Steve Jobs na apresentação do primeiro iPhone, em 2007: questionava duramente os funcionários e os despedia caso não dessem boas respostas (David Paul Morris/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 5 de outubro de 2012 às 11h30.
São Paulo - Na mensagem enviada aos funcionários, no dia da morte de Steve Jobs, o CEO da Apple, Tim Cook, disse ser um afortunado por ter trabalhado com o criador da empresa. Mas nem todos os que passaram pela experiência têm opinião semelhante. Genial, perfeccionista, obsessivo e inflexível, Jobs tinha uma personalidade difícil e exigia dedicação máxima de seus subordinados.
Dos vice-presidentes aos engenheiros, todos deveriam estar prontos para informar o grau de desenvolvimento dos seus projetos, além de explicar em detalhe os motivos de erros ou atrasos. Quem fosse questionado dentro de um elevador e não desse uma resposta convincente perdia o emprego ali mesmo. Jobs também não gostava de ser confrontado e tinha pouca paciência com jornalistas e fãs insatisfeitos. Era duro com quem vazava informações de dentro da companhia.
O estilo controverso fez muitas vítimas. Na Apple, os funcionários passaram pela fase mais tensa nos primeiros anos após o retorno dele à empresa, em 1997. Uma reestruturação radical teve início, com reuniões extensas em que todos os times precisavam justificar seu trabalho. A empresa corria o risco de quebrar. No livro A Segunda Vinda de Steve Jobs, o autor Alan Deutschman conta que, na época, dezenas de projetos foram eliminados e vários empregados, demitidos sumariamente. O primeiro encontro com uma equipe servia para que Jobs, então CEO interino, conhecesse o trabalho do grupo. No segundo, ocorria um interrogatório. Aqueles que desagradassem iam para a rua.
Jobs não se importava com hierarquia e demoliu toda a estrutura burocrática de comando. Cobrava o mesmo empenho de vice-presidentes e desenvolvedores de software. Quem ocupava uma posição de destaque estava mais exposto. Deutschman conta que uma das vice-presidentes da Apple naquele período, Heidi Roizen, recebia dezenas de ligações em seu celular, no ramal do trabalho ou na sua casa, a partir das 7h da manhã, com questionamentos ou observações irônicas.
Passou a ignorar o assédio para não enlouquecer e só se comunicava com o CEO interino por e-mail. Um diretor, Bill Campbell, fez o mesmo, mas não adiantou. Jobs, que morava perto, passou a ir até a casa de Campbell. Foi nesse período que as demissões de alguns funcionários levaram muitos a temer entrar no elevador com o chefe.
As dificuldades de relacionamento de Jobs são antigas. Um dos que romperam com ele foi Jef Raskin, responsável por iniciar o projeto do Macintosh, no início da década de 1980. A equipe escondia a iniciativa para evitar a ação do cofundador da Apple, que durante dois anos tentou encerrá-la. Quando o desenvolvimento engrenou, Jobs resolveu assumir parte do projeto e passou a tomar decisões sozinho sobre seu rumo. “Eu não queria um mouse no Macintosh, mas Jobs insistiu. Naquela época, o que ele pedia era acatado, fosse uma boa ideia ou não”, disse Raskin, em entrevista publicada no livro Programmers at Work, de 1986. Afastado de áreas-chave e em atrito constante com Steve Jobs, ele pediu demissão.
Jobs nem sempre era sincero. Ele mentiu para Steven Wozniak, cofundador da Apple. Em meados da década de 1970, antes de os dois criarem a companhia, Jobs trabalhava na Atari. Lá, recebeu a tarefa de criar uma placa reduzida de circuito integrado para um fliperama chamado Breakout. Pelo serviço, receberia um bônus de acordo com o número de componentes eliminados. Como não tinha muita prática com designs complexos, Jobs pediu ajuda ao amigo Wozniak, que trabalhava na HP, e prometeu a ele metade do dinheiro.
Em um tempo recorde de quatro dias, Wozniak eliminou 42 itens. Dias depois, Jobs disse a ele que só havia recebido 700 dólares pela tarefa e entregou 350 dólares a Wozniak. Em 1984, o amigo descobriu em um livro sobre a Atari que o desenvolvimento havia resultado em um cheque de 5 000 dólares.
Uma das obsessões de Jobs era nomear um responsável para cada tarefa em desenvolvimento dentro da Apple, um comportamento que passou a integrar a cultura corporativa da empresa. A essas pessoas atribuía uma sigla, DRI (Indivíduo Diretamente Responsável, na tradução do inglês). Quando algo sai do rumo, o DRI tem de explicar o que aconteceu. Não por acaso, seu modo de comandar com pulso firme e tolerância zero muitas vezes era classificado com ditatorial. Falhas que causavam problemas para usuários e repercutiam na imprensa despertavam a ira de Steve Jobs. Pelo menos uma dessas histórias tornou-se conhecida.
Em 2008, a chegada do iPhone 3G veio acompanhada de um novo serviço, o MobileMe, capaz de armazenar arquivos online e integrar e-mails, compromissos, contatos e fotos entre dispositivos com os sistemas operacionais iOS, Windows e Mac OS X. Para aproveitar todos esses benefícios, no entanto, era necessário pagar uma cara mensalidade de 99 dólares por ano. Muita gente resolveu aderir e se decepcionou. O MobileMe não funcionava direito. Os usuários começaram a perder informações e, muitas vezes, nem conseguiam se conectar. Diante da repercussão negativa, Jobs convocou uma reunião de emergência na sede da Apple.
