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A sociedade funciona como o RH do crime, diz ex-ministro Raul Jungmann

Para o ex-ministro da Segurança Pública, a população precisa se preocupar mais com a situação dos presídios para não perder jovens para facções criminosas

O ex-ministro Raul Jungmann: "Não existe um político no Brasil que defenda a reforma do sistema prisional" (Ueslei Marcelino/Reuters)
AJ

André Jankavski

Publicado em 12 de janeiro de 2020 às 08h00.

Última atualização em 12 de janeiro de 2020 às 09h00.

São Paulo – A rede social Twitter continua sendo palco de discussões envolvendo autoridades. No sábado dia 4, o ministro da Justiça, Sérgio Moro , comemorou a redução no número de crimes em 2019. Porém, ironizou os críticos que afirmam que o atual governo não é o principal responsável pela queda dos índices de criminalidade. “Se quiserem atribuir a queda ao Mago Merlin, não tem problema”, escreveu ele.

Consequentemente, o ex-ministro Raul Jungmann começou a ser questionado por internautas na rede social a respeito da declaração. Em uma série de tuítes, ele decidiu enumerar as realizações da sua gestão para um dos questionadores. Citou, entre outros, a criação do Sistema Único de Segurança Pública, a digitalização dos processos penais, a contratação de policiais e a coordenadoria de combate ao crime organizado. Detalhe: em todas as mensagens, ele decidiu repetir a frase “não fizemos mágica”.

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Em entrevista à EXAME, o ex-ministro volta a defender as realizações de sua gestão. No entanto, acredita que muita coisa precisa mudar na própria sociedade para que o combate ao crime seja realmente efetivo. Ele diz entender que existem motivos suficientes para a sociedade estar amedrontada, mas afirma que a atual política de repressão total, sem nenhum foco em ressocialização, está apenas piorando a situação.

“As pessoas não querem saber o que vai acontecer com os jovens depois de presos. O jovem, se cair lá dentro, precisará se filiar a essas facções para sobreviver. A sociedade, então, funciona como gerentes de recursos humanos dos soldados do crime organizado”, diz Jungmann. Confira, a seguir, a sua entrevista.

O senhor respondeu à fala do ministro Moro, que trouxe para o atual governo os méritos da redução das mortes. Acredita que faltou reconhecimento com a antiga gestão?

Nós lançamos os fundamentos da política. Sem eles, não existiria uma política nacional. Não pode se condenar o que foi feito no passado. A causa das mensagens foi que o ministro Sérgio Moro disse que, se não fosse o atual governo o responsável pela queda, tinha sido o Mago Merlin. Diversos internautas começaram a me citar e eu decidi fazer a retrospectiva.

E quais são os principais méritos que o senhor enxerga da sua gestão?

Desde o Império, o Brasil nunca teve um ministério focado na segurança pública. Em nenhuma das sete constituições foi colocado que o governo federal tinha quaisquer atribuições sobre o tema. Isso resultou em um federalismo acéfalo, pois nunca tivemos um sistema nacional de segurança pública e muito menos uma política nacional de segurança pública. Isso corresponde, em grande medida, ao nosso atraso. No Brasil, antes do governo do ex-presidente Temer, os planos tinham a duração do tempo em que os ministros ficavam no cargo.

Então, o senhor não enxerga o atual governo como o principal responsável pela redução?

Os grandes responsáveis pela queda do número de mortos são os estados. Isso quer dizer que o governo federal não tem participação? Tem, mas de coadjuvante. Os estados são responsáveis pelo combate ao crime e tem mais de um milhão de homens e mulheres em suas forças. O governo federal só tem 22.000 espalhados pela Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, que não têm como papel combater homicídios. Além disso, os estados são responsáveis por 85% dos recursos da segurança. O governo federal contribui com menos de 10%.

O Brasil continua sendo vítima de facções criminosas. É possível acabar com elas ou é uma utopia?

Aonde está o ovo da serpente dessa nossa crise? Está, infelizmente, em uma juventude de 15 a 24 anos, negra e parda, família desestruturada com pouca renda, baixa escolaridade e vivendo na periferia. Esse grupo mata e morre duas vezes e meia a mais do que a média nacional. Está evidente que é ali aonde está o problema. Imagine uma banheira transbordando. Qual é a melhor maneira de resolver o problema: tirar a água de balde ou fechar a torneira? Nós, hoje, não fechamos a torneira. É preciso olhar para essa juventude e ter generosidade antes que, vulnerabilizada, seja atraída pelo crime.

