A eleição deve ter cotas para negros? Quatro pontos sobre o debate no STF
Supremo Tribunal Federal vai decidir se partidos devem distribuir proporcionalmente recursos a candidatos negros já nas eleições deste ano
Carolina Riveira
Publicado em 26 de setembro de 2020 às 08h00.
Última atualização em 27 de setembro de 2020 às 10h17.
Terminou neste sábado, 26, o prazo para partidos finalizarem seus registros de candidaturas para as eleições municipais . E dentre todos os motivos que devem tornar este pleito diferente dos anteriores -- do coronavírus ao fim das coligações --, um deles é a possível mudança no financiamento de campanha para candidatos pretos e pardos.
O debate ganhou espaço nas últimas semanas depois que o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal ( STF ), concedeu liminar confirmando que os partidos devem, já neste ano, distribuir proporcionalmente os recursos do fundo eleitoral para a campanha de candidatos negros. A distribuição proporcional também vale para o tempo de televisão.
A liminar de Lewandovski antecipa uma decisão anterior do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que previa a mudança só para 2022.
Enquanto parte dos políticos elogiaram a medida nas redes sociais, a outra parte dos candidatos e partidos questionou que o tempo é curto para se ajustar às mudanças. Outra crítica comum é o temor de que os recursos sejam usados para candidatos "laranja" -- que não disputam de fato a eleição, ou são pouco competitivos, e só são registrados para o partido dizer que está cumprindo as regras.
O tema agora está no plenário do STF, em julgamento que começou nesta sexta-feira, 25. Os juízes têm até a próxima sexta-feira, 2 de outubro, para decidir se as regras vão mesmo valer para estas eleições municipais.
Recursos não são necessariamente cotas
A decisão do TSE diz respeito à distribuição proporcional de recursos, mas não implica em cotas, isto é, uma reserva de determinado percentual de vagas. É diferente, por exemplo, da regra que define 30% das candidaturas para mulheres, que começou a valer em 2018.
Assim, as candidaturas negras e brancas continuando sendo escolhidas livremente conforme decisão dos partidos, mas respeitando a proporção na hora de repartir os recursos. Se houver 20% de candidatos negros, esse grupo deve receber ao menos 20% dos recursos e do tempo de TV.
Até hoje, sem esse tipo de ação, os beneficiados com mais dinheiro dentro dos partidos foram majoritariamente homens e brancos, segundo as pesquisas do cientista político Carlos Machado, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
Esse é um dos motivos que leva ao baixo número de negros em cargos políticos, diz Machado, que analisou eleições como a de 2014 e 2012. Primeiro, há pouca presença desse grupo nos partidos e entre as lideranças das legendas. E, uma vez na estrutura partidária, eles têm mais dificuldade em conseguir dinheiro para a campanha.
Além disso, as diferenças educacionais e de renda entre negros e brancos no Brasil impactam nas eleições -- candidatos mais ricos são, no geral, brancos, e têm mais recursos e influência para doar para a própria campanha ou conseguir doações.
Por fim, há a própria preferência dos eleitores. "Isso tudo explica porque há um número pequeno de candidatos negros e menor ainda de eleitos", diz Machado.
Os recursos que entram na regra dizem respeito ao fundo eleitoral, cerca de 2 bilhões de reais vindos do orçamento público e destinados a pagar as campanhas dos partidos.
Esse montante é diferente do fundo partidário, que serve para manutenção diária dos partidos, e das doações individuais de pessoas físicas que cada candidato pode receber (desde a última reforma eleitoral, candidatos não podem mais receber financiamento de empresas).
Cotas inibem a escolha do eleitor?
Um dos questionamentos sobre medidas afirmativas na política vem do papel de decisão democrática. Se os candidatos negros não estão sendo eleitos, na teoria, eles não teriam se mostrado bem preparados frente à opinião pública.
Para Luciana de Oliveira Ramos, professora da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora de um estudo sobre representação de mulheres na política, o próprio financiamento menor da maioria das candidaturas de minorias sociais e raciais, sobretudo de mulheres negras, é um fator que antecede a preferência dos eleitores.
"Para um candidato ser eleito, ele precisa ser visto. E, mesmo na era das redes sociais, isso só acontece com recursos", diz.