De acordo com uma pessoa ouvida por Adam Lashinsky e Doris Burke, da revista Fortune, o grupo responsável pelo MobileMe escutou um tremendo sermão durante meia hora. Primeiro, Jobs perguntou como deveria funcionar o serviço. Depois de escutar a resposta, disparou, irado: “Então por que ele não faz nada disso?” Acusou todo o grupo de ser responsávelpelos problemas e nomeou um novo executivo para cuidar do produto. “Vocês mancharam a reputação da Apple. Deveriam se envergonhar por rebaixarem assim uns aos outros”, disse. Depois disso, a equipe foi desmantelada.
Mesmo quando reconhecia o trabalho dos funcionários, Steve Jobs podia disseminar o terror pela empresa. Lashinsky e Doris afirmam que havia dentro da Apple um grupo extraoficial, o Top 100. Tratava-se de uma elite de funcionários da companhia, na opinião pessoal de Jobs. Não era necessário ser um executivo importante para integrar o grupo. Em contrapartida, qualquer um podia ser eliminado, a qualquer momento. O Top 100 se reunia a cada ano em um local secreto, durante três dias, para discutir planejamento e conhecer protótipos aos quais pouquíssimos tinham acesso. Participar dos encontros representava um prêmio e não ser convidado, uma punição. Ser excluído de um ano para outro indicava que Jobs não estava satisfeito por algum motivo e que a carreira na Apple corria perigo.
Sob a sua gestão, nenhum funcionário da Apple podia falar com a imprensa sem autorização – e esta era muito, muito rara. Tratar cada projeto, por mais simples que fosse, como ultrassecreto tornou-se uma regra especialmente depois de seu retorno à companhia, nos anos 1990, e é bem provável que essa política continue. O CEO instituiu um regime de censura em que todos os empregados são espionados e vigiados por um grupo que, segundo Jesus Diaz, do site Gizmodo, ficou conhecido internamente como a Gestapo da Apple, numa referência à polícia secreta da Alemanha nazista. A equipe prestava contas de suas ações diretamente a Jobs.
Um ex-funcionário contou a Diaz que, quando havia uma suspeita de vazamento para a imprensa, o departamento de onde teriam partido as informações passava por uma espécie de quarentena. O celular de cada empregado era examinado por uma “força especial”, que lia todo o conteúdo e fazia backups quando possível. Ninguém podia sair ou usar o computador para se comunicar, e todos deveriam permanecer sentados em suas mesas. Quem não se submetesse ao pente-fino era demitido ou passava por uma investigação, que buscava os motivos que levaram essa pessoa a não cooperar. Quase sempre o responsável era encontrado e acabava demitido.
Jornalistas que divulgam informações secretas sobre a companhia podiam ser processados. Foi o que ocorreu com os blogs Think Secret, AppleInsider e PowerPage, entre 2004 e 2005. A Apple entrou na Justiça contra os três, com o objetivo de descobrir quais eram as suas fontes. A Electronic Frontier Foundation (EFF), uma organização sem fins lucrativos que luta pela liberdade no mundo digital, assumiu a defesa dos três. Tanto o AppleInsider como o PowerPage ganharam a batalha judicial, enquanto o Think Secret fez um acordo que resultou no fechamento do site.
A Apple tentou processar o blog Gizmodo, que conseguiu um protótipo do iPhone 4 e divulgou informações sobre o aparelho antes do lançamento. Jobs chegou a telefonar para Brian Lam, editor do site, pedindo que o celular fosse devolvido. O dispositivo foi enviado assim que a Apple fez uma solicitação formal, o que não impediu a empresa de acionar a Justiça depois. Meses mais tarde, durante uma entrevista ao jornalista Walt Mossberg, do The Wall Street Journal, Jobs deu a entender que o Gizmodo tentou extorquir a empresa. A Justiça não acatou as acusações contra o site.
Telefonemas para reclamar de jornalistas também não eram incomuns. Quando foi publicado o livro A Segunda Vinda de Steve Jobs, o CEO da Apple ligou para a editora responsável, a Random House, para protestar contra a publicação. Não foi atendido. Embora tenha dito que a obra trazia uma visão parcial, ele recusou-se a dar uma entrevista para o autor. Pouquíssimos eram os jornalistas em quem confiava.
Vez ou outra, o cofundador da Apple engajava-se em discussões por e-mail que mostravam sua falta de paciência. No fim de 2010, a estudante de jornalismo Chelsea Kate Isaacs, de 22 anos, entrou em contato com o departamento de relações públicas da Apple, de acordo com reportagem do site Gawker. Ela queria incluir uma declaração de um funcionário da empresa em uma reportagem sobre a distribuição de iPads na universidade.
Sem conseguir retorno, escreveu para o então conhecido endereço de e-mail de Steve Jobs, sjobs@apple.com, sem muitas esperanças. Mas o CEO respondeu: “Nossos objetivos não incluem ajudá-la a tirar uma boa nota. Desculpe.” Chelsea rebateu e ouviu mais. “Temos 300 milhões de usuários e não podemos atender todos eles, a não ser que estejam com algum problema”, disse. Depois do terceiro e-mail indignado da aluna, Jobs foi breve. “Deixe-nos em paz”.
Jobs tinha uma inquietação permanente, um desejo de mudar o mundo que muitas vezes atropelava quem estivesse pelo caminho. Regras para uma boa convivência social acabavam desconsideradas, e não foram poucos os que sentiram sua mão de ferro. Para ele, não havia tempo a perder.