E como fazer isso?

No sistema prisional, 55% dos presos são jovens. Quando você olha os presídios, 85% deles não possuem qualquer tipo de incentivo à educação. Esse jovem vai para dentro da prisão, mas precisa ser ressocializado. Porém, se grande parte daquele sistema não tem educação, e aproximadamente 84% não tem trabalho, não vai dar nada certo. Mas a sociedade, amedrontada, quer que esses jovens sejam retirados das ruas. O problema é que as pessoas não querem saber o que vai acontecer com eles depois. O jovem, se cair lá dentro, precisará se filiar a essas facções para sobreviver. A sociedade, então, funciona como gerentes de recursos humanos dos soldados do crime organizado. Enquanto sociedade, nós não encontramos maneiras para que esses jovens tenham futuro.

O senhor acredita que esse debate está sendo bem conduzido pela classe política?

Não existe um político no Brasil que defenda a reforma do sistema prisional. Também precisamos mudar essa política de drogas. É necessário diferenciar o usuário e o traficante. A lei pode diferenciar, mas na prática quem está indo para a cadeia é o usuário. Estamos jogando milhares de jovens que poderíamos resgatar na cadeia. É uma política absurda, louca. Hoje, gastamos dinheiro para formar criminosos. Outra medida é colocar em prática uma política de egressos. A antiga gestão criou e ela não está sendo aplicada. O preso vai sair? Vai. Mas voltará ressocializado? A média de retorno desses jovens para a cadeia varia de 40% a 70%.

É possível diminuir a superlotação dos presídios?

Temos que ampliar o sistema semi-aberto. Aproximadamente de 70% dos presos foram por roubo, furto ou receptação. Não deixam de ser crimes, mas de baixo impacto ou baixa agressividade. Hoje, prendemos muito e prendemos mal. E a sociedade paga duplamente: tem que pagar para mantê-los lá dentro e para saírem recriminalizados, não ressocializados. E essa superlotação só facilita o controle das facções. Mas quem discute isso? Ninguém. Se discutir falam que está passando mão na cabeça de bandido, fala que está ficando ao lado dos criminosos. Sem debate não há política.

Qual é o seu balanço do atual governo?

O ministro Moro tem que ser avaliado pelos meios que obteve. Ele teve um contingenciamento de recursos muito severo. O fundo nacional de segurança tinha 1,7 bilhão de reais, mas 1,3 bilhão foi contingenciado. Isso reduz muito a capacidade de ofertar resultados. A outra coisa é que pegaram os recursos remanescentes e usaram para custear a Força Nacional, que sempre foi de responsabilidade do Tesouro.
Mesmo assim teve algumas realizações como colocar a liderança do PCC em um presídio de segurança máxima, que nós inauguramos no Distrito Federal. Ele também tem aumentado a apreensão de drogas. Dentro de suas limitações, o ministro tem procurado manter as políticas.

Qual a sua opinião sobre o pacote anticrime?

O pacote anticrime, expurgado de algumas coisas como excludente de licitude, o plea bargain, entre outras, ficou com coisas boas. O banco genético, por exemplo, é algo muito bom. A questão de aumento de penas de homicídios hediondo dentro das prisões. Mas o pacote foi muito melhorado pelo Congresso.

O senhor concorda com o juiz de garantia?

Sim. É uma necessidade e um avanço civilizatório para a própria Justiça. Foi uma inovação promovida pelo Congresso e vai nos trazer avanços muito significativos para a Justiça.

Na sua opinião, seria possível ter resultados mais rápidos e satisfatórios no combate ao crime com uma gestão melhor na área da segurança pública?

O sistema de segurança é complexo. A porta de entrada são as polícias, depois vai para o Ministério Público, em seguida ao Judiciário e finalmente para o sistema prisional. É um sistema muito mais complexo do que educação, por exemplo. Por isso, procurar uma saída simplista para uma questão complexa não é uma solução. Agora, de fato, precisamos melhorar a gestão, que significaria simplificação e agilidade. O sistema ainda é muito burocrático e lento. A Justiça também precisa estar atenta a isso. Eu mesmo queria criar a Escola Nacional Superior de Segurança Pública. Eu acho fundamental transparência e dados para a sociedade avaliar. Mas, sem a menor sobra de dúvida, temos problemas de gestão em todas as partes do sistema. Se não começarmos com uma política de prevenção, vamos jogar uma infinidade de dinheiro fora.

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