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Além disso, a cientista política argumenta que o eleitor historicamente se habituou a ter pouca representatividade em posições de poder. "Quando se pensa em um político, ele é um homem branco, velho e de terno. Não é um negro, nem uma mulher", diz. "Não existem pesquisas que mostrem um preconceito inato do eleitor. Mas ele vota no candidato do qual se lembra, que ou teve mais recurso na campanha ou já está eleito", diz.
É um círculo vicioso: candidatos fora do perfil político tradicional não são eleitos e, na próxima eleição, os partidos tendem a apostar menos neles, diz Ramos.
Mas é um círculo que precisa começar a ser quebrado, na visão dos pesquisadores do financiamento eleitoral. "Ainda que o partido ou sistema não opere em práticas racistas, a simples reprodução das práticas sociais anteriores coloca uma percepção de que são homens brancos que terão maior votação", completa Machado.
Mais efetividade na política
Para além da representação da população, ter pretos e pardos nos cargos políticos poderia gerar uma máquina pública que funciona melhor. O argumento é matemático: um perfil mais diverso de políticos teria mais chances de representar as visões de uma parcela maior da população. Pensamento parecido tem levado as empresas privadas a ampliar programas de diversidade.
No caso da gestão pública, políticos pretos e pardos seriam capazes de representar uma parcela que proporcionalmente acessa mais os serviços públicos -- e que mais precisa de boas decisões do Estado. O mesmo vale para candidaturas de outras minorias, como mulheres.
"Uma parcela muito grande da população preta e parda e das mulheres, sobretudo mulheres negras, acessa justamente os serviços públicos que os políticos têm a obrigação de melhorar: escola pública, saúde, saneamento. Ter esse perfil na política institucional pode ajudar o país a tomar decisões melhores", diz Machado.
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O cenário político é só um reflexo das desigualdades que já existem entre negros e brancos na sociedade. A população negra é metade da população brasileira, mas só responde por 12% dos empregados nos cargos de gerência de maior renda, segundo o IBGE. Para cada nove brancos nesses cargos mais bem pagos, há um negro.
O rendimento médio dos trabalhadores formais brancos também é o dobro dos negros, ainda de acordo com o IBGE. Com menos recursos, os brasileiros negros têm ainda menos anos de estudo, menor percentual de pessoas com ensino superior e maior taxa de analfabetismo (de 9%, ante 4% dos brancos).
"Não é uma relação de causalidade, não necessariamente todos os políticos negros eleitos vão fazer políticas para essa parcela da população. Mas você amplia as chances para que isso aconteça", diz Ramos, da FGV.
Por que o caso entrou em debate neste ano
A decisão de incluir regras para financiamento de candidaturas de negros veio após ações de grupos da sociedade civil e de parlamentares.
O Tribunal Superior Eleitoral começou a debater o tema após consulta da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), feita junto a representantes do movimento negro em 2019.
A consulta tinha por base a cota de 30% das candidaturas para mulheres, e pedia a mesma reserva de candidaturas para negros. Essa parte do tema foi negada pelo TSE em agosto, mas o tribunal ampliou a decisão para a distribuição proporcional dos recursos e do tempo de TV.
Contudo, no TSE, os juízes decidiram que a regra valeria só para 2022. O voto foi contrário ao do relator, o ministro do TSE e também do STF Luís Roberto Barroso.
Também votaram a favor da distribuição já em 2020 os outros dois ministros do Supremo que fazem parte do tribunal eleitoral, Alexandre de Moraes e Edson Fachin.
Após essa decisão, o caso foi parar no STF por consulta do PSOL. O tema agora está sendo decidido no plenário virtual da Corte pelos 11 ministros, que têm até 2 de outubro para proferir a decisão. Os três ministros que também estavam no TSE já votaram a favor da liminar de Lewandowski.
Caso a obrigatoriedade para 2020 seja confirmada, a Justiça eleitoral ainda deve elaborar resolução sobre como a distribuição dos recursos será feita.
A resolução também deve explicar o que acontece aos partidos que desobedecerem as regras, discutir a autodeclaração de raça e verificar se há possibilidade de contestação -- algo que já ocorreu em faculdades públicas, em que alunos brancos que se declararam negros para se beneficiar das cotas têm sido processados e expulsos.
Mais uma das mudanças que tornará a eleição deste ano um pleito a ser observado com atenção por pesquisadores e eleitores Brasil afora.