que os homens em termos de salário. As horas que elas trabalham a menos custam mais caro na hora de receber do que as horas que os homens trabalham a menos. Dados de opinião pública de uma pesquisa que vi apontam, por exemplo, que 30% dos entrevistados acreditavam que é melhor ter um homem como presidente de uma empresa do que uma mulher, a maior parte discorda, mas 30% ainda acham que homens são melhores líderes. Então, temos também uma questão dos esteriótipos que estamos reproduzindo.
Isso se reflete também na política?
Débora: Sim, essa mesma pesquisa mostra algo análogo na esfera da política. E há outros fatores. Os caciques dos partidos são todos homens. Quando todas as lideranças são homens, a mulher não consegue crescer no partido. A minirreforma eleitoral dava 15% de investimento obrigatório dos partidos nas campanhas de mulheres, não é nada. Conseguimos mudar e agora vai ter que ser no mínimo 30%. Além disso, a mulher é muitas vezes excluídas de esferas informais de tomada de decisão. No Iêmen, por exemplo, os políticos fazem decisões políticas mascando uma casca, o que é uma tradição muito mais masculina do que feminina no país. No nosso caso, é o ir jogar tênis em Brasília, é o uísque depois da reunião. Nessas horas se resolvem muitas alianças e as mulheres não fazem parte desses encontros informais. Temos que pensar em mecanismos institucionais que curem isso. E isso não serve só para a política, o mercado financeiro também é um ambiente altamente machista, sexista e masculino. As mulheres entram nesse ambiente e precisam conviver com pornografia, piadas, etc. Se você não tem regras claras, é muito difícil para as mulheres se manterem nesses ambientes.
O que precisamos fazer para mudar esse quadro? Há soluções?
Hildete: A solução é que as mulheres entendam e venham para as ruas, entrem nos partidos políticos, comecem a exigir a participação. A lei de cotas nos partidos é da minha geração, mas acho que nós cometemos um erro. Aceitamos cota para se candidatar. Mas tínhamos que botar a cota nos eleitos. Por que nos enganamos? Porque não tínhamos exemplos, nenhum exemplo. Hoje, tem a cota para número de candidatos. O partido distribui os recursos como quer, as candidatas mulheres são normalmente laranjas e isso não se reverte em mulheres eleitas.
Débora: Na política, a cota tem que ser de entrada, e não de saída, ou seja: 30% do parlamento tem que ser de mulheres, no mínimo (e não 30% das candidatas). E os partidos que se virem. As empresas têm que estar conscientes de que a promoção não pode ser apenas dos homens, é preciso regras claras para a promoção de mulheres. Na hora do recrutamento, há estratégias como o currículo cego. Outra coisa seria estipular licença paternidade como licença maternidade. Domesticamente, incentivar situações que dividam o trabalho, o homem precisa partilhar o cuidado das crianças. O governo pode tentar algumas estratégias, como programas de incentivos nas exatas, como já existem. E ter uma mudança de paradigma, não cabe mais no mundo esse déficit de desigualdade. As pessoas não estão acostumadas a ter mulheres no poder, então, todo mundo, inclusive as mulheres, é mais exigente com as mulheres do com os homens ao exercer as mesmas funções. As mulheres precisam ser honestas, competentes, gentis e ter mil doutorados, precisam se provar muito mais que os homens.
O livro de vocês foi lançado, numa coincidência triste, num momento de grande comoção nacional pelo assassinato da vereadora Marielle, que dedicava seu mandato à luta pelos direitos das mulheres, principalmente das mulheres negras. Que outras Marielles existiram na história do Brasil?
Hildete: Eu diria que boa parte das Marielles são anônimas. Muitas foram dizimadas ao longo da história do Brasil, começando com as mulheres indígenas, na Colônia, sobre as quais há pouquíssimos registros na história e que foram trucidadas ou obrigadas a mudar completamente seu modo de vida. Outra Marielle, por exemplo, foi a Marli [Marli Pereira Soares], do subúrbio carioca, que no começo dos anos 1980, sobreviveu a uma chacina e acusou os policias do crime, denunciou o aparato do Estado. A própria Marielle, que era oriunda da Maré, era uma esperança enorme. A comoção em torno dela é grande, porque ela juntava todos os atributos: mulher, negra e vitoriosa. Ela venceu, pulou todas as armadilhas armadas para pessoas que nasceram em comunidades de baixa renda. Eu a conheci pessoalmente e ela era uma grande estrela que e acendia de esperança para todos, não só para as mulheres. Mas a História não tem muitas dela não, porque a História é escrita sempre pelo vencedor, que não tem nenhuma compaixão com os vencidos e nem os retrata. Antes do século 19, quando começamos a ter mais registros, só são retratadas as mulheres que estavam no poder, como Maria I, Carlota Joaquina, a princesa Isabel, Leopoldina. Aeducação superior era vedada para mulheres, no mundo e aqui. No Brasil, a faculdade de direito, de medicina e engenharia, as famosas profissões imperiais, todas foram arrombadas pelas nossas trisavós. Só vamos poder entrar no começo do século 20. Quando a República chegou deu muita esperança para as mulheres letradas de que teriam direito ao voto. Logo depois da guerra explodiu o movimento feminista com Bertha Luz, uma jovem bióloga que tinha estudado na Europa, e aí já havia uma camada de mulheres alfabetizadas, a grande maioria branca, mas que vai se levantar pra disputar a cidadania, o que vai levar muito tempo. Mulheres como Gironda Mesquita mantinham uma pressão enorme na Câmara Federal pelo voto feminino. Só com a revolução de 1930 que o Getúlio [Vargas] vai se render ao crescimento da força do debate promovido pelas mulheres. Eu pesquisei essas questões, nos tínhamos praticamente em todos estados a associação brasileira pelo progresso feminino. Mesmo no meio sindical, tínhamos figuras como a Almerinda Gama (que vai ser constituinte na Constituição de 1933), que era uma mulher negra, alfabetizada do sindicato das telegrafistas que vai votar junto com a Carlota de Queiroz, que era branca e foi primeira deputada que o Brasil teve.
Débora: Eu citaria a Margarida [Maria Alves Soares], que deu nome à Marchas das Margaridas. Ela era uma líder agrária da Paraíba e foi executada a mando de latifundiários. Foi uma líder bem importante. Outra que tinha uma postura política foi Dinalva [Oliveira dos Santos], que era uma líder da Guerrilha do Araguaia.